domingo, 20 de setembro de 2015

A imagem da Igreja acidentada…

A imagem é recorrente nos discursos papais hodiernos. E foi evocada frente a frente por Aura Miguel, jornalista da Rádio Renascença, na entrevista que o Pontífice lhe concedeu no passado dia 8 de setembro e posta no ar a 14. Porém, a imagem da Igreja acidentada (EG,49), do Papa Francisco, aparece sempre contraposta à da Igreja estagnada e é um ícone produzido na sua exortação apostólica Evangelii Gaudium (EG), presumível documento de apresentação do seu programa pontifical (tantas vezes ele tem sido citado pelo próprio e por muitos).
O contexto é o do capítulo I daquela exortação apostólica, sob o título A TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA, que traduz a primeira das sete questões temáticas selecionadas pelo Papa – a reforma da Igreja em saída missionária – a encimar a lista das restantes seis: as tentações dos agentes pastorais; a Igreja vista como a totalidade do povo de Deus que evangeliza; a homilia e a sua preparação; a inclusão social dos pobres; a paz e o diálogo social; e as motivações espirituais para o compromisso missionário.
Francisco radica a sua preocupação na doutrina da Constituição dogmática Lumen Gentium, do Vaticano II, nas disposições do Código de Direito Canónico (atinentes à missão do bispo de promover uma comunhão dinâmica, aberta e missionária junto dos organismos de participação pastoral) e no Catecismo da Igreja Católica (no concernente ao que os Pastores e fiéis devem ter em conta no acompanhamento aos seus irmãos na fé ou num caminho de abertura a Deus).
Assim, a Igreja preconizada pelo Papa é uma Igreja “em saída”, na linha da missão de Abraão, de Moisés e dos profetas, mas sobretudo na linha da obediência ao mandato apostólico, Ide, fazei discípulos de todos os povos… (Mt 28,19ss). Depois, a alegria do Evangelho, que inunda a comunidade dos discípulos, é alegria missionária, em êxodo, sinal do Evangelho anunciado e a frutificar. Esta alegria, experimentam-na os discípulos, que da missão voltam cheios de alegria (cf Lc 10,17); vive-a Jesus, que exulta no Espírito Santo e louva o Pai, porque a sua revelação chega aos pobres e aos pequeninos (cf Lc 10,21); e sentem-na os primeiros convertidos no Pentecostes, ao ouvir cada um na sua própria língua (At 2,6) a pregação dos Apóstolos. O próprio Senhor decide: Vamos para outra parte, para as aldeias vizinhas, a fim de pregar aí, pois foi para isso que Eu vim (Mc 1,38). Depois de semear num lugar, não se demora lá a explicar melhor ou a cumprir novos sinais, mas o Espírito leva-O a outros lugares. (cf EG,20-21).
Por outro lado, há que sublinhar que a intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, “uma comunhão missionária”. Fiel ao Mestre, “é vital que a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo”. (cf EG, 23). O Papa utiliza cinco verbos, um dos quais é neológico: primeirear”, envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar.
A Igreja em saída é a comunidade de discípulos missionários que “primeireiam”, se envolvem, acompanham, frutificam e festejam. Primeireiam – ou seja – tomam a iniciativa. A comunidade missionária, que experiencia que o Senhor tomou a iniciativa e a precedeu no amor (cf 1Jo 4,10), sabe ir à frente, tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos a convidar os excluídos, vivendo a ânsia de oferecer misericórdia, por ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva. Como consequência, a Igreja, comunidade missionária, sabe “envolver-se”, entrando, com obras e gestos, na vida diária dos outros, encurtando as distâncias, abaixando-se – se for necessário – até à humilhação e assumindo a vida humana, como que tocando a carne sofredora de Cristo no povo. A seguir, a comunidade evangelizadora dispõe-se a “acompanhar” pacientemente “a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam”. Depois, na fidelidade ao dom, a comunidade evangélica sabe “frutificar”. Mantendo-se atenta aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda, “cuida do trigo e não perde a paz por causa do joio”. E, por fim, a comunidade jubilosa sabe “festejar”: “celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na evangelização”, de modo que, “no meio desta exigência diária de fazer avançar o bem”, a evangelização “torna-se beleza na liturgia”, que é “fonte dum renovado impulso para se dar”. (cf EG,24).
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Tudo isto postula uma audaz conversão pastoral. Algumas das estruturas eclesiais existentes podem condicionar o dinamismo evangelizador. Porém, sem vida nova e espírito evangélico autêntico, sem fidelidade da Igreja à própria vocação, qualquer nova estrutura se corrompe em pouco tempo. É que as boas estruturas servem quando há vida que as anima, sustenta e avalia.
Por isso, impõe-se uma opção missionária capaz de transformar tudo, “para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação”. (cf EG,25-26).
A pastoral em chave missionária exige o abandono do cómodo critério pastoral “fez-se sempre assim”. Há, assim que, ousada e criativamente se repensarem objetivos, estruturas, estilo e métodos evangelizadores das respetivas comunidades. É importante não caminhar sozinho, mas ter sempre em conta os irmãos e, de modo especial, a guia dos Bispos, num discernimento pastoral sábio e realista. (cf EG,33).
Esta pastoral de missão tem de partir do coração do Evangelho e encarnar-se nas limitações humanas. A Igreja – discípula missionária – tem de crescer na sua interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da verdade. É que as enormes e rápidas mudanças culturais (políticas, sociais e económicas) exigem constante atenção à expressão das verdades de sempre numa linguagem que permita reconhecer a sua permanente novidade; é que, no depósito da doutrina cristã, uma coisa é a substância e outra é a formulação que a reveste.  Por vezes, ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, o que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho. Com a intenção de lhes comunicar a verdade sobre Deus e o homem, às vezes, damos-lhes um falso deus ou um ideal humano não cristão. Somos, assim, fiéis a uma formulação, mas não à lídima substância. Ora, a expressão da verdade pode ser multiforme e a renovação das formas de expressão torna-se necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem evangélica no seu significado imutável. Há, por outro lado, coisas que se compreendem e apreciam só a partir desta adesão, que é irmã do amor, para além da clareza com que se possam compreender as razões e os argumentos. É, pois, necessário recordar que cada ensinamento doutrinal se deve situar “na atitude evangelizadora que desperte a adesão do coração com a proximidade, o amor e o testemunho”. (cf EG,39-42).
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O Papa adverte oportunamente que, no seu constante discernimento, a Igreja chega a reconhecer costumes não diretamente ligados ao núcleo do Evangelho, alguns deles muito radicados no curso da história, que hoje não são interpretados do mesmo modo e cuja mensagem já não é percebida de modo adequado. Igualmente, há normas e preceitos eclesiais que podem ter sido eficazes noutras épocas, mas que já não têm a mesma força educativa e já não servem de canais de vida. É preciso fazer uma constante revisão dos costumes e dos preceitos. O próprio São Tomás de Aquino sublinha que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus “são pouquíssimos”. E, com Santo Agostinho, observa que nos preceitos adicionados pela Igreja se deve exigir moderação, “para não tornar pesada a vida aos fiéis” nem transformar a religião em escravidão, quando “a misericórdia de Deus quis que fosse livre”. (cf EG,43).
Urge, sem diminuir o ideal evangélico, acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se constroem dia após dia. Assim, “o confessionário não pode ser uma câmara de tortura”, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível. Mais: um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. Um coração missionário está consciente destas limitações, fazendo-se fraco com os fracos e tudo para todos (cf 1Cor 9,22); não se fecha em si, não se refugia nas próprias seguranças, não opta pela rigidez autodefensiva; sabe que deve crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito; e “não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada”.
Esta Igreja missionária e em saída é a mãe de coração aberto, é a Igreja com as portas abertas e que sai e faz sair em direção aos outros para chegar às periferias humanas, mas não a correr pelo mundo “sem direção nem sentido”. Muitas vezes, é mais eficaz “diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho”, e assumir a postura do pai do filho pródigo, “que continua com as portas abertas para, quando este voltar, poder entrar sem dificuldade”. E, embora as portas abertas dos templos sejam sinal da abertura da Igreja, há outras portas que não se podem fechar: todos podem participar dalguma forma na vida eclesial, todos podem fazer parte da comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos se deviam fechar por uma razão qualquer.
Estas convicções têm consequências pastorais, que somos chamados a considerar com prudência e audácia. Em vez de agirmos como controladores da graça, devemos agir como facilitadores, pois a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa. Se a Igreja inteira assumir este dinamismo missionário, chegará a todos, sem exceção. E, se deve privilegiar alguém, então terá de se orientar pelo Evangelho priorizando os pobres e os doentes, os que muitas vezes são desprezados e esquecidos, os “que não têm com que te retribuir” (Lc14,14). Hoje e sempre, “os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho” e a evangelização dirigida de graça a eles é sinal do Reino que Jesus pregou. Existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não podem ficar sozinhos. (cf EG,44-48).
Finalmente, naquele capítulo I, n.º 49, o Papa faz um forte apelo secundado pela sua grande asserção eclesial:
“Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! (…). Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. (…) Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus nos repete sem cessar: Dai-lhes vós mesmos de comer (Mc 6,37).”.
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Na aludida entrevista, Francisco explicou esta imagem de Igreja acidentada, que deseja, contraposta a uma Igreja estagnada, que não quer, como sendo “uma imagem de vida”. E pormenoriza (transcrevo, mas nem sempre ao pé da letra):
Se uma pessoa tem em casa uma divisão, um quarto, fechado durante muito tempo, surge a humidade, o mofo e o mau cheiro. Se uma igreja – paróquia, diocese, instituto – vive fechada em si mesmo, adoece (acontece o mesmo com o quarto fechado) e ficamos com uma Igreja raquítica, com normas rígidas, sem criatividade, segura, mais que segura, como que assegurada por uma companhia de seguros, mas não segura! Pelo contrário, se sai – se uma igreja, uma paróquia saem – lá para fora, a evangelizar, pode acontecer-lhe o mesmo que a qualquer pessoa que sai para a rua: ter um acidente. Então, entre uma igreja doente e uma Igreja acidentada, prefiro uma acidentada porque, pelo menos, saiu para a rua.
É a perspetiva de João XXIII, que pretendia trazer, pelo Concílio, à Igreja uma lufada de ar fresco. E, contra o mofo e a tibieza descafeinada de uma Igreja instalada (vd Ap 3,14-16), o Papa Francisco repete algo que, segundo ele, já disse noutra ocasião: “no Apocalipse, há uma coisa linda de Jesus (…), em que está a falar a uma Igreja e diz: “Estou à porta e chamo” – Jesus está a bater – “Se me abres a porta, entro e vou comer contigo” (cf Ap 3,20). E interroga-se: “Quantas vezes, na Igreja, Jesus bate à porta do lado de dentro para que O deixemos sair, a anunciar o reino?”. E autocritica-se: “Por vezes, apropriamo-nos de Jesus só para nós, e esquecemo-nos de que Igreja que não está em saída, Igreja que não sai, mantém Jesus preso, aprisionado”.
À questão provocante se, desde que é Papa, considera que a Igreja está mais acidentada, reponde que não sabe, ou melhor, que sabe pelo que lhe dizem, que “Deus está a abençoar muito a sua Igreja”. E garante:
“É um momento que não depende da minha pessoa, mas da bênção que Deus quis dar à sua Igreja, neste momento. E agora, com este Jubileu da Misericórdia, espero que muita gente sinta a Igreja como mãe. Porque pode acontecer à Igreja o mesmo que aconteceu à Europa: ficar demasiadamente avó, em vez de mãe, incapaz de gerar vida.”.
Questionado se este é o motivo do Jubileu da Misericórdia, não foge à questão e quer que todos
“venham e sintam o amor e o perdão de Deus” e aduz um caso que testemunha o papel real da misericórdia divina:
“Conheci, em Buenos Aires, um frade capuchinho, um pouco mais novo do que eu, que é um grande confessor. Tem sempre uma grande fila, com muita gente, está todo o dia a confessar. Ele é um grande perdoador, perdoa muito. E, às vezes, tem escrúpulos por ter perdoado muito. Então, uma vez, em conversa, disse-me: Às vezes, tenho escrúpulos. E eu perguntei-lhe: E o que fazes, quando tens esses escrúpulos? Vou diante do sacrário, olho para o Senhor e digo-lhe: Senhor, perdoai-me, hoje perdoei muito, mas que fique bem claro que a culpa é toda vossa, porque fostes Vós a dar-me o mau exemplo!”.
É óbvio que o Santo Padre enquadra no dinamismo gracioso da misericórdia divina; a Evangelii Gaudium; o Ano da Misericórdia e a bula Misericordiae Vultus, que formaliza a sua convocação e marca os seus objetivos e dinamismo; a reforma dos cânones relativos ao processo de declaração de nulidade matrimonial (“simplificar, facilitar a fé às pessoas” e levar a entender que a Igreja é mãe); a carta a monsenhor Rino Fisichella sobre o Jubileu da Misericórdia a propor o perdão às situações mais difíceis; e os sínodos sobre a família, nomeadamente o próximo.
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Ainda que não quisesse falar sobre a próxima assembleia sinodal, pediu muita oração e, adiantando que os jornalistas conhecem o “Instrumentum Laboris”, assegurou que se esperam muitas coisas,
“Porque, evidentemente, a família está em crise”: os jovens não se casam; ou, então, com esta cultura do provisório, dizem ‘ou vivo junto ou me caso, mas só enquanto dura o amor, depois, tchau’...”.
Depois, referiu que no Sínodo se vai falar das possibilidades de ajudar estas famílias, sem deixar qualquer cair qualquer ponto de doutrina, mas tentando evidenciar a força da misericórdia. E frisou:
Que uma coisa fique clara – e que o Papa Bento o deixou bem esclarecido: as pessoas que vivem uma segunda união não estão excomungadas e têm de ser integradas na vida da Igreja. Isso ficou claríssimo. E eu, no outro dia na catequese, também o disse claramente: aproximar-se da missa, da catequese, na educação dos filhos, nas obras de caridade... há mil coisas, não é?”.
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E, sim, esperemos que este Papa, que declara não ter perdido a paz, que sabe que, a seguir à aura de popularidade, virá a cruz (só não sabe qual será a sua) e que deseja morrer onde Deus quiser, congregue em torno de si como testemunhas e obreiros da Misericórdia, não só os mil missionários da misericórdia, mas toda a Igreja e, em especial, os que estão convocados a participar na assembleia sinodal, envergonhando-se de pretender extremar posições irredutíveis em torno do túmulo de Pedro, o que equivale a dizer à volta da árvore-cruz.
E a Igreja evangelizadora, mesmo enlameada e acidentada, nunca ficará sinistrada, porque, embora eventualmente desfeada na sua epiderme, não será atingida no seu âmago.

2015.09.20 – Louro de Carvalho

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