A
imagem é recorrente nos discursos papais hodiernos. E foi evocada frente a
frente por Aura Miguel, jornalista da Rádio Renascença, na entrevista que o
Pontífice lhe concedeu no passado dia 8 de setembro e posta no ar a 14. Porém, a
imagem da Igreja acidentada (EG,49), do Papa Francisco, aparece sempre contraposta à
da Igreja estagnada e é um ícone produzido na sua exortação apostólica Evangelii Gaudium (EG), presumível documento de
apresentação do seu programa pontifical (tantas vezes ele tem
sido citado pelo próprio e por muitos).
O
contexto é o do capítulo I daquela exortação apostólica, sob o título A
TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA, que traduz a primeira das sete questões temáticas selecionadas pelo
Papa – a reforma da
Igreja em saída missionária – a encimar a lista das restantes seis: as tentações dos agentes pastorais; a Igreja vista como a totalidade do povo de
Deus que evangeliza; a homilia e a
sua preparação; a inclusão social dos pobres; a paz e o diálogo social; e as motivações espirituais para o compromisso
missionário.
Francisco radica a sua preocupação na doutrina da
Constituição dogmática Lumen Gentium, do Vaticano II, nas
disposições do Código de Direito Canónico
(atinentes à missão do bispo de promover uma comunhão dinâmica,
aberta e missionária junto dos organismos de participação pastoral) e no Catecismo da Igreja Católica (no concernente ao que os Pastores e fiéis devem ter em conta
no acompanhamento aos seus irmãos na fé ou num caminho de abertura a Deus).
Assim, a Igreja preconizada pelo Papa é uma Igreja “em saída”, na linha da missão de Abraão, de Moisés e dos
profetas, mas sobretudo na linha da obediência ao mandato apostólico, Ide, fazei discípulos de todos os povos…
(Mt 28,19ss). Depois, a alegria do Evangelho, que inunda a comunidade dos
discípulos, é alegria missionária, em êxodo, sinal do Evangelho anunciado e a
frutificar. Esta alegria, experimentam-na os discípulos, que da missão voltam
cheios de alegria (cf Lc 10,17); vive-a Jesus, que exulta no Espírito Santo e louva
o Pai, porque a sua revelação chega aos pobres e aos pequeninos (cf Lc 10,21); e sentem-na os primeiros
convertidos no Pentecostes, ao ouvir cada
um na sua própria língua (At 2,6) a pregação dos Apóstolos. O próprio Senhor decide: Vamos para outra parte, para as aldeias
vizinhas, a fim de pregar aí, pois foi para isso que Eu vim (Mc 1,38). Depois de semear num lugar, não se demora lá a
explicar melhor ou a cumprir novos sinais, mas o Espírito leva-O a outros
lugares. (cf EG,20-21).
Por outro
lado, há que sublinhar que a intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade
itinerante, “uma comunhão missionária”. Fiel ao Mestre, “é vital que a Igreja
saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as
ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo”. (cf EG, 23). O Papa utiliza cinco verbos, um
dos quais é neológico: “primeirear”, envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar.
A Igreja em
saída é a comunidade de discípulos missionários que “primeireiam”, se envolvem,
acompanham, frutificam e festejam. Primeireiam – ou seja – tomam a iniciativa. A
comunidade missionária, que experiencia que o Senhor tomou a iniciativa e a
precedeu no amor (cf 1Jo 4,10), sabe ir à frente, tomar a iniciativa sem medo, ir
ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos a
convidar os excluídos, vivendo a ânsia de oferecer misericórdia, por ter
experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva. Como
consequência, a Igreja, comunidade missionária, sabe “envolver-se”, entrando, com
obras e gestos, na vida diária dos outros, encurtando as distâncias, abaixando-se
– se for necessário – até à humilhação e assumindo a vida humana, como que tocando
a carne sofredora de Cristo no povo. A seguir, a comunidade evangelizadora
dispõe-se a “acompanhar” pacientemente “a humanidade em todos os seus
processos, por mais duros e demorados que sejam”. Depois, na fidelidade ao dom,
a comunidade evangélica sabe “frutificar”. Mantendo-se atenta aos frutos,
porque o Senhor a quer fecunda, “cuida do trigo e não perde a paz por causa do
joio”. E, por fim, a comunidade jubilosa sabe “festejar”: “celebra e festeja
cada pequena vitória, cada passo em frente na evangelização”, de modo que, “no
meio desta exigência diária de fazer avançar o bem”, a evangelização “torna-se
beleza na liturgia”, que é “fonte dum renovado impulso para se dar”. (cf EG,24).
***
Tudo isto
postula uma audaz conversão pastoral. Algumas das estruturas eclesiais
existentes podem condicionar o dinamismo evangelizador. Porém, sem vida nova e
espírito evangélico autêntico, sem fidelidade da Igreja à própria vocação,
qualquer nova estrutura se corrompe em pouco tempo. É que as boas estruturas
servem quando há vida que as anima, sustenta e avalia.
Por isso,
impõe-se uma opção missionária capaz de transformar tudo, “para que os
costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se
tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à
autopreservação”. (cf
EG,25-26).
A pastoral em
chave missionária exige o abandono do cómodo critério pastoral “fez-se sempre assim”. Há, assim que,
ousada e criativamente se repensarem objetivos, estruturas, estilo e métodos
evangelizadores das respetivas comunidades. É importante não caminhar sozinho,
mas ter sempre em conta os irmãos e, de modo especial, a guia dos Bispos, num
discernimento pastoral sábio e realista. (cf EG,33).
Esta pastoral
de missão tem de partir do coração do Evangelho e encarnar-se nas limitações
humanas. A Igreja – discípula missionária – tem de crescer na sua interpretação da
Palavra revelada e na sua compreensão da verdade. É que as enormes e rápidas
mudanças culturais (políticas,
sociais e económicas)
exigem constante atenção à expressão das verdades de sempre numa linguagem que
permita reconhecer a sua permanente novidade; é que, no depósito da doutrina
cristã, uma coisa é a substância e outra
é a formulação que a reveste. Por
vezes, ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, o que os fiéis recebem,
devido à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, algo que não
corresponde ao verdadeiro Evangelho. Com a intenção de lhes comunicar a verdade
sobre Deus e o homem, às vezes, damos-lhes um falso deus ou um ideal humano não
cristão. Somos, assim, fiéis a uma formulação, mas não à lídima substância.
Ora, a expressão da verdade pode ser multiforme e a renovação das formas de
expressão torna-se necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem
evangélica no seu significado imutável. Há, por outro lado, coisas que se
compreendem e apreciam só a partir desta adesão, que é irmã do amor, para além
da clareza com que se possam compreender as razões e os argumentos. É, pois, necessário
recordar que cada ensinamento doutrinal se deve situar “na atitude
evangelizadora que desperte a adesão do coração com a proximidade, o amor e o
testemunho”. (cf EG,39-42).
***
O Papa
adverte oportunamente que, no seu constante discernimento, a Igreja chega a
reconhecer costumes não diretamente ligados ao núcleo do Evangelho, alguns deles
muito radicados no curso da história, que hoje não são interpretados do mesmo
modo e cuja mensagem já não é percebida de modo adequado. Igualmente, há normas
e preceitos eclesiais que podem ter sido eficazes noutras épocas, mas que já
não têm a mesma força educativa e já não servem de canais de vida. É preciso
fazer uma constante revisão dos costumes e dos preceitos. O próprio São Tomás
de Aquino sublinha que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo
de Deus “são pouquíssimos”. E,
com Santo Agostinho, observa que nos preceitos adicionados pela Igreja se deve
exigir moderação, “para não tornar pesada a vida aos fiéis” nem transformar a religião
em escravidão, quando “a misericórdia de Deus quis que fosse livre”. (cf EG,43).
Urge, sem
diminuir o ideal evangélico, acompanhar, com misericórdia e paciência, as
possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se constroem dia após dia.
Assim, “o confessionário não pode ser uma câmara de tortura”, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a
praticar o bem possível. Mais: um pequeno passo, no meio de grandes
limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente
correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. Um
coração missionário está consciente destas limitações, fazendo-se fraco com os fracos e tudo para todos (cf 1Cor 9,22); não se fecha em si, não se refugia
nas próprias seguranças, não opta pela rigidez autodefensiva; sabe que deve
crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito;
e “não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama
da estrada”.
Esta Igreja
missionária e em saída é a
mãe de coração aberto, é
a Igreja com as portas abertas e que sai e faz sair em direção aos
outros para chegar às periferias humanas, mas não a correr pelo mundo “sem direção
nem sentido”. Muitas vezes, é mais eficaz “diminuir o ritmo, pôr de parte a
ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências para
acompanhar quem ficou caído à beira do caminho”, e assumir a postura do pai do
filho pródigo, “que continua com as portas abertas para, quando este voltar,
poder entrar sem dificuldade”. E, embora as portas abertas dos templos sejam
sinal da abertura da Igreja, há outras portas que não se podem fechar: todos podem participar dalguma forma na vida
eclesial, todos podem fazer parte da comunidade, e nem sequer as portas dos
sacramentos se deviam fechar por uma razão qualquer.
Estas
convicções têm consequências pastorais, que somos chamados a considerar com
prudência e audácia. Em vez de agirmos como controladores da graça, devemos
agir como facilitadores, pois a Igreja
não é uma alfândega; é a casa
paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa. Se a Igreja
inteira assumir este dinamismo missionário, chegará a todos, sem exceção. E, se
deve privilegiar alguém, então terá de se orientar pelo Evangelho priorizando
os pobres e os doentes, os que muitas vezes são desprezados e esquecidos, os “que
não têm com que te retribuir” (Lc14,14).
Hoje e sempre, “os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho” e a evangelização dirigida de graça a
eles é sinal do Reino que Jesus pregou. Existe um vínculo indissolúvel entre a
nossa fé e os pobres. Não podem ficar sozinhos. (cf EG,44-48).
Finalmente,
naquele capítulo I, n.º 49, o Papa faz um forte apelo secundado pela sua grande
asserção eclesial:
“Saiamos, saiamos para oferecer a
todos a vida de Jesus Cristo! (…). Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e
enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e
a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja
preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e
procedimentos. (…) Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de
nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que
nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos
tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus nos repete sem
cessar: Dai-lhes vós mesmos de comer
(Mc 6,37).”.
***
Na aludida entrevista,
Francisco explicou esta imagem de Igreja
acidentada, que deseja, contraposta a uma Igreja estagnada, que não quer, como sendo “uma imagem de vida”. E pormenoriza (transcrevo, mas nem sempre ao pé da letra):
Se uma
pessoa tem em casa uma divisão, um quarto, fechado durante muito tempo, surge a
humidade, o mofo e o mau cheiro. Se uma igreja – paróquia, diocese, instituto –
vive fechada em si mesmo, adoece (acontece o mesmo com o quarto fechado) e
ficamos com uma Igreja raquítica, com normas rígidas, sem criatividade, segura,
mais que segura, como que assegurada por uma companhia de seguros, mas não
segura! Pelo contrário, se sai – se uma igreja, uma paróquia saem – lá para
fora, a evangelizar, pode acontecer-lhe o mesmo que a qualquer pessoa que sai
para a rua: ter um acidente. Então, entre uma igreja doente e uma Igreja
acidentada, prefiro uma acidentada porque, pelo menos, saiu para a rua.
É a perspetiva
de João XXIII, que pretendia trazer, pelo Concílio, à Igreja uma lufada de ar
fresco. E, contra o mofo e a tibieza descafeinada de uma Igreja instalada (vd Ap
3,14-16), o Papa Francisco repete algo que,
segundo ele, já disse noutra ocasião: “no Apocalipse, há uma coisa linda de
Jesus (…), em que está a falar a uma Igreja e diz: “Estou à porta e chamo” –
Jesus está a bater – “Se me abres a porta, entro e vou comer contigo” (cf Ap 3,20). E interroga-se: “Quantas vezes, na Igreja, Jesus
bate à porta do lado de dentro para que O deixemos sair, a
anunciar o reino?”. E autocritica-se: “Por
vezes, apropriamo-nos de Jesus só para nós, e esquecemo-nos de que Igreja que
não está em saída, Igreja que não sai, mantém Jesus preso, aprisionado”.
À questão provocante se, desde que é Papa, considera que a Igreja está
mais acidentada, reponde que não sabe, ou melhor, que sabe pelo que lhe dizem,
que “Deus está a abençoar muito a sua
Igreja”. E garante:
“É um
momento que não depende da minha pessoa, mas da bênção que Deus quis dar à sua
Igreja, neste momento. E agora, com este Jubileu da Misericórdia, espero que
muita gente sinta a Igreja como mãe. Porque pode acontecer à Igreja o mesmo que
aconteceu à Europa: ficar demasiadamente avó, em vez de mãe, incapaz de gerar
vida.”.
Questionado se este é o motivo do Jubileu da Misericórdia, não foge à
questão e quer que todos
“venham e
sintam o amor e o perdão de Deus” e aduz um caso que testemunha o papel real da
misericórdia divina:
“Conheci, em
Buenos Aires, um frade capuchinho, um pouco mais novo do que eu, que é um
grande confessor. Tem sempre uma grande fila, com muita gente, está todo o dia
a confessar. Ele é um grande perdoador,
perdoa muito. E, às vezes, tem escrúpulos por ter perdoado muito. Então, uma
vez, em conversa, disse-me: Às vezes,
tenho escrúpulos. E eu perguntei-lhe: E
o que fazes, quando tens esses escrúpulos? Vou diante do sacrário, olho
para o Senhor e digo-lhe: Senhor,
perdoai-me, hoje perdoei muito, mas que fique bem claro que a culpa é toda
vossa, porque fostes Vós a dar-me o mau exemplo!”.
É óbvio que o Santo Padre enquadra no dinamismo gracioso da misericórdia
divina; a Evangelii Gaudium; o Ano da
Misericórdia e a bula Misericordiae
Vultus, que formaliza a sua convocação e marca os seus objetivos e
dinamismo; a reforma dos cânones relativos ao processo de declaração de
nulidade matrimonial (“simplificar, facilitar a
fé às pessoas” e levar a entender que a Igreja é mãe); a carta a monsenhor Rino Fisichella sobre o Jubileu da
Misericórdia a propor o perdão às situações mais difíceis; e os sínodos sobre a
família, nomeadamente o próximo.
***
Ainda que não quisesse falar sobre a próxima assembleia sinodal, pediu muita
oração e, adiantando que os
jornalistas conhecem o “Instrumentum
Laboris”, assegurou que se esperam muitas coisas,
“Porque,
evidentemente, a família está em crise”: os jovens não se casam; ou, então, com
esta cultura do provisório, dizem ‘ou
vivo junto ou me caso, mas só enquanto dura o amor, depois, tchau’...”.
Depois, referiu que no Sínodo se
vai falar das possibilidades de ajudar estas famílias, sem deixar qualquer cair
qualquer ponto de doutrina, mas tentando evidenciar a força da misericórdia. E frisou:
“Que uma coisa fique clara – e que o Papa Bento o
deixou bem esclarecido: as pessoas que vivem uma segunda união não estão
excomungadas e têm de ser integradas na vida da Igreja. Isso ficou claríssimo.
E eu, no outro dia na catequese, também o disse claramente: aproximar-se da
missa, da catequese, na educação dos filhos, nas obras de caridade... há mil
coisas, não é?”.
***
E, sim, esperemos que este Papa, que declara não ter perdido a paz, que
sabe que, a seguir à aura de popularidade, virá a cruz (só não sabe qual será a sua) e que deseja morrer onde
Deus quiser, congregue em torno de si como testemunhas e obreiros da
Misericórdia, não só os mil missionários da misericórdia, mas toda a Igreja e,
em especial, os que estão convocados a participar na assembleia sinodal,
envergonhando-se de pretender extremar posições irredutíveis em torno do túmulo
de Pedro, o que equivale a dizer à volta da árvore-cruz.
E a Igreja evangelizadora, mesmo enlameada e acidentada, nunca ficará
sinistrada, porque, embora eventualmente desfeada na sua epiderme, não será atingida
no seu âmago.
2015.09.20
– Louro de Carvalho
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