domingo, 6 de setembro de 2015

A catarse das situações poblemáticas

Quero, de minha espontânea e livre vontade com a enunciação em epígrafe, abordar dois tipos de situações trágicas: a postura europeia equacionada de forma genérica; e o caso Sócrates em relação ao Partido Socialista.
Sobre a Europa, parece-me oportuno retomar uma síntese informal que o atual secretário-geral do PS (e então comentador no âmbito da quadratura do círculo) produziu em março de 2013.
Acentuou que “a situação a que chegámos não foi uma situação do acaso”, já que “a União Europeia financiou durante muitos anos Portugal” para que o país deixasse de produzir no setor das pescas, no da agricultura e no da indústria. Poderia ter incluído a destruição da marinha mercante e da frota pesqueira e a promoção crescente da degradação das forças armadas pelos lados da insuficiência do conceito de defesa militar, da programação militar, da afetação de recursos, da imagem e da não obrigatoriedade do serviço militar.
No atinente à indústria, Costa citava o quadro da produção têxtil, afirmando que “nós fomos financiados para desmantelar o têxtil porque a Alemanha queria, a Alemanha e os outros países como a Alemanha queriam que abríssemos os nossos mercados ao têxtil chinês basicamente porque, ao abrir os mercados ao têxtil chinês, eles exportavam os teares que produziam, para os chineses produzirem o têxtil que nós deixávamos de produzir”.
Poderia dizer que o neoliberalismo, praticado pelos partidos ditos do arco da governação, por um lado, cavou a destruição de grandes empresas e, por outro, criou e robusteceu outras empresas públicas, de que é exemplo a PT, e, abrindo progressivamente o caminho irreversível à privatização, vendeu a retalho e por dez réis de mel coado muitas empresas, algumas delas representantes de diversos setores estratégicos do país.
Porém, o comentador encartado sublinha a inaceitabilidade da mentira da narrativa (à boa moda socrática) que se criou da “ideia de que em Portugal houve aqui um conjunto de pessoas que resolveram viver dos subsídios e de não trabalhar e que viveram acima das suas possibilidades”. O que aconteceu foi que os investimentos públicos e privados foram, segundo ele, orientados “em função das opções da União Europeia”, manifestadas em várias vertentes: a dos fundos comunitários; a dos subsídios que foram dados; e a do crédito que foi proporcionado. Infere, portanto, que os agentes económicos assumiram “um comportamento racional” tendo em linha de conta “a política induzida pela União Europeia”.
Em termos avaliativos, António Costa, assinala o fenómeno como erro colossal. Todavia, não aceita que esse erro “seja um erro unilateral dos portugueses”, mas “um erro do conjunto da União Europeia”. Depois, indica a verdadeira razão por que “a União Europeia fez essa opção”: a União Europeia (UE) pensou constituir como seu desígnio transformar-se em uma simples praça financeira. Para isso, teria de acabar com a sua indústria ou de a remeter para uma dimensão residual. E essa altura havia chegado. Sendo assim, considera um perfeito e “enorme embuste” a ideia passada à opinião pública (e largamente alimentada e propalada por algumas formações políticas) “a ideia de que os portugueses são responsáveis pela crise, porque andaram a viver acima das suas possibilidades”. Ademais, no seu entender, esta mentira é secundada e ultrapassada por outra: “a de que não há alternativa à austeridade, apresentada como um castigo justo, face a hábitos de consumo exagerados”.
Nestes termos, assegura que “nem os portugueses merecem castigo, nem a austeridade é inevitável”. E, colocando o dedo na ferida, declara:
“Quem viveu muito acima das suas possibilidades nas últimas décadas foi a classe política e os muitos que se alimentaram da enorme manjedoura, que é o orçamento do estado. A administração central e local enxameouse de milhares de ‘boys’, criaramse institutos inúteis, fundações fraudulentas e empresas municipais fantasma.”.

Porém, não resiste a apontar o dedo à corrupção que designa de “epidemia fatal” a adicionar ao “regabofe” evocado. E não esquece os exemplos mais significativos:
“A Expo 98 transformou uma zona degradada numa nova cidade, gerou maisvalias urbanísticas milionárias, mas no final deu prejuízo. Foi ainda o Euro 2004 e a compra dos submarinos, com pagamento de luvas e corrupção provada, mas só na Alemanha.”.

Vai ao ponto de mencionar “as vigarices” de alguns e “as parcerias público-privadas e mais um rol interminável de crimes que depauperaram o erário público” (Hoje, Costa às PPP acrescentaria os contratos swap; e aos casos BPN e BPP, o clamoroso caso BES/GES), sendo que “todos estes negócios e privilégios concedidos a um polvo que, com os seus tentáculos, se alimenta do dinheiro do povo têm responsáveis conhecidos. E têm como consequência os sacrifícios por que hoje passamos”.
Depois – reconhecendo claramente que “os portugueses têm vivido muito abaixo do nível médio do europeu, não acima das suas possibilidades” e defendendo que “não é, assim, culpando e castigando o povo pelos erros da sua classe política que se resolve a crise” – prescreve os dados teóricos da receita:
“Não devemos pois, enquanto povo, ter remorsos pelo estado das contas públicas. Devemos, antes, exigir a eliminação dos privilégios que nos arruínam. Há que renegociar as parcerias públicoprivadas, rever os juros da dívida pública, extinguir organismos... Restaurese um mínimo de seriedade e pouparseão milhões, sem penalizar os cidadãos.” (…). Resolvese combatendo as suas causas, o regabofe e a corrupção. Esta, sim, é a única alternativa séria à austeridade a que nos querem condenar e ao assalto fiscal que se anuncia.”
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É óbvio que o comentador tinha razão na análise da situação. Hoje, até os juros da dívida se renegociaram – não sei se adequadamente – mas poderia avançar-se quanto a maturidades e provavelmente quanto a montantes por parte do Estado. Porém, falta ao líder partidário, que tudo fez para ser candidato a primeiro-ministro, confessar em que medida o partido que lidera é responsável pelos erros eurolusos cometidos (ao menos, especificando alguns a título de exemplo, para que o eleitor possa crer na boa fé política), apresentar as garantias de que outro vai ser o caminho, mostrar como vai promover a reorientação dos interesses setoriais em função do interesse nacional e converter o partido e os intervenientes e decisores europeus para a razoabilidade do devir português e para a reposição das grandes linhas do projeto europeu de acordo com o verdadeiro desígnio em termos de solidariedade e coesão em prol dos cidadãos e da eficácia das instituições. Enfim, correto o diagnóstico, pobre e nublosa a listagem das medidas de solução!
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Quanto ao caso Sócrates, aí é que, a meu ver, o secretário-geral do PS não soube, não quis ou não pôde fazer qualquer tipo de catarse. Parecia que a maneira como geriu o facto da detenção do antigo primeiro-ministro no âmbito do congresso, que aclamou Costa como secretário-geral recentemente eleito e dotou o partido dos diversos corpos de governança interna, daria um resultado aceitável. Com efeito, ao declarar que os sentimentos e a amizade de todo naturais não impedem o avanço e a eficácia da ação política, parecia ter acertado no caminho e na postura. Só que os acontecimentos ganharam uma dimensão pública tão grande que aquela postura se tornou eficaz em termos de provisoriedade.
Sócrates nunca pôde ser considerado um preso político até que Paulo Rangel, querendo trazer recentemente o caso para a campanha eleitoral pareceu dar a entender que o poder dito político tem a ver com o ambiente que se criou para o ataque cerrado à corrupção e, por conseguinte, terá criado condições politicas para a investigação ao ex-primeiro-ministro e consequentes detenção e prisão preventiva, esquecendo, como bem refere Pacheco Pereira na revista Sábado, do passado dia 3 de agosto, que, a ser assim, também é legítimo pensar que foi o Governo que deu azo a que outros também indiciados de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais andem por aí.
Mário Soares, cuja intervenção pública, aquando de uma das suas visitas a Sócrates (creio que a primeira) foi por muitos criticada como sendo um disparate e uma declaração de ingerência no quadro do poder judiciário (não digo que não), poderia ter sido entendido como fornecedor de um alerta ao risco da saúde partidária. O então recluso em Évora, não sendo um preso político, é um político preso. Além disso, é um membro especial do partido de Costa, tendo este feito parte dos corpos partidários e governativos de que Sócrates era o referente máximo.   
Por isso e na esteira de anteriores secretários-gerais, Costa poderia ter mostrado clara solidariedade pessoal e partidária com a situação do anterior amigo, secretário-geral e primeiro-ministro, não devendo remeter para as “férias do Natal” (Que é isso de férias do Natal?) a visita. Depois, sem deixar de declarar a função e o tempo de cada um dos poderes políticos (legislativo, executivo e judicial), deveria saber que os factos devem ser enfrentados e não fazer de conta que eles não existem, não são relevantes ou devem ser tratados por outrem. Talvez lhe tenha faltado alguma assessoria em termos da ciência psicológica.
Querer fazer acreditar que não há qualquer fundamento para a perceção de que a investigação, o Ministério Público e os juízes de instrução são imunes a pressões, a qualquer tipo de agendamento político é ignorar supinamente que as coincidências levam a supor precisamente o contrário. E, sobretudo, há que ter em conta que, no início deste século, foi inaugurada em definitivo a justiça-espetáculo. Por isso, sabe a pouco e até a oco dizer-se que a justiça tem o seu tempo e a política o seu; sabe a tautologia a repetição do aforismo “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política”; e revela hipocrisia ou “insonsice” o inocente enunciado de que um ministro da justiça (que o secretário-geral foi) não pode ter um coração tão insensível que não possa condoer-se dos amigos nem pode deixar de ter um raciocínio tão frio a ponto de poder e dever tomar as decisões adequadas em cada momento.
A opinião pública, que nem sempre presume a ministração da justiça e até foi induzida à presunção da culpabilidade do político preso, sabe que Sócrates foi investigado durante três anos, esteve preso preventivamente 9 meses e vai estar em casa sob vigilância pelo menos mais 3 meses. Já era tempo de tudo ficar esclarecido e saber-se se o arguido será ou não acusado formalmente.
Não. O secretário-geral do PS, se queria chefiar um governo, deveria não deixar de manifestar inequivocamente a solidariedade com o amigo, companheiro e predecessor, sem cair na teoria da cabala ou da conspiração; deveria assumir que o amigo, em tese, tanto pode ter cometido os erros de que é indiciado como estar inocente face aos indícios, devendo presumir claramente a inocência até decisão judicial definitiva. Mais deveria manifestar tanto a confiança na justiça como a sua hipotética debilidade, tal como em relação a outros órgãos do poder, não rejeitando o escrutínio e pedindo que se faça justiça, a seu tempo, mas imparcial, eficaz e tão célere quanto possível.
É que, pelas suas meias palavras, Costa deixou transparecer para a opinião pública a presunção da culpabilidade do até agora recluso n.º 44, tal como a superabundância dos artigos da Comunicação Social, muitos deles contrariando o segredo de justiça. Nem relva o facto de os tribunais superiores terem confirmado os motivos das medidas de criação decretada pelo Juiz de instrução. É óbvio que a sua argumentação é formalmente sustentada, o que só excecionalmente daria resultado diferente. Não é fácil uma argumentação escrita revelar erros crassos.
Finalmente, Costa deveria assumir-se como parte da governação de Sócrates, embora pusesse em evidência uma que outra divergência, até porque em determinada ocasião a abandonou, e protestar inequivocamente o propósito de não se cometerem mais erros como no passado, ao menos tanto quanto isso dependesse de si e do seu governo, e demonstrar com exemplos inequívocos as garantias desse propósito.
Um homem experiente rodeado de competentes conselheiros e assessores tem de ser menos hesitante e mais clarividente, sem medo e sem arrogância e, sobretudo, com lucidez e à vontade para rasgar caminhos e os indicar à coletividade.

2015.09.05 – Louro de Carvalho

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