Quero,
de minha espontânea e livre vontade com a enunciação em epígrafe, abordar dois
tipos de situações trágicas: a postura europeia equacionada de forma genérica;
e o caso Sócrates em relação ao Partido Socialista.
Sobre
a Europa, parece-me oportuno retomar uma síntese informal que o atual
secretário-geral do PS (e então comentador no âmbito da
quadratura do círculo)
produziu em março de 2013.
Acentuou
que “a situação a que chegámos não foi uma situação do acaso”, já que “a União
Europeia financiou durante muitos anos Portugal” para que o país deixasse de
produzir no setor das pescas, no da agricultura e no da indústria. Poderia ter
incluído a destruição da marinha mercante e da frota pesqueira e a promoção
crescente da degradação das forças armadas pelos lados da insuficiência do conceito
de defesa militar, da programação militar, da afetação de recursos, da imagem e
da não obrigatoriedade do serviço militar.
No
atinente à indústria, Costa citava o quadro da produção têxtil, afirmando que
“nós fomos financiados para desmantelar o têxtil porque a Alemanha queria, a
Alemanha e os outros países como a Alemanha queriam que abríssemos os nossos
mercados ao têxtil chinês basicamente porque, ao abrir os mercados ao têxtil
chinês, eles exportavam os teares que produziam, para os chineses produzirem o
têxtil que nós deixávamos de produzir”.
Poderia
dizer que o neoliberalismo, praticado pelos partidos ditos do arco da
governação, por um lado, cavou a destruição de grandes empresas e, por outro, criou
e robusteceu outras empresas públicas, de que é exemplo a PT, e, abrindo
progressivamente o caminho irreversível à privatização, vendeu a retalho e por
dez réis de mel coado muitas empresas, algumas delas representantes de diversos
setores estratégicos do país.
Porém,
o comentador encartado sublinha a inaceitabilidade da mentira da narrativa (à
boa moda socrática) que
se criou da “ideia de que em Portugal houve aqui um conjunto de pessoas que
resolveram viver dos subsídios e de não trabalhar e que viveram acima das suas
possibilidades”. O que aconteceu foi que os investimentos públicos e privados
foram, segundo ele, orientados “em função das opções da União Europeia”, manifestadas
em várias vertentes: a dos fundos comunitários; a dos subsídios que foram
dados; e a do crédito que foi proporcionado. Infere, portanto, que os agentes
económicos assumiram “um comportamento racional” tendo em linha de conta “a
política induzida pela União Europeia”.
Em
termos avaliativos, António Costa, assinala o fenómeno como erro colossal.
Todavia, não aceita que esse erro “seja um erro unilateral dos portugueses”,
mas “um erro do conjunto da União Europeia”. Depois, indica a verdadeira razão
por que “a União Europeia fez essa opção”: a União Europeia (UE) pensou constituir como seu
desígnio transformar-se em uma simples praça financeira. Para isso, teria de
acabar com a sua indústria ou de a remeter para uma dimensão residual. E essa
altura havia chegado. Sendo assim, considera um perfeito e “enorme embuste” a
ideia passada à opinião pública (e largamente alimentada
e propalada por algumas formações políticas) “a ideia de que os portugueses são responsáveis
pela crise, porque andaram a viver acima das suas possibilidades”. Ademais, no
seu entender, esta mentira é secundada e ultrapassada por outra: “a de que não
há alternativa à austeridade, apresentada como um castigo justo, face a hábitos
de consumo exagerados”.
Nestes
termos, assegura que “nem os portugueses merecem castigo, nem a austeridade é
inevitável”. E, colocando o dedo na ferida, declara:
“Quem viveu muito acima das suas
possibilidades nas últimas décadas foi a classe política e os muitos que se
alimentaram da enorme manjedoura, que é o orçamento do estado. A administração
central e local enxameou‐se de milhares de ‘boys’, criaram‐se
institutos inúteis, fundações fraudulentas e empresas municipais fantasma.”.
Porém,
não resiste a apontar o dedo à corrupção que designa de “epidemia fatal” a
adicionar ao “regabofe” evocado. E não esquece os exemplos mais significativos:
“A Expo 98 transformou uma zona degradada
numa nova cidade, gerou mais‐valias
urbanísticas milionárias, mas no final deu prejuízo. Foi ainda o Euro 2004 e a
compra dos submarinos, com pagamento de luvas e corrupção provada, mas só na
Alemanha.”.
Vai ao
ponto de mencionar “as vigarices” de alguns e “as parcerias público-privadas e
mais um rol interminável de crimes que depauperaram o erário público” (Hoje,
Costa às PPP acrescentaria os contratos swap;
e aos casos BPN e BPP, o clamoroso caso BES/GES), sendo que “todos estes negócios e privilégios
concedidos a um polvo que, com os seus tentáculos, se alimenta do dinheiro do
povo têm responsáveis conhecidos. E têm como consequência os sacrifícios por que
hoje passamos”.
Depois
– reconhecendo claramente que “os portugueses têm vivido muito abaixo do nível
médio do europeu, não acima das suas possibilidades” e defendendo que “não é,
assim, culpando e castigando o povo pelos erros da sua classe política que se
resolve a crise” – prescreve os dados teóricos da receita:
“Não devemos pois, enquanto povo,
ter remorsos pelo estado das contas públicas. Devemos, antes, exigir a
eliminação dos privilégios que nos arruínam. Há que renegociar as parcerias
público‐privadas, rever os juros da dívida
pública, extinguir organismos... Restaure‐se um mínimo de
seriedade e poupar‐se‐ão milhões, sem
penalizar os cidadãos.” (…). Resolve‐se combatendo as
suas causas, o regabofe e a corrupção. Esta, sim, é a única alternativa séria à
austeridade a que nos querem condenar e ao assalto fiscal que se anuncia.”
***
É óbvio
que o comentador tinha razão na análise da situação. Hoje, até os juros da
dívida se renegociaram – não sei se adequadamente – mas poderia avançar-se quanto
a maturidades e provavelmente quanto a montantes por parte do Estado. Porém,
falta ao líder partidário, que tudo fez para ser candidato a primeiro-ministro,
confessar em que medida o partido que lidera é responsável pelos erros
eurolusos cometidos (ao menos, especificando alguns a título
de exemplo, para que o eleitor possa crer na boa fé política), apresentar as garantias de que
outro vai ser o caminho, mostrar como vai promover a reorientação dos
interesses setoriais em função do interesse nacional e converter o partido e os
intervenientes e decisores europeus para a razoabilidade do devir português e
para a reposição das grandes linhas do projeto europeu de acordo com o verdadeiro
desígnio em termos de solidariedade e coesão em prol dos cidadãos e da eficácia
das instituições. Enfim, correto o diagnóstico, pobre e nublosa a listagem das medidas
de solução!
***
Quanto
ao caso Sócrates, aí é que, a meu ver, o secretário-geral do PS não soube, não
quis ou não pôde fazer qualquer tipo de catarse. Parecia que a maneira como
geriu o facto da detenção do antigo primeiro-ministro no âmbito do congresso,
que aclamou Costa como secretário-geral recentemente eleito e dotou o partido
dos diversos corpos de governança interna, daria um resultado aceitável. Com efeito,
ao declarar que os sentimentos e a amizade de todo naturais não impedem o avanço
e a eficácia da ação política, parecia ter acertado no caminho e na postura. Só
que os acontecimentos ganharam uma dimensão pública tão grande que aquela
postura se tornou eficaz em termos de provisoriedade.
Sócrates
nunca pôde ser considerado um preso político até que Paulo Rangel, querendo
trazer recentemente o caso para a campanha eleitoral pareceu dar a entender que
o poder dito político tem a ver com o ambiente que se criou para o ataque
cerrado à corrupção e, por conseguinte, terá criado condições politicas para a
investigação ao ex-primeiro-ministro e consequentes detenção e prisão
preventiva, esquecendo, como bem refere Pacheco Pereira na revista Sábado, do passado dia 3 de agosto, que,
a ser assim, também é legítimo pensar que foi o Governo que deu azo a que
outros também indiciados de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais
andem por aí.
Mário Soares,
cuja intervenção pública, aquando de uma das suas visitas a Sócrates (creio
que a primeira) foi
por muitos criticada como sendo um disparate e uma declaração de ingerência no
quadro do poder judiciário (não digo que não), poderia ter sido entendido como
fornecedor de um alerta ao risco da saúde partidária. O então recluso em Évora,
não sendo um preso político, é um político preso. Além disso, é um membro
especial do partido de Costa, tendo este feito parte dos corpos partidários e governativos
de que Sócrates era o referente máximo.
Por isso
e na esteira de anteriores secretários-gerais, Costa poderia ter mostrado clara
solidariedade pessoal e partidária com a situação do anterior amigo,
secretário-geral e primeiro-ministro, não devendo remeter para as “férias do
Natal” (Que
é isso de férias do Natal?)
a visita. Depois, sem deixar de declarar a função e o tempo de cada um dos
poderes políticos (legislativo, executivo e judicial), deveria saber que os factos
devem ser enfrentados e não fazer de conta que eles não existem, não são
relevantes ou devem ser tratados por outrem. Talvez lhe tenha faltado alguma
assessoria em termos da ciência psicológica.
Querer
fazer acreditar que não há qualquer fundamento para a perceção de que a
investigação, o Ministério Público e os juízes de instrução são imunes a
pressões, a qualquer tipo de agendamento político é ignorar supinamente que as
coincidências levam a supor precisamente o contrário. E, sobretudo, há que ter
em conta que, no início deste século, foi inaugurada em definitivo a justiça-espetáculo.
Por isso, sabe a pouco e até a oco dizer-se que a justiça tem o seu tempo e a política
o seu; sabe a tautologia a repetição do aforismo “à justiça o que é da justiça,
à política o que é da política”; e revela hipocrisia ou “insonsice” o inocente
enunciado de que um ministro da justiça (que o secretário-geral
foi) não pode ter um
coração tão insensível que não possa condoer-se dos amigos nem pode deixar de
ter um raciocínio tão frio a ponto de poder e dever tomar as decisões adequadas
em cada momento.
A opinião
pública, que nem sempre presume a ministração da justiça e até foi induzida à
presunção da culpabilidade do político preso, sabe que Sócrates foi investigado
durante três anos, esteve preso preventivamente 9 meses e vai estar em casa sob
vigilância pelo menos mais 3 meses. Já era tempo de tudo ficar esclarecido e
saber-se se o arguido será ou não acusado formalmente.
Não. O
secretário-geral do PS, se queria chefiar um governo, deveria não deixar de
manifestar inequivocamente a solidariedade com o amigo, companheiro e predecessor,
sem cair na teoria da cabala ou da conspiração; deveria assumir que o amigo, em
tese, tanto pode ter cometido os erros de que é indiciado como estar inocente
face aos indícios, devendo presumir claramente a inocência até decisão judicial
definitiva. Mais deveria manifestar tanto a confiança na justiça como a sua hipotética
debilidade, tal como em relação a outros órgãos do poder, não rejeitando o
escrutínio e pedindo que se faça justiça, a seu tempo, mas imparcial, eficaz e
tão célere quanto possível.
É que,
pelas suas meias palavras, Costa deixou transparecer para a opinião pública a
presunção da culpabilidade do até agora recluso n.º 44, tal como a superabundância
dos artigos da Comunicação Social, muitos deles contrariando o segredo de
justiça. Nem relva o facto de os tribunais superiores terem confirmado os
motivos das medidas de criação decretada pelo Juiz de instrução. É óbvio que a
sua argumentação é formalmente sustentada, o que só excecionalmente daria resultado
diferente. Não é fácil uma argumentação escrita revelar erros crassos.
Finalmente,
Costa deveria assumir-se como parte da governação de Sócrates, embora pusesse
em evidência uma que outra divergência, até porque em determinada ocasião a abandonou,
e protestar inequivocamente o propósito de não se cometerem mais erros como no passado,
ao menos tanto quanto isso dependesse de si e do seu governo, e demonstrar com
exemplos inequívocos as garantias desse propósito.
Um homem
experiente rodeado de competentes conselheiros e assessores tem de ser menos
hesitante e mais clarividente, sem medo e sem arrogância e, sobretudo, com
lucidez e à vontade para rasgar caminhos e os indicar à coletividade.
2015.09.05 – Louro de Carvalho
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