A
expressão enunciada em epígrafe parece configurar um fenómeno recente, o qual
não deixa de ser o mais normal na relação das gerações conforme a história do
homem a concebeu e desenvolveu. Desde sempre o homem cuidou de si e do seu clã
familiar no sentido estrito dos seus consanguíneos e afins e no sentido mais
lato dos seus colaboradores. E nesse contexto se fala de um pecúlio comum mais
ou menos significativo, mais ou menos vasto.
Esse
pecúlio, que não se esvai com a morte do chefe da comuna (o
paterfamilias, patriarca ou a materfamilias,
matriarca, conforme o tipo de
organização), mas
perpetua-se de geração em geração. E, nessa perpetuidade, constitui-se como
património. E, se ultrapassa a dimensão meramente económica e acentua as
dimensões documentais, monumentais, artísticas, etc., denomina-se património
cultural, de que hoje releva o património imaterial, como o flamenco, o fado, o
cante alentejano, entre outros.
De
modo similar, embora de âmbito mais restrito, é ancestral e usual o trabalho
dos progenitores com vista ao futuro dos descendentes, nomeadamente os filhos,
que herdam, muitas vezes, além dos bens pessoais e familiares, os bens
empresariais e, nalguns casos, os bens políticos. Sempre, mesmo antes dos modernos
códigos, os Estados regularam o direito sucessório quer no atinente às
heranças, quer no atinente aos testamentos, bem como no concernente aos
contratos de doação, compra-venda e comodato. Mesmo quando vigorava o regime do
morgadio,
Ora,
pelo exposto pode aferir-se o peso da solidariedade intergeracional tal como o
peso da solidariedade interpessoal, empresarial e social. Esta solidariedade
acontece mesmo que não vise especificamente as formas assistencialistas,
promocionais, caritativas, de beneficência ou de justiça comutativa,
distributiva e social.
É
óbvio que a solidariedade intergeracional, tal como a solidariedade social, se
foi institucionalizando, a par da alteração à distribuição dos encargos
familiares em vista do futuro.
Os
Estados modernos gizaram o que se designa correntemente como o Estado de
direito, democrático e social, designadamente no apoio à maternidade, à
infância, à adolescência, à juventude e à terceira idade, enfim, à família; à
educação, ensino e formação profissional; à saúde e ao bem-estar; à segurança
social, no atinente à criação de emprego, à proteção na situação de desemprego,
de interrupção do trabalho por doença e nascimento; e à cessação da prestação
de trabalho por motivo de idade e tempo de serviço e contribuição. O próprio
sistema de impostos e contribuições de empresários e trabalhadores compagina
uma notável modalidade de solidariedade social e intergeracional.
***
Se
assim é, porque terá surgido recentemente, como se de um fenómeno de neologia
se tratasse, a expressão solidariedade intergeracional?
Os
papás e as mamãs já há muito tempo deixaram de constituir um pecúlio que
servisse exclusivamente para o sustento da família e para prover ao futuro dos
filhos, após o natural momento da morte dos progenitores. Instalou-se a usança
da atribuição da semanada ou da mesada ao filho, do depósito bancário desde
tenra idade a reforçar periodicamente, da prenda especial nos grandes momentos
da vida (fim de curso, casamento…). E, em caso de separação de
pessoas e bens, os tribunais costumam decretar as pensões de alimentos. Algo
semelhante se deve dizer dos avós e de outros familiares afetivamente mais
próximos em relação às prendas, mesadas e apoio à educação e saúde.
Porém,
nos tempos que correm, surgiu uma onda social e política que está a fazer
escola. Enquanto o Tribunal Constitucional alemão considera como propriedade
privada as poupanças e as contribuições para a segurança social, em Portugal a
nossa governança tem-se desviado deliberadamente do regime de mutualidade e
capitalização das contribuições dos trabalhadores com vista à constituição do
fundo de pensões a pagar em razão da prestação do trabalho, quer na
administração pública e empresas estatais, quer em empresas e serviços
privados. Tem feito saber que os trabalhadores de ontem estão a pagar as
pensões dos reformados e aposentados de hoje e que os trabalhadores de hoje com
as suas contribuições atuais irão pagar as pensões dos reformados e aposentados
do futuro. Esta escola gera uma animosidade intergeracional de dupla e contraditória
expressão: por um lado, pretende-se que os mais velhos, porque desatualizados e
inválidos se reformem/aposentem, para dar lugar aos novos; por outro,
pretende-se protelar ao máximo a idade de reforma/aposentação. E, enquanto os
fundos da segurança social, de origem pública ou privada, servem para tudo –
incluindo a compra de dívida pública e a reabilitação urbana – engrossa a ideia
da insustentabilidade da segurança social. Assim, o Estado revela pouco
escrúpulo em encontrar pretextos para infligir cortes e mais cortes em pensões,
sob o pretexto de que não há dinheiro (e nós sentimo-lo fugir
não se sabe para onde nem como).
A pari, o Estado, ainda de direito,
democrático e social, espreita e vai executando diversas formas de se escapar
às responsabilidades com a educação, ensino e formação profissional; com a
saúde; e com a segurança social. E tenta-o municipalizando, privatizando e
estabelecendo parcerias público-privadas
Por
outro lado, a crise com os efeitos dela decorrentes levou a que pais e avós
cada vez mais tivessem sentido a necessidade de dispor do pecúlio proveniente
das suas pensões de reforma ou de aposentação para prover à alimentação de
filhos e netos, à educação e às despesas familiares por via do desemprego,
precariedade no emprego, subemprego, salários de miséria. Isto, a par das
iniciativas promovidas e desencadeadas por múltiplas instituições de
solidariedade social, grupos informais, banco alimentar, vertente social de
muitas empresas, Igrejas, escolas, municípios, etc.
O
Governo também viu nos avós uns bons aliados na área da educação, saúde e
assistência aos netos e associou-os às vantagens reservadas aos progenitores em
sede do novo IRS “amigo da família” e ao novo regime de trabalho a meio tempo.
Poderemos
falar assim de solidariedade intergeracional ou devemos falar de novas
imposições à solidariedade intergeracional fruto da crise e da inépcia da
governança?
***
A
este respeito, Rafael Barbosa publicou no JN,
de hoje, 3 de setembro, um texto subordinado ao título Défice de solidariedade, em que põe o dedo na ferida e com o qual
se pode aprender.
Refere ele,
discordando dela, que a “realidade virtual” com que nos acenam os políticos são as estatísticas e os
números com que nos pretendem convencer de que o país está melhor e que a crise
quase que se esfumou com a partida da troika. “Para ilustrar o raciocínio”,
reporta-se ao exemplo que lhe relatou um amigo sobre “um utente que há dias lhe
entrou pelo consultório médico” adentro. Era um homem dos seus 70 anos que, “depois
de muitos anos de trabalho, não merecia outra coisa do que um resto de vida
tranquilo, mas cujas poupanças e pensão de reforma se transformaram na tábua de
salvação de filhos e netos”. O filho mais novo, com mais de 30 anos, arquiteto,
que não conseguiu emprego, “vive com e à custa dos pais”; por seu turno, o
filho mais velho, rondando os 40 anos, engenheiro, caído no desemprego desde o
encerramento da empresa onde trabalhava, com quatro filhos, tem o pai e avô
agora a “pagar-lhe a prestação e outras contas da casa”.
Eu não sabia,
mas fiquei a saber por Barbosa, que foram os sociólogos que passaram a chamar a
fenómenos deste tipo “solidariedade intergeracional”, não tendo em conta o
devir histórico e antropológico a que me referi no princípio no quadro desta
reflexão. Segundo Barbosa, os sociólogos “dizem que é isto que explica que o
impacto da crise tenha sido um pouco atenuado em Portugal (e apesar do corte nas pensões que o
Governo impôs com zelo nos últimos anos). Um esforço que assegura a viabilidade de muitas famílias,
mas que não é reproduzível, ou seja, sustentável a prazo”.
Depois, cita
as declarações de Lina Coelho, subdiretora da Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra, coordenadora duma investigação sobre finanças conjugais em tempo de
crise, de que também li alguma coisa alhures, noutro periódico. Diz ela, citada
por Barbosa:
“A atual geração de idosos está a
sustentar o padrão de vida dos filhos e dos netos, mas estes já não vão
conseguir reproduzir o modelo em relação aos seus próprios filhos e netos”.
E a
professora universitária justifica a sua asserção pelos “percursos de vida e de
carreira muito mais fragmentados e precários” que afetam as novas gerações.
Por sua vez,
Barbosa interroga-se a si e aos outros: “Quantas
pessoas hoje com 40 anos terão, aos 70, possibilidade de apoiar os seus filhos
e netos”?
Perante isto
e tendo em conta as previsões da Comissão Europeia – que apontam para que “dentro
de 15 anos, ou seja, aqueles que estão agora na casa dos 50, conseguirão uma
pensão equivalente a 43% do salário” – pergunta-se que reflexão séria está a
promover o Governo de cada país europeu, já que são os Governos europeus, nas
palavras de Durão Barroso, aqueles que são os responsáveis pelas graves decisões
da UE, e não a Comissão?
Se calhar,
teremos de concluir com Rafael Barbosa:
“Ao défice público e orçamental
teremos então de juntar a noção de défice
de solidariedade, que ainda não aparece nas estatísticas oficiais, nem nas
análises da Unidade Técnica de Apoio Orçamental, mas é ainda mais importante
para medir as possibilidades de assegurar dignidade na vida real”.
Há
mesmo muito caminho a percorrer. E caminha-se caminhando, mesmo que encontremos
mais pedras do que via aberta. Porém, urge que os políticos aprendam a entender
o mundo com os filósofos e tenham a ousadia de o transformar segundo os
princípios genuínos da fraternidade, liberdade e igualdade – estribadas na
dignidade de toda a pessoa humana. Talvez seja sensato retomar Jesus de Nazaré
como mestre e guia.
Sem comentários:
Enviar um comentário