Até há relativamente pouco tempo produzi textos de reflexão
sobre a marcha da autonomia nas escolas desde que tal atributo passou a ser
reconhecido às escolas, embora com as limitações que naturalmente se impõem.
Embora nada tenha escrito ex professo
em torno do tema em relação ao pós-publicação do Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22
de abril, que define o regime de autonomia, administração e gestão (RAAG), alterado quatro anos depois pelo
Decreto-Lei n.º 137/2012, de 2 de julho, já tenho deixado a perceber o meu
entendimento sobre a matéria.
A talho de foice, diga-se que é correto definir autonomia de
escola como a
“Faculdade
reconhecida ao agrupamento de escolas ou à escola não agrupada pela lei e pela
administração educativa de tomar decisões nos domínios da organização
pedagógica, da organização curricular, da gestão dos recursos humanos, da ação
social escolar e da gestão estratégica, patrimonial, administrativa e
financeira, no quadro das funções, competências e recursos que lhe estão
atribuídos” (vd art.º 8.º do RAAG).
No projeto do DL n.º 75/2008, a autonomia
era meramente a faculdade “concedida”.
Aceita-se perfeitamente todo o art.º 9.º e todo
o art.º 9.º-A do RAAG. Porém, impor um número máximo de 21 dos elementos do
órgão de direção estratégica (Conselho Geral) e tipificar a sua
composição obrigatória (cf art.º 12.º) esbarra com o
conceito de autonomia e com a diversidade de contextos. No projeto do DL n.º
75/2008, constava a proibição de um professor presidir ao conselho geral (CG) – era a capitis
diminutio do professor. Agora o professor pode presidir, mas o somatório
dos professores e dos funcionários não pode ultrapassar 50% da totalidade dos
membros do CG. Se o número de elementos é impar, é óbvio que a divisão de
número ímpar por 2 nunca dá número inteiro.
Depois, os professores e funcionários do CG
continuam sujeitos ao poder hierárquico do diretor, o que faz com que um bom
quinhão do CG se iniba na tomada da palavra e na votação das diversas matérias
ou se torne um grupo satélite do diretor. Por outro lado, o facto de o CG
reunir ordinariamente uma vez por trimestre (vd
art.º 17.º) induz a pequena importância que se dá habitualmente a este
órgão de direção estratégica.
Quanto ao órgão de administração e gestão,
não vale a pena esconder que obrigar todas as escolas ou agrupamentos ao modelo
único de gestão, impondo o órgão unipessoal, vai desnecessariamente contra o
conceito de autonomia e presta-se a equívocos. Com efeito, encontrar um rosto
de primeiro responsável perante o MEC e a Comunidade podia bem, como dantes, consubstanciar-se
nas competências do órgão colegial. Depois, assume-se como poderes do diretor
alguns que incumbiam dantes ao órgão colegial conselho executivo. Dou como
exemplo a competência da alínea d) do n.º 4 do art.º 20.º – distribuir o serviço docente e não docente.
É óbvio que ninguém quer esse poder, mas há que ter em conta que era poder do
órgão colegial anterior (nas escolas que
dispunham desse órgão ou do diretor executivo, nas escolas de gestão unipessoal), mas é preciso
observar os critérios de ordem legal, pedagógica e administrativa.
Ademais, é excrescente e atentatória da
autonomia a competência estabelecida no n.º 6 do art.º 20.º – o diretor exerce ainda as competências que lhe
forem delegadas pela administração educativa e pela câmara municipal. Porque não remeter para o regime de parceria?
Se
considerarmos a composição do conselho pedagógico (CP), temos de referir, quanto ao número máximo dos seus
elementos, o que se disse do CG. E voltou-se atrás, ao exigir que o diretor
seja por inerência o presidente do CP (vd art.º 32.º).
O Decreto-Lei n.º 137/2012, de 2 de julho,
altera o processo de designação dos coordenadores de departamento curricular,
que eram de nomeação do diretor de entre os professores titulares em exercício
de funções no respetivo departamento. Como acabou a categoria de professor
titular, por força do Decreto-Lei n.º 75/2010, de 23 de junho, o art.º 43.º do
RAAG dispõe:
- O número de departamentos curriculares é definido no
regulamento interno do agrupamento de escolas ou da escola não agrupada, no
âmbito e no exercício da respetiva autonomia pedagógica e curricular (n.º 3) – em vez dos seis existentes;
- O coordenador de departamento curricular deve ser um
docente de carreira detentor de formação especializada nas áreas de supervisão
pedagógica, avaliação do desempenho docente ou administração educacional (n.º
5);
- O coordenador de departamento é eleito pelo respetivo
departamento, de entre uma lista de três docentes, propostos pelo diretor para
o exercício do cargo (n.º 7).
O n.º 4 dispõe sobre
as condições em que não possa ser dado estrito cumprimento ao estabelecido no n.º
5:
Quando não for possível a designação de
docentes com os requisitos definidos no número anterior, por não existirem ou
não existirem em número suficiente para dar cumprimento ao estabelecido no
presente decreto-lei, podem ser designados docentes segundo a seguinte ordem de
prioridade: docentes com experiência profissional, de pelo menos um ano, de
supervisão pedagógica na formação inicial, na profissionalização ou na formação
em exercício ou na profissionalização ou na formação em serviço de docentes; docentes
com experiência de pelo menos um mandato de coordenador de departamento
curricular ou de outras estruturas de coordenação educativa previstas no
regulamento interno, delegado de grupo disciplinar ou representante de grupo de
recrutamento; e docentes que, não reunindo os requisitos
anteriores, sejam considerados competentes para o exercício da função.
***
Mesmo
admitindo que o RAAG era um bom documento, o seu mérito é a cada passo
torpedeado por legislação complementar diversificada de execução prática em que
tudo se regulamenta ao pormenor (e por inúmeras e assíduas indicações de
frequência quase diária) ficando remetidos para a
autonomia aspetos secundários, residuais ou de maior desconforto. Estão neste
caso os decretos-lei que definem o currículo do ensino básico e do ensino
secundário (nomeadamente
o DL n.º 139/2012, de 5 de julho) que deixam às escolas a
decisão de optar por tempos letivos de 45 minutos ou de 50 e, consequentemente,
pela condicente grelha curricular. Estão neste caso os despachos normativos que
anualmente se publicam sobre a organização do ano letivo – autêntica floresta
de indicações quase contraditórias em relação ao ECD-Estatuto da Carreira
Docente (reformulado
profunda e largamente pelo DL n.º 15/2007, de 19 de janeiro, com alterações
significativas introduzidas pelo DL n.º 75/2010, de 23 de junho, e pelo DL n.º
41/2012, de 21 de fevereiro). Estão neste caso os
despachos sobre o calendário escolar, de incidência anual, os despachos sobre
matrículas e os despachos normativos sobre a avaliação dos alunos do ensino
básico e as portarias da avaliação dos alunos do ensino secundário.
Tudo
se regulamenta, deixando para a autonomia escolar (leia-se “diretor”) alguma
coisinha em que ele mostre que pode, quer e mande.
E, depois,
por cada afirmação de autonomia, vem uma medida de entrega da gestão escolar às
autarquias (art.º 2.º do DL n.º 144/2008, de 28 de julho, e o DL n.º 30/2015,
de 12 de fevereiro), o que me faz supor que as escolas ficam autónomas com a
autonomia (?!) dos municípios, como Oliveira Salazar sobre a independência
das colónias fazia saber à ONU: são independentes
por terem adquirido a independência juntamente com a mãe pátria.
***
Ora, no quadro da abertura do ano
letivo de 2015/2016 e segundo o que se lê no site respetivo, o MEC (Ministério da Educação e Ciência) enviou, a 22 de setembro passado, para publicação no
Diário da República, os dois diplomas habituais de regulação da avaliação de
alunos no ensino básico e secundário: o despacho de avaliação do ensino básico (Despacho normativo n.º 13/2014, de 15 de setembro) e a atualização
da portaria de avaliação do ensino secundário (Portaria
n.º 243/2012, de 10 de agosto).
Poucas mudanças são introduzidas. E
estas consagram essencialmente as atualizações necessárias e já anunciadas.
Assim, verificam-se ajustamentos na
avaliação dos alunos no Ensino Básico em função da introdução do Inglês como
disciplina obrigatória a partir do 3.º ano de escolaridade; consagra-se a incorporação
da prova Teste Preliminar de Inglês para
Escolas (Preliminary English Test for Schools – PET) na
classificação final dos alunos do 9.º ano, o que traduz o reforço da
importância curricular da disciplina de Inglês, que passou de opcional a obrigatória
durante sete anos de escolaridade.
No 1.º ciclo, a introdução do inglês a
partir do 3.º ano gera algumas mudanças nos critérios de aprovação dos alunos, com
vista à valorização do ensino desta língua. No 9.º ano, no fim do ensino
curricular obrigatório de Inglês, a prova PET permitirá proceder a uma
avaliação normativa da proficiência dos alunos com normas e critérios
internacionais. O MEC indica como peso para esta avaliação na classificação
final dos alunos um valor a determinar por cada escola entre 20 e 30% da
classificação final do aluno nesta disciplina. Cá está: mais um para a
autonomia residual sobre 10%.
É ainda consagrada, no Ensino Básico, a
já legislada autonomia na avaliação dos alunos nos Estabelecimentos de Ensino
com Contrato de Autonomia e dos Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo.
Boa, dá para perguntar quais são os elementos específicos, os parâmetros, os
critérios e os procedimentos dessa autonomia avaliativa. Facilitem a vida a
essas escolas e digam se podem ou não inflacionar as notas!
Quanto ao Ensino Secundário, é dada uma
maior autonomia a todas as escolas no que se refere à avaliação na disciplina
de Português. A oralidade, que tinha o peso fixo de 25% na nota dos alunos,
passa a ter o peso mínimo de 20%. Agora poderá ir a autonomia até 25% ou até
aos 100%? Valerá 5%?
Refira-se que já estão publicados: o Desp. Norm. n.º 17-A/2015, de 22 de
setembro (avaliação no
ensino básico), e a
portaria n.º 304-B/2015, de 22 de setembro (avaliação no ensino secundário).
Depois, ironiza o MEC: a avaliação é um elemento fundamental do
ensino, permitindo verificar o grau de aprendizagem dos alunos. Que bonito!
E: com a publicação destes diplomas
anuais ficam disponíveis para as escolas todos os elementos necessários.
Apetece-me exclamar: Porreiro, pá!
***
Por seu turno, a Anproport (a nova Associação Nacional de Professores de
Português)
enviou carta ao Ministro da Educação a solicitar que revogue a alteração da avaliação
da disciplina, por ele aprovada esta semana. No diploma, já publicado em Diário
da República, estabelece-se que, na disciplina de Português, para a Oralidade o
peso de pelo menos 20% no cálculo da classificação dos alunos, alterando assim
os 25% que lhe tinham sido atribuídos em 2012. (Note-se que Anproport
ignora que esta percentagem já vem determinada desde 2007, pela Portaria n.º 1322/2007, de 4 de
outubro, e não apenas desde 2012).
Porém, pelos vistos, Anproport não defende nenhum dos
valores percentuais, já que considera que a determinação, pelo MEC, de “um
determinado peso no cálculo da classificação a atribuir a um dos domínios do
programa vai contra a autonomia das escolas”, as quais apenas “deveriam cumprir
o que está estipulado nos documentos programáticos”, como é o caso do Programa
e Metas Curriculares de Português do Ensino Secundário, homologado em Janeiro
de 2014, defende a associação. Ora, na carta enviada a Nuno Crato, “não só não
é feita essa distribuição [peso de cada área na classificação], como o número de tempos letivos
sugeridos para a Oralidade é, em todos os anos do ensino secundário, sempre o
menor dos cinco domínios”. Os domínios estabelecidos no novo programa, que a
Anproport elogiou, da disciplina são Oralidade, Leitura, Educação Literária,
Escrita e Gramática.
Também a Anproport frisa que “em muitas escolas a discrepância
entre a classificação interna [atribuída pelos professores] e a classificação de exame obtida
pelos alunos tem sido imputada ao excessivo peso conferido à Oralidade, o que
faz com que falte tempo para as necessárias atividades de Leitura, de Escrita e
de Gramática, e estas sejam classificadas na avaliação interna com menor peso”
do que nos exames.
***
Também a FNE (Federação Nacional de
Educação), liderada pelo socialdemocrata
João Dias da Silva critica as alterações às regras de avaliação do ensino
básico, justificadas com as mudanças introduzidas na disciplina de Inglês, que
passa a ser obrigatória a partir do 3.º ano de escolaridade e que terá exame no
9.º ano a contar para a classificação final do aluno. Para a FNE, esta é uma decisão
“inoportuna, desnecessária e sem consenso”, entendendo-se mal
“Que, em final de mandato, um ministro
entenda alterar as regras de avaliação dos alunos do ensino básico, quando as
decisões que toma não resultam de uma necessidade urgente e que, não tendo sido
adotadas em tempo oportuno, deveriam aguardar a serenidade que se espera de um
novo governante que dentro de dois meses deverá estar a iniciar funções”.
***
Parece-me acertada a crítica formulada pela FNE. Já, quanto à
posição da Anproport, entendo que deveria ter estudado melhor o dossiê no
atinente à legislação em vigor e aos programas da disciplina. Remeter a avaliação
das aprendizagens para os programas é inútil. O texto lacónico é comum ao
programa do ensino básico e ao do secundário:
O Decreto‐Lei n.º 139/2012, de 5 de julho, na
sua redação atual, estabelece os princípios
orientadores da organização, da gestão e do desenvolvimento dos currículos
do Ensino Básico, bem como da avaliação dos conhecimentos adquiridos e das
capacidades desenvolvidas pelos alunos destes níveis de ensino.
Os resultados dos processos avaliativos devem
contribuir para a regulação do ensino, de modo que se possam superar, em tempo
útil e de forma apropriada, dificuldades de aprendizagem, ao mesmo tempo que se
reforçam os progressos verificados. Tal implica uma avaliação processualmente
diversificada, em termos de estratégias e de recursos, que permita aos alunos
uma maior consciência dos desempenhos esperados e dos progressos obtidos.
As Metas Curriculares que acompanham este
Programa constituem o documento de referência de todos os processos
avaliativos, de acordo com o estabelecido nos descritores de desempenho. A
classificação resultante da avaliação interna no final de cada período
traduzirá, portanto, o nível de consecução dos desempenhos descritos.
***
Posto isto, ou o Governo
mantém a legitimidade de regulamentar a avaliação via despacho ou portaria, o
que não é aceitável, ou os conselhos pedagógicos devem, na definição de critérios
de avaliação, ter em conta a distribuição percentual proposta pelos professores
para cada um dos domínios da lecionação disciplina, em vez de determinarem administrativamente
quantos testes por período e se o seu peso é de 50%... ou 70% em confronto com outros
trabalhos, oralidade e atitudes e comportamentos que traduzem valores. Depois,
o professor é que deveria ser responsável pela avaliação, cabendo ao conselho
de turma intervir apenas em caso de manifesta incoerência entre o juízo do
professor sobre o aluno e a classificação atribuída.
Mais: o professor deve, sim,
elaborar a matriz de teste para sua orientação, correspondendo ao que
efetivamente lecionou, e não para a fornecer aos alunos (o que o aluno medíocre pretende saber é o que
efetivamente calha do teste e não os critérios), ao contrário das informações
de exame do IAVE, já que, no dos exames, se trata de provas públicas, sujeitas
a escrutínio, incluindo o pedido de revisão de classificação. De resto, “judicializar”
a educação com intervenção, muitas vezes sem justificação razoável (outras vezes afrontosa),
com pedidos de classificação interna, tendo em conta os testes ou a bondade natural
do aluno e a eventual antipatia do docente… que educação!
2015.09.27 – Louro de
Carvalho
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