sábado, 26 de setembro de 2015

Dramático discurso de Francisco no 70.º aniversário da ONU

Foi um discurso abrangente, dirigido “em nome de toda a comunidade católica” à “assembleia das nações unidas” e, através dela, aos “cidadãos de todas as nações representadas neste encontro”, em que o Papa agradece “os esforços de todos e de cada um em prol do bem da humanidade”, denuncia os males e adianta pistas de solução, com base na dignidade humana.
Reconhece que nenhum dos seus predecessores que usaram da palavra naquele areópago mundial “poupou expressões de reconhecido apreço pela Organização, considerando-a a resposta jurídica e política adequada para o momento histórico, caraterizado pela superação das distâncias e das fronteiras graças à tecnologia e, aparentemente, à superação de qualquer limite natural à afirmação do poder”. Mais: considerando-a “uma resposta imprescindível, dado que o poder tecnológico, nas mãos de ideologias nacionalistas ou falsamente universalistas, é capaz de produzir atrocidades tremendas”, sublinha “a importância que a Igreja Católica reconhece a esta instituição e as esperanças que coloca nas suas atividades”.
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Por isso e antes de mais, salienta muitos aspetos positivos.
Atribui à “história da comunidade organizada dos Estados, representada pelas Nações Unidas”, “uma história de importantes sucessos comuns, num período de inusual aceleração dos acontecimentos”, que menciona sem pretensão de exaustividade:
Codificação e desenvolvimento do direito internacional; construção da normativa internacional dos direitos humanos; aperfeiçoamento do direito humanitário; solução de muitos conflitos; operações de paz e reconciliação; e muitas outras aquisições em todos os setores da projeção internacional das atividades humanas.

“São luzes que contrastam com a obscuridade” decorrente de “ambições descontroladas e egoísmos coletivos”. E, se restam “muitos os problemas graves por resolver”, também é certo que, faltando “toda esta atividade internacional”, a humanidade não sobreviveria “ao uso descontrolado das suas próprias potencialidades”. Ou seja, “cada um destes avanços políticos, jurídicos e técnicos representa um percurso de concretização do ideal da fraternidade humana e um meio para a sua maior realização”. Assim, Francisco não deixa de prestar a devida homenagem “a todos os homens e mulheres que serviram, com lealdade e sacrifício, a humanidade inteira nestes 70 anos”, sobretudo os que “deram a vida pela paz e a reconciliação dos povos, desde Dag Hammarskjöld até aos inúmeros funcionários, de qualquer grau, caídos nas missões humanitárias de paz e reconciliação”.
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Depois, vem o elenco daquilo que é preciso reformar:
- Conceder a todos os países, sem exceção, a participação e a incidência reais e equitativas nas decisões. E a necessidade de maior equidade estende-se aos “órgãos com capacidade executiva real, como o Conselho de Segurança, os organismos financeiros e os grupos ou mecanismos criados especificamente para enfrentar as crises económicas”.
- “Limitar o abuso ou usura especialmente sobre países em vias de desenvolvimento”. É preciso evitar a “sujeição sufocante desses países a sistemas de crédito que, longe de promover o progresso, submetem as populações a mecanismos de maior pobreza, exclusão e dependência”.
- Efetivar a distribuição do poder (político, económico, militar, tecnológico, etc.) entre uma pluralidade de sujeitos e criar um sistema jurídico de regulação das reivindicações e dos interesses que realize a limitação do poder.
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O Pontífice estriba as suas observações na carta das Nações Unidas e na doutrina do Direito:
A tarefa das Nações Unidas (…) pode ser vista como o desenvolvimento e a promoção da soberania do direito, sabendo que a justiça é um requisito indispensável para se realizar o ideal da fraternidade universal. Neste contexto, convém recordar que a limitação do poder é uma ideia implícita no conceito de direito. Dar a cada um o que lhe é devido (…) significa que nenhum indivíduo ou grupo humano se pode considerar omnipotente, autorizado a pisar a dignidade e os direitos dos outros indivíduos ou dos grupos sociais.

E evidencia o panorama mundial a apresentar “muitos direitos falsos” e amplos setores sem proteção, vítimas inclusivamente dum mau exercício do poder”. Em contraponto, destaca a fragilidade do ambiente natural e a do vasto mundo de mulheres e homens excluídos (conexos entre si) como polos de transformação em partes frágeis da realidade por parte das relações políticas e económicas preponderantes – o que leva à necessidade de “afirmar vigorosamente os seus direitos, consolidando a proteção do meio ambiente e pondo fim à exclusão”.
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Na sequência da Laudato Sí, o Papa afirma a necessidade da existência dum verdadeiro “direito do ambiente”, “porque como seres humanos fazemos parte do ambiente” (somos constituídos por vários elemento ambientais) e “vivemos em comunhão com ele”; e porque “cada uma das criaturas, especialmente os seres vivos, possui em si mesma um valor de existência, de vida, de beleza e de interdependência com outras criaturas”. A estas razões acresce o facto de os cristãos e as outras religiões monoteístas, acreditarem que “o universo provém duma decisão de amor do Criador”, que permite ao homem servir-se da criação “para o bem dos seus semelhantes e para a glória do Criador, mas sem abusar dela e muito menos sentir-se autorizado a destruí-la”.
Além disso, “o abuso e a destruição do meio ambiente aparecem associados ao processo ininterrupto de exclusão” – “uma ambição egoísta e ilimitada de poder e bem-estar material leva tanto a abusar dos meios materiais disponíveis como a excluir os fracos e os menos hábeis”. Assim se compreende que “a exclusão económica e social é uma negação total da fraternidade humana e um atentado gravíssimo aos direitos humanos e ao ambiente”:
Os mais pobres são aqueles que mais sofrem esses ataques por um triplo e grave motivo: são descartados pela sociedade, ao mesmo tempo são obrigados a viver de desperdícios, e devem injustamente sofrer as consequências do abuso do ambiente. Estes fenómenos constituem, hoje, a ‘cultura do descarte’ tão difundida e inconscientemente consolidada.

Francisco, levantando a sua voz, com a de todos os que aspiram a soluções urgentes e eficazes, saudou a adoção da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, durante a Cimeira Mundial que tinha início naquele mesmo dia 25, considerando-a um sinal importante de esperança. Não obstante, assegura que os compromissos solenemente assumidos, embora constituam certamente passo necessário para a solução dos problemas, não são suficientes. Por isso, socorrendo-se da definição clássica de justiça, contendo “uma vontade constante e perpétua” como “elemento essencial”, o Bispo de Roma, faz-se voz do mundo:
O mundo pede vivamente a todos os governantes uma vontade efetiva, prática, constante, feita de passos concretos e medidas imediatas, para preservar e melhorar o ambiente natural e superar o mais rapidamente possível o fenómeno da exclusão social e económica, com as suas tristes consequências de tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de meninos e meninas, trabalho escravo, incluindo a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e criminalidade internacional organizada.

Em face da situação, pede eficácia às instituições na luta contra estes flagelos e não a retórica de adormecimento de consciências. E, se a multiplicidade e complexidade dos problemas exigem instrumentos técnicos de medição, não se pode correr o risco do “exercício burocrático de redigir longas enumerações de bons propósitos” (metas, objectivos e indicações estatísticas) ou da convicção de que “uma solução teórica única e apriorística dará resposta a todos os desafios”.
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Vêm agora os requisitos do verdadeiro desenvolvimento:
- É preciso continuar incansavelmente o esforço de evitar a guerra entre as nações e os povos.
- O desenvolvimento integral e humano, bem como o exercício da dignidade humana, não pode ser imposto.
- Devem as pessoas tornar-se agentes do próprio destino em comunhão com os outros e num relacionamento correto com todos os ambientes onde se desenvolve a sociabilidade humana (amigos, comunidades, aldeias e vilas, escolas, empresas e sindicatos, províncias, países, etc.).
- Isto pressupõe o direito à educação – incluindo as meninas (excluídas em alguns lugares) –, assegurado no respeito e reforço do direito primário das famílias a educar e do direito das Igrejas e das agregações sociais a apoiar e colaborar com as famílias na educação”.
- Os governos devem prestar todo o apoio à família, célula-base de qualquer desenvolvimento social. E o Pontífice exige, a nível material, três coisas – casa, trabalho e terra – e, a nível espiritual, a liberdade de espírito, “que inclui a liberdade religiosa, o direito à educação e todos os outros direitos civis”.
- Como “o homem não se cria a si mesmo – Ele é espírito e vontade, mas é também natureza” – a crise ecológica, com a destruição de grande parte da biodiversidade, que pode pôr em perigo a própria existência da espécie humana, deve levar a séria reflexão da parte de todos sobre “as nefastas consequências duma irresponsável má gestão da economia mundial, guiada unicamente pela ambição de lucro e poder”.
O Papa não deixa de relacionar “a defesa do ambiente e a luta contra a exclusão com “a lei moral inscrita na própria natureza humana, que inclui a distinção natural entre homem e mulher e o respeito absoluto da vida em todas as suas fases e dimensões”.
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Depois, propõe a reflexão sobre a guerra, enquanto negação de todos os direitos e agressão dramática ao meio ambiente:
- Um desenvolvimento humano integral autêntico para todos requer o esforço contínuo de evitar a guerra entre nações e povos. Para tanto, “é preciso garantir o domínio incontrastado do direito e o recurso incansável a negociações, mediadores e arbitragem, como é proposto pela Carta das Nações Unidas, verdadeira norma jurídica fundamental”.
- A experiência mostra tanto a eficácia da plena aplicação das normas internacionais como a ineficácia da sua inobservância. No primeiro caso, obtêm-se resultados de paz; no segundo, ou seja, se “se confunde a norma com um simples instrumento que se usa quando resulta favorável e se contorna quando não o é, abre-se uma verdadeira caixa de Pandora com forças incontroláveis, que prejudicam seriamente as populações inermes, o ambiente cultural e o ambiente biológico”.
- Contrasta com a regra de ouro das Nações Unidas – a paz, a solução pacífica das controvérsias e o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações – “a tendência sempre presente para a proliferação das armas, especialmente as de destruição em massa, como o podem ser as armas nucleares” ou “uma ética e um direito baseados na ameaça da destruição recíproca”, que se tornariam num dolo em toda a construção das Nações Unidas, unidas apenas pelo medo e pela desconfiança.
- É preciso trabalhar por um mundo sem armas nucleares, aplicando, na letra e no espírito, o Tratado de Não-Proliferação para se chegar a uma proibição total destes instrumentos.
- Porque não faltam provas graves das consequências negativas de intervenções políticas e militares não coordenadas entre os membros da comunidade internacional, o Papa não pôde deixar de reiterar os seus apelos em relação à situação do Médio Oriente, do Norte de África e de outros países africanos, onde os cristãos, com outros grupos culturais ou étnicos e também com aquela parte dos membros da religião maioritária que não quer deixar-se envolver pelo ódio e loucura, foram obrigados testemunhar a destruição dos lugares de culto, do património cultural e religioso, das casas e haveres, e foram postos perante a alternativa de escapar ou pagar a adesão ao bem e à paz com a vida ou com a escravidão.
- Além da perseguição religiosa ou cultural, tem em mente toda a situação de conflito, como na Ucrânia, Síria, Iraque, Líbia, Sudão do Sul e nos Grandes Lagos, em que, antes dos interesses de parte, mesmo legítimos, existem rostos concretos: pessoas, nossos irmãos e irmãs, homens e mulheres, jovens e idosos, meninos e meninas que choram, sofrem e morrem – seres humanos tornados material de descarte, enquanto mais não se faz senão enumerar problemas, estratégias e discussões.
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Finalmente, vem a denúncia da conflitualidade silenciosa, que arrasta consigo a morte de milhões de pessoas. É o narcotráfico, “acompanhado pelo tráfico de pessoas, lavagem de dinheiro, tráfico de armas, exploração infantil e outras formas de corrupção” – corrupção que penetrou nos diferentes níveis da vida (social, política, militar, artística e religiosa), gerando, em muitos casos, uma estrutura paralela que põe em perigo a credibilidade das instituições.
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Citando Paulo VI, exclama: “Eis chegada a hora em que se impõe uma pausa, um momento de recolhimento, de reflexão, quase de oração: pensar de novo na nossa comum origem, na nossa história, no nosso destino comum. Nunca, como hoje, (…) foi tão necessário o apelo à consciência moral do homem. Porque o perigo não vem nem do progresso nem da ciência, que, bem utilizados, poderão, pelo contrário, resolver um grande número dos graves problemas que assaltam a humanidade”.
Com efeito, Francisco entende que “a casa comum de todos os homens deve continuar a erguer-se sobre a reta compreensão da fraternidade universal e sobre o respeito pela sacralidade de cada vida humana, de cada homem e de cada mulher; dos pobres, dos idosos, das crianças, dos doentes, dos nascituros, dos desempregados, dos abandonados, daqueles que são vistos como descartáveis porque considerados meramente como números desta ou daquela estatística”. E deve “edificar-se também sobre a compreensão duma certa sacralidade da natureza criada”.
E, citando a sua notável Evangelii gaudium (n.º 223), sustenta: “O tempo presente convida-nos a privilegiar ações que possam gerar novos dinamismos na sociedade e frutifiquem em acontecimentos históricos importantes e positivos”.
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Eis um discurso de dimensão universal, em que parece nada ter ficado por dizer, que merece leitura e releitura, reflexão e prática, nomeadamente através da educação pelos valores, logo desde os primeiros anos.

2015.09.26 – Louro de Carvalho

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