Foi
um discurso abrangente, dirigido “em nome de toda a comunidade católica” à
“assembleia das nações unidas” e, através dela, aos “cidadãos de todas as
nações representadas neste encontro”, em que o Papa agradece “os esforços de
todos e de cada um em prol do bem da humanidade”, denuncia os males e adianta
pistas de solução, com base na dignidade humana.
Reconhece
que nenhum dos seus predecessores que usaram da palavra naquele areópago
mundial “poupou expressões de reconhecido apreço pela Organização,
considerando-a a resposta jurídica e política adequada para o momento
histórico, caraterizado pela superação das distâncias e das fronteiras graças à
tecnologia e, aparentemente, à superação de qualquer limite natural à afirmação
do poder”. Mais: considerando-a “uma resposta imprescindível, dado que o poder
tecnológico, nas mãos de ideologias nacionalistas ou falsamente universalistas,
é capaz de produzir atrocidades tremendas”, sublinha “a importância que a Igreja
Católica reconhece a esta instituição e as esperanças que coloca nas suas atividades”.
***
Por
isso e antes de mais, salienta muitos aspetos
positivos.
Atribui
à “história da comunidade organizada dos Estados, representada pelas Nações
Unidas”, “uma história de importantes sucessos comuns, num período de inusual
aceleração dos acontecimentos”, que menciona sem pretensão de exaustividade:
Codificação e desenvolvimento do direito
internacional; construção da normativa internacional dos direitos humanos; aperfeiçoamento
do direito humanitário; solução de muitos conflitos; operações de paz e
reconciliação; e muitas outras aquisições em todos os setores da projeção
internacional das atividades humanas.
“São
luzes que contrastam com a obscuridade” decorrente de “ambições descontroladas
e egoísmos coletivos”. E, se restam “muitos os problemas graves por resolver”,
também é certo que, faltando “toda esta atividade internacional”, a humanidade não
sobreviveria “ao uso descontrolado das suas próprias potencialidades”. Ou seja,
“cada um destes avanços políticos, jurídicos e técnicos representa um percurso
de concretização do ideal da fraternidade humana e um meio para a sua maior
realização”. Assim, Francisco não deixa de prestar a devida homenagem “a todos
os homens e mulheres que serviram, com lealdade e sacrifício, a humanidade
inteira nestes 70 anos”, sobretudo os que “deram a vida pela paz e a
reconciliação dos povos, desde Dag Hammarskjöld até aos inúmeros funcionários,
de qualquer grau, caídos nas missões humanitárias de paz e reconciliação”.
***
Depois,
vem o elenco daquilo que é preciso
reformar:
- Conceder a todos os países, sem exceção, a
participação e a incidência reais e equitativas nas decisões. E a necessidade
de maior equidade estende-se aos “órgãos com capacidade executiva real, como o
Conselho de Segurança, os organismos financeiros e os grupos ou mecanismos
criados especificamente para enfrentar as crises económicas”.
- “Limitar o abuso ou usura especialmente sobre
países em vias de desenvolvimento”. É preciso evitar a “sujeição sufocante
desses países a sistemas de crédito que, longe de promover o progresso,
submetem as populações a mecanismos de maior pobreza, exclusão e dependência”.
- Efetivar a distribuição do poder (político, económico,
militar, tecnológico, etc.) entre uma pluralidade de sujeitos e criar um sistema
jurídico de regulação das reivindicações e dos interesses que realize a
limitação do poder.
***
O
Pontífice estriba as suas observações na carta das Nações Unidas e na doutrina
do Direito:
A tarefa das Nações Unidas (…) pode ser
vista como o desenvolvimento e a promoção da soberania do direito, sabendo que
a justiça é um requisito indispensável para se realizar o ideal da fraternidade
universal. Neste contexto, convém recordar que a limitação do poder é uma ideia
implícita no conceito de direito. Dar a cada um o que lhe é devido (…) significa
que nenhum indivíduo ou grupo humano se pode considerar omnipotente, autorizado
a pisar a dignidade e os direitos dos outros indivíduos ou dos grupos sociais.
E
evidencia o panorama mundial a apresentar “muitos direitos falsos” e amplos setores
sem proteção, vítimas inclusivamente dum mau exercício do poder”. Em
contraponto, destaca a fragilidade do ambiente
natural e a do vasto mundo de mulheres
e homens excluídos (conexos entre si) como polos de transformação em partes frágeis da realidade
por parte das relações políticas e económicas preponderantes – o que leva à
necessidade de “afirmar vigorosamente os seus direitos, consolidando a proteção
do meio ambiente e pondo fim à exclusão”.
***
Na
sequência da Laudato Sí, o Papa
afirma a necessidade da existência dum verdadeiro “direito do ambiente”, “porque como seres humanos fazemos parte do
ambiente” (somos
constituídos por vários elemento ambientais) e “vivemos em comunhão com ele”; e porque “cada
uma das criaturas, especialmente os seres vivos, possui em si mesma um valor de
existência, de vida, de beleza e de interdependência com outras criaturas”. A
estas razões acresce o facto de os cristãos e as outras religiões monoteístas,
acreditarem que “o universo provém duma decisão de amor do Criador”, que
permite ao homem servir-se da criação “para o bem dos seus semelhantes e para a
glória do Criador, mas sem abusar dela e muito menos sentir-se autorizado a
destruí-la”.
Além
disso, “o abuso e a destruição do meio ambiente aparecem associados ao processo
ininterrupto de exclusão” – “uma ambição egoísta e ilimitada de poder e
bem-estar material leva tanto a abusar dos meios materiais disponíveis como a
excluir os fracos e os menos hábeis”. Assim se compreende que “a exclusão
económica e social é uma negação total da fraternidade humana e um atentado
gravíssimo aos direitos humanos e ao ambiente”:
Os mais pobres são aqueles que mais sofrem
esses ataques por um triplo e grave motivo: são descartados pela sociedade, ao
mesmo tempo são obrigados a viver de desperdícios, e devem injustamente sofrer
as consequências do abuso do ambiente. Estes fenómenos constituem, hoje, a
‘cultura do descarte’ tão difundida e inconscientemente consolidada.
Francisco,
levantando a sua voz, com a de todos os que aspiram a soluções urgentes e
eficazes, saudou a adoção da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável,
durante a Cimeira Mundial que tinha início naquele mesmo dia 25, considerando-a
um sinal importante de esperança. Não obstante, assegura que os compromissos
solenemente assumidos, embora constituam certamente passo necessário para a
solução dos problemas, não são suficientes. Por isso, socorrendo-se da definição
clássica de justiça, contendo “uma vontade constante e perpétua” como “elemento
essencial”, o Bispo de Roma, faz-se voz do mundo:
O mundo pede vivamente a todos os
governantes uma vontade efetiva, prática, constante, feita de passos concretos
e medidas imediatas, para preservar e melhorar o ambiente natural e superar o
mais rapidamente possível o fenómeno da exclusão social e económica, com as
suas tristes consequências de tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos e
tecidos humanos, exploração sexual de meninos e meninas, trabalho escravo,
incluindo a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e
criminalidade internacional organizada.
Em
face da situação, pede eficácia às instituições na luta contra estes flagelos e
não a retórica de adormecimento de consciências. E, se a multiplicidade e complexidade dos problemas exigem instrumentos técnicos de medição, não se
pode correr o risco do “exercício burocrático de redigir longas enumerações de
bons propósitos” (metas, objectivos e indicações estatísticas) ou da convicção de que “uma
solução teórica única e apriorística dará resposta a todos os desafios”.
***
Vêm
agora os requisitos do verdadeiro
desenvolvimento:
-
É preciso continuar incansavelmente o esforço de evitar a guerra entre as
nações e os povos.
-
O desenvolvimento integral e humano, bem como o exercício da dignidade humana,
não pode ser imposto.
-
Devem as pessoas tornar-se agentes do próprio destino em comunhão com os outros
e num relacionamento correto com todos os ambientes onde se desenvolve a
sociabilidade humana (amigos, comunidades, aldeias e vilas, escolas, empresas e
sindicatos, províncias, países, etc.).
-
Isto pressupõe o direito à educação – incluindo as meninas (excluídas em alguns
lugares) –,
assegurado no respeito e reforço do direito primário das famílias a educar e do
direito das Igrejas e das agregações sociais a apoiar e colaborar com as
famílias na educação”.
-
Os governos devem prestar todo o apoio à família, célula-base de qualquer
desenvolvimento social. E o Pontífice exige, a nível material, três coisas –
casa, trabalho e terra – e, a nível espiritual, a liberdade de espírito, “que
inclui a liberdade religiosa, o direito à educação e todos os outros direitos
civis”.
-
Como “o homem não se cria a si mesmo – Ele é espírito e vontade, mas é também
natureza” – a crise ecológica, com a destruição de grande parte da biodiversidade,
que pode pôr em perigo a própria existência da espécie humana, deve levar a
séria reflexão da parte de todos sobre “as nefastas consequências duma irresponsável
má gestão da economia mundial, guiada unicamente pela ambição de lucro e poder”.
O
Papa não deixa de relacionar “a defesa do ambiente e a luta contra a exclusão
com “a lei moral inscrita na própria natureza humana, que inclui a distinção
natural entre homem e mulher e o respeito absoluto da vida em todas as suas
fases e dimensões”.
***
Depois,
propõe a reflexão sobre a guerra,
enquanto negação de todos os direitos e agressão dramática ao meio ambiente:
-
Um desenvolvimento humano integral autêntico para todos requer o esforço
contínuo de evitar a guerra entre nações e povos. Para tanto, “é preciso
garantir o domínio incontrastado do direito e o recurso incansável a
negociações, mediadores e arbitragem, como é proposto pela Carta das Nações Unidas,
verdadeira norma jurídica fundamental”.
-
A experiência mostra tanto a eficácia da plena aplicação das normas
internacionais como a ineficácia da sua inobservância. No primeiro caso,
obtêm-se resultados de paz; no segundo, ou seja, se “se confunde a norma com um
simples instrumento que se usa quando resulta favorável e se contorna quando
não o é, abre-se uma verdadeira caixa de Pandora com forças incontroláveis, que
prejudicam seriamente as populações inermes, o ambiente cultural e o ambiente biológico”.
-
Contrasta com a regra de ouro das Nações Unidas – a paz, a solução pacífica das controvérsias e o desenvolvimento de relações
amistosas entre as nações – “a tendência sempre presente para a
proliferação das armas, especialmente as de destruição em massa, como o podem
ser as armas nucleares” ou “uma ética e um direito baseados na ameaça da
destruição recíproca”, que se tornariam num dolo em toda a construção das
Nações Unidas, unidas apenas pelo medo e pela desconfiança.
-
É preciso trabalhar por um mundo sem armas nucleares, aplicando, na letra e no
espírito, o Tratado de Não-Proliferação
para se chegar a uma proibição total destes instrumentos.
-
Porque não faltam provas graves das consequências negativas de intervenções
políticas e militares não coordenadas entre os membros da comunidade
internacional, o Papa não pôde deixar de reiterar os seus apelos em relação à situação
do Médio Oriente, do Norte de África e de outros países africanos, onde os
cristãos, com outros grupos culturais ou
étnicos e também com aquela parte dos membros da religião maioritária que não
quer deixar-se envolver pelo ódio e loucura, foram obrigados testemunhar a
destruição dos lugares de culto, do património cultural e religioso, das casas
e haveres, e foram postos perante a alternativa de escapar ou pagar a adesão ao
bem e à paz com a vida ou com a escravidão.
-
Além da perseguição religiosa ou cultural, tem em mente toda a situação de
conflito, como na Ucrânia, Síria, Iraque, Líbia, Sudão do Sul
e nos Grandes Lagos, em que, antes dos interesses de parte, mesmo legítimos,
existem rostos concretos: pessoas, nossos irmãos e irmãs, homens e mulheres,
jovens e idosos, meninos e meninas que choram, sofrem e morrem – seres humanos
tornados material de descarte, enquanto mais não se faz senão enumerar
problemas, estratégias e discussões.
***
Finalmente,
vem a denúncia da conflitualidade
silenciosa, que arrasta consigo a morte de milhões de pessoas. É o
narcotráfico, “acompanhado pelo tráfico de pessoas, lavagem de dinheiro,
tráfico de armas, exploração infantil e outras formas de corrupção” – corrupção
que penetrou nos diferentes níveis da vida (social, política, militar, artística e religiosa), gerando, em muitos
casos, uma estrutura paralela que põe em perigo a credibilidade das
instituições.
***
Citando
Paulo VI, exclama: “Eis chegada a hora em que se impõe uma pausa, um momento de
recolhimento, de reflexão, quase de oração: pensar de novo na nossa comum
origem, na nossa história, no nosso destino comum. Nunca, como hoje, (…) foi
tão necessário o apelo à consciência moral do homem. Porque o perigo não vem
nem do progresso nem da ciência, que, bem utilizados, poderão, pelo contrário,
resolver um grande número dos graves problemas que assaltam a humanidade”.
Com
efeito, Francisco entende que “a casa comum de todos os homens deve continuar a
erguer-se sobre a reta compreensão da fraternidade universal e sobre o respeito
pela sacralidade de cada vida humana, de cada homem e de cada mulher; dos
pobres, dos idosos, das crianças, dos doentes, dos nascituros, dos
desempregados, dos abandonados, daqueles que são vistos como descartáveis
porque considerados meramente como números desta ou daquela estatística”. E deve
“edificar-se também sobre a compreensão duma certa sacralidade da natureza
criada”.
E,
citando a sua notável Evangelii gaudium (n.º 223), sustenta: “O tempo presente convida-nos
a privilegiar ações que possam gerar novos dinamismos na sociedade e
frutifiquem em acontecimentos históricos importantes e positivos”.
***
Eis
um discurso de dimensão universal, em que parece nada ter ficado por dizer, que
merece leitura e releitura, reflexão e prática, nomeadamente através da
educação pelos valores, logo desde os primeiros anos.
2015.09.26 –
Louro de Carvalho
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