sábado, 26 de setembro de 2015

A narrativa do Novo Banco segundo o diretor do SOL

O diretor do semanário Sol, que foi outrora diretor do Expresso, lamentou, em texto publicado no número de hoje do semanário que dirige, o facto de “a venda falhada do Novo Banco, que fez subir o défice do ano económico de 2014 de 4,7% para 7,2%”, ter sido transformada em tema de campanha eleitoral. E a razão de rotular o facto como lamentável é o seu entendimento de que a questão nada tem a “ver com a campanha nem com os partidos nela envolvidos”.
É preciso, desde já, esclarecer que não é da competência do “artista intelectual” definir os temas que podem ou não ser abordados no âmbito das campanhas eleitorais nem determinar aquilo que é objeto da reflexão e das propostas dos partidos políticos.
As campanhas eleitorais têm em vista eleições com objeto específico, cabendo às candidaturas intervenientes selecionar os temas que julgarem pertinentes e aos comentadores e eleitores fazer a posteriori os correspondentes julgamentos sobre a adequação da seleção dos possíveis temas e do seu tratamento. E, em especial, as eleições legislativas, dado que se destinam à eleição dos deputados na Assembleia da República, da qual dimana o Governo, têm uma panóplia possível e quase infinda de temas praticamente não excluíveis à partida, uma vez que está em causa toda a vida nacional e a relação com o exterior.
No atinente aos partidos políticos, já que é neles que assenta a base da democracia representativa, é da sua inteira responsabilidade a escolha das matérias com que se apresentam ao eleitorado, o qual fará, em face do mérito ou demérito das propostas, o seu juízo de escolha. Além disso, os partidos – uma vez que a sua vocação é intervir na condução das sociedades governando, opondo-se à governação e constituindo uma válida alternativa, cooperando com ela ou configurando uma organizada e sustentável consciência crítica – devem assumir a reflexão e o debate sobre todos os temas que, direta ou indiretamente, digam respeito à vida nacional, às relações com os outros Estados e aos setores nevrálgicos da sociedade, mesmo que não necessariamente da estrita alçada do Estado.
Ademais, o “artista intelectual”, parecendo cingir-se, no seu texto mencionado, à falhada venda do Novo Banco, discorre sobre aspetos que ofendem o cidadão comum, já que perfilha uma narrativa totalmente oposta à de todos aqueles que se opõem à narrativa criada pela coligação governativa quanto à não responsabilidade do Estado e quanto à não existência presente ou futura de consequências para os contribuintes, bem como contraria as mais recentes declarações dos governantes, que já não sustentam a tese da não consequência antes afirmada e reiterada. Toda esta postura do articulista constitui uma afronta aos seus concidadãos por equivaler a considerá-los como seres não pensantes.
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O colapso do BES/GES foi, como é óbvio, da responsabilidade dos seus administradores, cabendo aqui e agora neste conceito geral todos os membros dos corpos sociais do banco e/ou das empresas a que ele esteve exposto.
Não posso, entretanto, considerar que a responsabilidade do colapso do BES/GES seja pura e simplesmente dos acionistas. Por norma, a lógica empresarial faz transferir a responsabilidade ordinária dos acionistas para a administração. É, por isso, que os administradores, além do vencimento que usualmente definem para si próprios, a par de outras mordomias financeiras e logísticas, recebem prémios de desempenho – o que logicamente deveria implicar que fossem chamados a capítulo quando o seu desempenho provoca ou permite prejuízos à empresa ou grupo empresarial.
Em contraponto, parece-me, do lado dos acionistas, que a sua responsabilidade se evidencia, a montante, quando definem, em assembleia geral, os princípios estratégicos e as grandes metas da empresa/grupo e elegem as administrações; e, a jusante, quando colocam a questão da permanência ou a total ou parcial substituição das administrações em fim de mandato, em caso de suspeita fundada de administração ruinosa, em ocasião de reperspetivação da empresa/grupo ou ainda nos casos da não distribuição de dividendos ou não investimento sem justificação aceitável. 
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Não pode o colunista diretor de jornal alinhar com o Governo no sentido de, tratando-se de instituição privada, o Estado não ter nada a ver com o caso. Há vários argumentos aduzíveis para contrariar a sua tese, como se pode verificar.
Em primeiro ligar, é de considerar o que estabelece o legislador constitucional sobre as tarefas fundamentais do Estado e sobre as incumbências prioritárias do Estado.
Quanto ao primeiro item, deve ter-se em linha de conta a alínea d) do artigo 9.º da CRP, que seleciona como uma das tarefas fundamentais do Estado: promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais. Ora, inclui-se nessa promoção a correção das vias que anulem ou dificultem a efetivação dos direitos, neste caso, económicos e sociais ou obstem à sua realização e reconhecimento.
No atinente ao segundo item, é meridianemente claro o estabelecido na alínea f) do artigo 81.º da CRP, que define como prioritária a seguinte incumbência do Estado: assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral. Quem pode assegurar, depois da leitura desta disposição constitucional, a inocência do Estado face ao BES/GES?
Depois, fazendo apelo à memória do que sucedeu, provocado pela crise internacional/nacional, registem-se os seguintes dados:
- Os bancos portugueses foram sujeitos a testes de stresse sobre a sua capacidade de resistência aos efeitos da crise. E passaram nesta prova.
- Foram os bancos que, sob o peso do seu endividamento, forçaram o pedido de intervenção externa, para a qual foi elaborado o memorando de entendimento subscrito pelos três partidos rotulados como do arco da governabilidade passando à troika a incumbência da supervisão e avaliação do desempenho do Estado português.
- Os bancos portugueses, com exceção do BES, procederam à sua recapitalização com recurso aos dinheiros para o efeito disponibilizados pela troika.
- Nem o Banco de Portugal, enquanto regulador, nem a troika nem o Governo se questionaram se por trás de tal autoinibição de acesso à capitalização, via troika, não estaria eventualmente gato escondido com rabo de fora.
Sendo assim, como é que se pode retirar ao Estado a sua responsabilidade sobre a banca? Deve ter-se em conta, nesta matéria, o artigo 101.º da CRP, que dispõe sobre o sistema financeiro o seguinte: o sistema financeiro é estruturado por lei, de modo a garantir a formação, a captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social.
Não se pode afirmar que o legislador constituinte estivesse atacado de sono durante a redação deste artigo. E é caso para questionar o nosso “artista arquiteto intelectual” por que motivo não considera mentecaptos os nossos deputados na Assembleia da República, que aprovaram a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre o caso do BES/GES e definiram a sua composição. Depois, a mesma CPI, após longo e profícuo período de trabalhos, produziu um relatório notável, embora a sua eficácia esteja eivada da falta de vontade política.
Por outro lado, o colunista não estranha que a dívida da banca – instituições privadas, exceto a CGD (Caixa Geral de Depósitos), que, embora de capitais inteiramente públicos, adota o regime de gestão privada – se tenha transferido para a alçada do Estado, engrossando a nossa dívida externa ou dívida soberana, aliás como acontece com os outros países que passaram ou estão na iminência de passar pela intervenção externa. Ora, se o Estado, em situação-limite tem de arcar com a responsabilidade da dívida da banca privada, porque não há de assumir a óbvia responsabilidade da prevenção e do acompanhamento destas instituições?
Ainda, quanto às responsabilidades dos acionistas, é preciso referir que, embora o negócio bolsista das ações constitua a modalidade de jogo em que ora se possa ganhar ora se possa perder, cabendo a cada um a decisão de avaliar o risco e de o correr, no caso do BES/GES, há de considerar-se a atitude dos acionistas – usuais ou novos – da recapitalização de 2014. Eles, efetivamente, responderam à operação lançada pela administração do Banco, mas foram escorados e animados pelas declarações públicas do Governador do Banco de Portugal e do Presidente da República, cuja autoridade é de reconhecido mérito pelos cargos públicos que ocupam, bem como pela competência académica e pela experiência profissional demonstrada nas áreas económica e financeira. Isto sem falar doutros mecanismos de ludíbrio conhecidos (papel comercial, transformação de putativos depósitos a prazo por fundos de investimento, etc.).
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É certo que o modelo seguido para responder a esse colapso foi desenhado pela Comissão Europeia – e visa exatamente colocar os governos nacionais ao abrigo dos problemas dos bancos. No entanto, porque a “resolução” constitui alternativa à nacionalização e à liquidação subsequente à declaração de falência, a responsabilidade pela sua opção cabe aos governos nacionais, já que é a eles que incumbe a ponderação dos riscos que a sua decisão possa trazer para o sistema financeiro. Por isso, não vale aduzir que, “nesse modelo, a responsabilidade pela condução desses processos é atribuída aos governadores dos bancos centrais – neste caso, ao governador do Banco de Portugal, Carlos Costa – que são legalmente independentes dos governos”.
Fico sempre com engulhos quando se argumenta com a independência desta ou daquela instituição estatal/pública em relação ao Estado. Veja-se o que estabelecem a CRP e a lei orgânica do Banco de Portugal (BdP), sobre to tema.
O artigo 102.º da CRP dispõe que “o Banco de Portugal é o banco central nacional e exerce as suas funções nos termos da lei e das normas internacionais a que o Estado Português se vincule”. E a lei orgânica do BdP estabelece: “o Banco de Portugal é uma pessoa coletiva de direito público (vd art.º 1.º da lei orgânica do BdP); a deliberação do aumento de capital deve ser autorizada pelo Ministro das Finanças (vd art.º 4.º/2); o BdP pode celebrar, em nome próprio ou em nome do Estado e por conta e ordem deste, com estabelecimentos congéneres, públicos ou privados, domiciliados no estrangeiro, acordos de compensação e pagamentos ou quaisquer contratos que sirvam as mesmas finalidades (vd art.º 22.º); e compete especialmente ao BdP, sem prejuízo dos condicionalismos decorrentes da sua participação no SEBC, agir como intermediário nas relações monetárias internacionais do Estado (vd art.º 12.º, sobretudo alínea b).
Trata-se pois, de uma independência relativa, ou seja, sem interferência na administração e na integração do e com o SEBC. De resto, é caso para perguntar como se pode falar de independência em absoluto se: como pessoa coletiva de direito público, também integra o Estado; se age como seu intermediário nas relações monetárias internacionais; se pode celebrar em nome do Estado e por conta e ordem deste, acordos de compensação e pagamentos. Nem sequer se falará de independência absoluta do Governo porquanto o BdP não pode deliberar sobre o aumento de capital sem autorização do Ministro das Finanças.
E quanto ao Governador, não pode também dizer-se independente em absoluto do estado nem Governo, já que a sua designação é feita por resolução do Conselho de Ministros (Governo), sob proposta do Ministro das Finanças e após audição por parte da comissão competente da Assembleia da República, que deve elaborar o respetivo relatório descritivo (vd n.º 1 do art.º 27.º da lei orgânica do BdP).
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No concernente à venda do Novo Banco (NB), não vale dizer que o falhanço da venda do BES não pode ser assacado ao governador Carlos Costa, que terá dado o seu melhor, mas às condições do mercado”. Hoje, sabe-se que administração liderada por Vítor Bento tinha o plano de reestruturação posto em marcha agora, depois da venda abortada do NB, e que então o BdP não aceitou.  
Depois, o “artista intelectual” afirma contraditoriamente que o Governo foi uma vítima deste processo, pois caiu sobre ele um défice adicional de 2,5%”, mas que é errado dizer que o défice de 2014 foi 7,2%, “visto que o valor correspondente a estes 2,5% será total ou parcialmente recuperado”. Quando e como será recuperado? E, se é ou se for, o Governo não é vítima!
Acha também o “colunista diretor” que não é sério “dizer que os contribuintes serão afetados, mesmo que indiretamente”. Ora, o fundo de resolução é constituído por dinheiro dos bancos subscritores. Estes bancos colocaram ali uma tranche do seu pé de meia. Daí não são deduzidos impostos para o Estado. A carga fiscal fica empobrecida, logo há prejuízo para os contribuintes (que são quem financia o Estado). Depois, a CGD, Banco do Estado, despendeu para a “resolução” o maior quinhão de verba (Estado/contribuintes). O restante foi emprestado pelo Estado, da fatia disponibilizada para o efeito pela troika, que não estava esgotada (Estado/contribuintes). Não se sabe por quanto o NB será vendido (a diferença impenderá sobre o Estado/contribuintes) nem o número nem o montante das litigâncias (que recairá sobre o Estado/contribuintes). Será preciso fazer um desenho?!
Ademais, se o fundo de resolução é que é o dono do NB, porque andaram o BdP e o Governo a fazer pressão para a venda quanto antes. Não seria o dono do NB a deliberar sobre o momento da venda, tendo em conta as condições do mercado, até porque, pelos vistos, o défice adicional é meramente contabilístico (o que, em tempos, não se verificava)?
Mas o intelectual admite: “se uma empresa devedora à CGD falir, o Estado perde dinheiro”, o que resulta do facto de o Estado ser proprietário do banco. Se uma família não pagar a prestação da casa, “os contribuintes também são afetados”.
Não obstante conclui que “a falência do BES foi da responsabilidade da família” (Será este mais um tema a discutir no próximo Sínodo dos Bispos?!), “o modelo aplicado para responder a esse colapso foi da responsabilidade da Comissão Europeia” (Coitada dela e de Durão Barroso!), “a condução do processo foi do Banco de Portugal, o Governo teve de engolir um acréscimo do défice de 2,5% sem ter qualquer intervenção no processo”.
Ele não sabe que a legislação que permitiu a aplicação da resolução ao BES/NB foi preparada à pressa, pelo Governo (que dizem não ter responsabilidade sobre o caso) entre uma quinta-feira e um domingo (DL n.º 114-A/2014, de 01 de Agosto, entrou em vigor a 2 de agosto; e DL n.º 114-B/2014, de 04 de Agosto – aprovado, promulgado e referendado a 3, domingo)? Ele não sabe que um decreto-lei, o DL n.º 114-B/2014, só entrou em vigor a 5 de agosto (o dia seguinte ao da sua publicação) depois de a resolução se tornar efetiva, a 4 de agosto?
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Porque é que isto, embora não obrigatoriamente, não pode fazer parte da matéria da campanha eleitoral?

2015.09.25 – Louro de Carvalho

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