O diretor do semanário Sol, que foi outrora diretor do Expresso,
lamentou, em texto publicado no número de hoje do semanário que dirige, o facto
de “a venda falhada do Novo Banco, que fez subir o défice do ano económico de
2014 de 4,7% para 7,2%”, ter sido transformada em tema de campanha eleitoral. E
a razão de rotular o facto como lamentável é o seu entendimento de que a
questão nada tem a “ver com a campanha nem com os partidos nela envolvidos”.
É preciso, desde já, esclarecer que não é da
competência do “artista intelectual” definir os temas que podem ou não ser
abordados no âmbito das campanhas eleitorais nem determinar aquilo que é objeto
da reflexão e das propostas dos partidos políticos.
As campanhas eleitorais têm em vista eleições com
objeto específico, cabendo às candidaturas intervenientes selecionar os temas
que julgarem pertinentes e aos comentadores e eleitores fazer a posteriori os correspondentes
julgamentos sobre a adequação da seleção dos possíveis temas e do seu
tratamento. E, em especial, as eleições legislativas, dado que se destinam à
eleição dos deputados na Assembleia da República, da qual dimana o Governo, têm
uma panóplia possível e quase infinda de temas praticamente não excluíveis à
partida, uma vez que está em causa toda a vida nacional e a relação com o
exterior.
No atinente aos partidos políticos, já que é neles que
assenta a base da democracia representativa, é da sua inteira responsabilidade
a escolha das matérias com que se apresentam ao eleitorado, o qual fará, em
face do mérito ou demérito das propostas, o seu juízo de escolha. Além disso,
os partidos – uma vez que a sua vocação é intervir na condução das sociedades
governando, opondo-se à governação e constituindo uma válida alternativa,
cooperando com ela ou configurando uma organizada e sustentável consciência
crítica – devem assumir a reflexão e o debate sobre todos os temas que, direta
ou indiretamente, digam respeito à vida nacional, às relações com os outros
Estados e aos setores nevrálgicos da sociedade, mesmo que não necessariamente
da estrita alçada do Estado.
Ademais, o “artista intelectual”, parecendo cingir-se,
no seu texto mencionado, à falhada venda do Novo Banco, discorre sobre aspetos
que ofendem o cidadão comum, já que perfilha uma narrativa totalmente oposta à
de todos aqueles que se opõem à narrativa criada pela coligação governativa
quanto à não responsabilidade do Estado e quanto à não existência presente ou
futura de consequências para os contribuintes, bem como contraria as mais
recentes declarações dos governantes, que já não sustentam a tese da não
consequência antes afirmada e reiterada. Toda esta postura do articulista
constitui uma afronta aos seus concidadãos por equivaler a considerá-los como
seres não pensantes.
***
O colapso do BES/GES foi, como é óbvio, da responsabilidade dos seus
administradores, cabendo aqui e agora neste conceito geral todos os membros dos
corpos sociais do banco e/ou das empresas a que ele esteve exposto.
Não posso, entretanto, considerar que a responsabilidade do colapso do
BES/GES seja pura e simplesmente dos acionistas. Por norma, a lógica
empresarial faz transferir a responsabilidade ordinária dos acionistas para a
administração. É, por isso, que os administradores, além do vencimento que
usualmente definem para si próprios, a par de outras mordomias financeiras e
logísticas, recebem prémios de desempenho – o que logicamente deveria implicar
que fossem chamados a capítulo quando o seu desempenho provoca ou permite
prejuízos à empresa ou grupo empresarial.
Em contraponto, parece-me, do lado dos acionistas, que a sua
responsabilidade se evidencia, a montante, quando definem, em assembleia geral,
os princípios estratégicos e as grandes metas da empresa/grupo e elegem as
administrações; e, a jusante, quando colocam a questão da permanência ou a
total ou parcial substituição das administrações em fim de mandato, em caso de
suspeita fundada de administração ruinosa, em ocasião de reperspetivação da
empresa/grupo ou ainda nos casos da não distribuição de dividendos ou não
investimento sem justificação aceitável.
***
Não pode o colunista diretor de jornal alinhar com o Governo no sentido de,
tratando-se de instituição privada, o Estado não ter nada a ver com o caso. Há
vários argumentos aduzíveis para contrariar a sua tese, como se pode verificar.
Em primeiro ligar, é de considerar o que estabelece o legislador
constitucional sobre as tarefas fundamentais do Estado e sobre as incumbências
prioritárias do Estado.
Quanto
ao primeiro item, deve ter-se em linha de conta a alínea d) do artigo 9.º da CRP, que
seleciona como uma das tarefas fundamentais
do Estado: promover
o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os
portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais
e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas
e sociais. Ora,
inclui-se nessa promoção a correção das vias que anulem ou dificultem a
efetivação dos direitos, neste caso, económicos e sociais ou obstem à sua
realização e reconhecimento.
No atinente ao segundo item, é meridianemente claro o
estabelecido na alínea f) do artigo 81.º da CRP, que define
como prioritária a seguinte incumbência do Estado: assegurar o
funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada
concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização
monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas
lesivas do interesse geral.
Quem pode assegurar, depois da leitura desta disposição constitucional, a
inocência do Estado face ao BES/GES?
Depois, fazendo apelo à memória
do que sucedeu, provocado pela crise internacional/nacional, registem-se os
seguintes dados:
- Os bancos portugueses foram
sujeitos a testes de stresse sobre a sua capacidade de resistência aos efeitos
da crise. E passaram nesta prova.
- Foram os bancos que, sob o peso
do seu endividamento, forçaram o pedido de intervenção externa, para a qual foi
elaborado o memorando de entendimento subscrito pelos três partidos rotulados
como do arco da governabilidade passando à troika a incumbência da supervisão e
avaliação do desempenho do Estado português.
- Os bancos portugueses, com
exceção do BES, procederam à sua recapitalização com recurso aos dinheiros para
o efeito disponibilizados pela troika.
- Nem o Banco de Portugal,
enquanto regulador, nem a troika nem o Governo se questionaram se por trás de
tal autoinibição de acesso à capitalização, via troika, não estaria
eventualmente gato escondido com rabo de
fora.
Sendo assim, como é que se pode
retirar ao Estado a sua responsabilidade sobre a banca? Deve ter-se em conta,
nesta matéria, o artigo 101.º da CRP, que dispõe sobre o sistema financeiro o
seguinte: o sistema financeiro é
estruturado por lei, de modo a garantir a formação, a captação e a segurança
das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao
desenvolvimento económico e social.
Não se pode afirmar que o
legislador constituinte estivesse atacado de sono durante a redação deste
artigo. E é caso para questionar o nosso “artista arquiteto intelectual” por
que motivo não considera mentecaptos os nossos deputados na Assembleia da
República, que aprovaram a criação de uma CPI (Comissão
Parlamentar de Inquérito)
sobre o caso do BES/GES e definiram a sua composição. Depois, a mesma CPI, após
longo e profícuo período de trabalhos, produziu um relatório notável, embora a
sua eficácia esteja eivada da falta de vontade política.
Por outro lado, o colunista não
estranha que a dívida da banca – instituições privadas, exceto a CGD (Caixa
Geral de Depósitos),
que, embora de capitais inteiramente públicos, adota o regime de gestão privada
– se tenha transferido para a alçada do Estado, engrossando a nossa dívida
externa ou dívida soberana, aliás como acontece com os outros países que
passaram ou estão na iminência de passar pela intervenção externa. Ora, se o
Estado, em situação-limite tem de arcar com a responsabilidade da dívida da
banca privada, porque não há de assumir a óbvia responsabilidade da prevenção e
do acompanhamento destas instituições?
Ainda, quanto às
responsabilidades dos acionistas, é preciso referir que, embora o negócio
bolsista das ações constitua a modalidade de jogo em que ora se possa ganhar
ora se possa perder, cabendo a cada um a decisão de avaliar o risco e de o
correr, no caso do BES/GES, há de considerar-se a atitude dos acionistas –
usuais ou novos – da recapitalização de 2014. Eles, efetivamente, responderam à
operação lançada pela administração do Banco, mas foram escorados e animados
pelas declarações públicas do Governador do Banco de Portugal e do Presidente
da República, cuja autoridade é de reconhecido mérito pelos cargos públicos que
ocupam, bem como pela competência académica e pela experiência profissional
demonstrada nas áreas económica e financeira. Isto sem falar doutros mecanismos
de ludíbrio conhecidos (papel comercial, transformação de
putativos depósitos a prazo por fundos de investimento, etc.).
***
É certo que o modelo seguido para responder a esse colapso foi desenhado
pela Comissão Europeia – e visa exatamente colocar os governos nacionais ao abrigo
dos problemas dos bancos. No entanto, porque a “resolução” constitui
alternativa à nacionalização e à liquidação subsequente à declaração de
falência, a responsabilidade pela sua opção cabe aos governos nacionais, já que
é a eles que incumbe a ponderação dos riscos que a sua decisão possa trazer
para o sistema financeiro. Por isso, não vale aduzir que, “nesse modelo, a
responsabilidade pela condução desses processos é atribuída aos governadores
dos bancos centrais – neste caso, ao governador do Banco de Portugal, Carlos
Costa – que são legalmente independentes
dos governos”.
Fico sempre com engulhos quando se argumenta com a independência desta ou
daquela instituição estatal/pública em relação ao Estado. Veja-se o que
estabelecem a CRP e a lei orgânica do Banco de Portugal (BdP), sobre to tema.
O artigo 102.º da CRP dispõe que
“o Banco de Portugal é o banco central
nacional e exerce as suas funções nos termos da lei e das normas internacionais
a que o Estado Português se vincule”. E a lei orgânica do BdP estabelece: “o Banco de Portugal é uma pessoa coletiva de
direito público (vd art.º 1.º da lei orgânica do BdP); a deliberação do aumento de capital deve ser autorizada pelo Ministro
das Finanças (vd art.º 4.º/2); o BdP pode celebrar, em nome próprio ou em nome do Estado e por conta e ordem
deste, com estabelecimentos congéneres, públicos ou privados, domiciliados no
estrangeiro, acordos de compensação e pagamentos ou quaisquer contratos que
sirvam as mesmas finalidades (vd art.º 22.º); e compete especialmente ao BdP, sem prejuízo dos condicionalismos
decorrentes da sua participação no SEBC, agir como intermediário nas relações
monetárias internacionais do Estado (vd art.º 12.º,
sobretudo alínea b).
Trata-se pois, de uma independência
relativa, ou seja, sem interferência na administração e na integração do e com o
SEBC. De resto, é caso para perguntar como se pode falar de independência em
absoluto se: como pessoa coletiva de direito público, também integra o Estado;
se age como seu intermediário nas relações monetárias internacionais; se pode
celebrar em nome do Estado e por conta e ordem deste, acordos de compensação e
pagamentos. Nem sequer se falará de independência absoluta do Governo porquanto
o BdP não pode deliberar sobre o aumento de capital sem autorização do Ministro
das Finanças.
E quanto ao Governador, não pode
também dizer-se independente em absoluto do estado nem Governo, já que a sua
designação é feita por resolução do
Conselho de Ministros (Governo), sob proposta do Ministro das Finanças e após audição por parte da
comissão competente da Assembleia da República, que deve elaborar o respetivo
relatório descritivo (vd n.º 1 do art.º 27.º da lei orgânica
do BdP).
***
No concernente
à venda do Novo Banco (NB), não
vale dizer que o falhanço da
venda do BES não pode ser assacado ao governador Carlos Costa, que terá dado o
seu melhor, mas às condições do mercado”. Hoje, sabe-se que administração liderada
por Vítor Bento tinha o plano de reestruturação posto em marcha agora, depois
da venda abortada do NB, e que então o BdP não aceitou.
Depois,
o “artista intelectual” afirma contraditoriamente que o Governo foi uma vítima deste processo, pois caiu
sobre ele um défice adicional de 2,5%”, mas que é errado dizer que o défice de
2014 foi 7,2%, “visto que o valor correspondente a estes 2,5% será total ou
parcialmente recuperado”. Quando e como será recuperado? E, se é ou se for, o Governo
não é vítima!
Acha também o “colunista diretor” que não é sério “dizer que os contribuintes serão afetados, mesmo que
indiretamente”. Ora, o fundo de resolução é constituído por dinheiro dos bancos
subscritores. Estes bancos colocaram ali uma tranche do seu pé de meia. Daí não
são deduzidos impostos para o Estado. A carga fiscal fica empobrecida, logo há prejuízo
para os contribuintes (que são quem financia o Estado). Depois, a CGD, Banco do Estado, despendeu para a “resolução”
o maior quinhão de verba (Estado/contribuintes). O restante foi emprestado pelo Estado, da fatia disponibilizada para o
efeito pela troika, que não estava esgotada (Estado/contribuintes). Não se sabe por quanto o NB será vendido (a diferença impenderá
sobre o Estado/contribuintes) nem o número
nem o montante das litigâncias (que recairá sobre o Estado/contribuintes). Será preciso fazer um desenho?!
Ademais, se o fundo de resolução é que é o dono do NB,
porque andaram o BdP e o Governo a fazer pressão para a venda quanto antes. Não
seria o dono do NB a deliberar sobre o momento da venda, tendo em conta as condições
do mercado, até porque, pelos vistos, o défice adicional é meramente contabilístico
(o que, em tempos,
não se verificava)?
Mas o intelectual admite: “se uma empresa devedora à
CGD falir, o Estado perde dinheiro”, o que resulta do facto de o Estado ser
proprietário do banco. Se uma família não pagar a prestação da casa, “os
contribuintes também são afetados”.
Não obstante conclui que “a falência do BES foi da
responsabilidade da família” (Será este mais um tema a discutir no próximo Sínodo
dos Bispos?!), “o modelo
aplicado para responder a esse colapso foi da responsabilidade da Comissão
Europeia” (Coitada dela e de Durão Barroso!), “a condução
do processo foi do Banco de Portugal, o Governo teve de engolir um acréscimo do
défice de 2,5% sem ter qualquer intervenção no processo”.
Ele não sabe que a legislação que permitiu a aplicação
da resolução ao BES/NB foi preparada à pressa, pelo Governo (que dizem
não ter responsabilidade sobre o caso) entre uma
quinta-feira e um domingo (DL n.º 114-A/2014, de 01 de Agosto, entrou em vigor a 2 de agosto;
e DL n.º 114-B/2014, de 04 de Agosto – aprovado, promulgado e referendado
a 3, domingo)? Ele não
sabe que um decreto-lei, o DL n.º 114-B/2014, só entrou
em vigor a 5 de agosto (o dia seguinte ao da sua publicação) depois de a resolução se tornar efetiva, a 4 de agosto?
***
Porque
é que isto, embora não obrigatoriamente, não pode fazer parte da matéria da campanha
eleitoral?
2015.09.25 – Louro de Carvalho
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