Constitui
o livro cujo título vem referenciado em epígrafe a sonoridade do grito da
liberdade que se sentia atacada e ferida, proferido, em nome da sociedade então
oprimida, pelo escritor Aquilino Ribeiro. Aqui deixo, para estímulo daqueles e
daquelas que hoje se submetem ao medo coletivo, um comentário a esta obra de
intervenção do homem beirão cujo 130.º aniversário do nascimento passou a 13 de
setembro passado. Daqui, uma palavra de apreço ao Município de Sernancelhe, que
evoca a efeméride com uma tertúlia no próximo dia 18.
***
A
serra é dos serranos. É lá que eles exercem vividamente o que de mais lídimo
pode aspirar-se em termos da liberdade, totalmente longe da opressão que impa
sorrateira e soberba na urbe e de que o povoado, graças ao caciquismo dos
olharapos do governo, contém significativas amostras. À serra vai o camponês
buscar o indispensável suplemento para a sua agricultura de mera subsistência,
de lá auferindo o que as courelas agricultadas com o suor do rosto lhe não
podem oferecer. O convívio com a natureza – cheia de inúmeros mistérios e
encantos, refúgios e vastidões, pureza dos ares e limpidez das águas – torna o
aldeão, mesmo que não seja um Alberto Caeiro, senhor de si próprio e rei da
criação. Vitorioso na caçada ou espreitado pelas feras, visitado pelos répteis,
ratos e toupeiras, ou acolitado pelos cães e cachorrinhos, feliz na pescaria
dos ribeiros truteiros ou sobrevoado pelas aves chilreantes ou vorazes – é o
íncola sossegado que se realiza no seu absolutismo telúrico e impõe a quem
tenha o ensejo de o surpreender por bem este modus vivendi, revelador
da áurea mediania tanto do agrado e desejo daqueles que, no comando dos povos
ou na suserania dos reinos, se veem obrigados a tomar decisões incómodas a que
não se podem esquivar, ou portador daquela paz de espírito de que parecem
carecer os que se envolvem diariamente no bulício do trabalho fabril ou na
azáfama estupidificante de quem se topa enclaustrado nas malhas do escritório
ou do gabinete, donde tantas vezes nem o sol se consegue vislumbrar.
Entretanto,
o Governo, ensimesmado no supremo retiro conventual donde emanam as decisões
mais consentâneas com o bem comum, tem um vasto plano de florestação a executar
à custa da serra e do baldio, absorvendo as eufemísticas sobras territoriais
que, da normal apropriação, ficaram para utilização dos populares em regime de
propriedade coletiva e usufruto pontual dos que primeiro acederem aos seus
magros benefícios – fenómeno verificável em largas zonas das Beiras, sobretudo
por disporem de propriedade muito dividida e, consequentemente, de áreas assaz
diminutas de cultivo. O plano, confiante na força do regime, dispensou-se do
necessário e conveniente esclarecimento e avançou com a prepotência típica do
poder autocrático e através da insolente arrogância dos funcionários que servem
acriticamente os ditames do poder reinante, considerado com invisível entidade
abstrata, não tendo em conta as vicissitudes que o trabalho no terreno lhes
evidencia nem a idiossincrasia das populações, que elas não sentem à primeira, mas
cuja epifania está reservada para o preciso momento em que seja preciso elas
usarem solidária e eficazmente da força, ocultando-se, entretanto, no pretenso
défice de esclarecimento solitário e no simplório entendimento paisano das
coisas.
***
Ora,
o livro retrata toda esta problemática socioeconómica, bombardeada pelos altos
desígnios políticos e pelo inêxito eventual ou sucesso fabricado pela mediação
dos que temerariamente se interpõem entre governantes e povo. E fá-lo em
narrativa cheia de colorido e realismo pinturesco, embora de enredamento simples,
mas polvilhado de curtos segmentos descritivos e diálogos singelos e vivos.
Aqui se podem contar: aqueles homens de aldeia que têm o seu comércio e se
posicionam como prováveis interlocutores do poder a troco de pequenas mercês,
como meia dúzia de contos de réis, um lugar na pequena política ou emprego para
os filhos; os autarcas que se apossaram dos órgãos do poder municipal por
designação governamental; e os representantes do Governo à cabeça dos
distritos. E as forças da ordem utilizam todos os meios considerados eficazes
para o avanço das obras no terreno. Se insuficientes, socorrem-se da logística
do exército cuja vocação se devia reduzir à defesa do território ante a ameaça
de invasão externa e no apoio às populações em caso de calamidade pública.
Agora, pelos vistos, o inimigo externo estava acantonado na serra e no baldio
ou na mioleira cerebral do perigoso aldeão, que reage como leoa parida perante
quem lhe ataque filhos e haveres.
Obviamente
surgem personagens com esse fumo da terra entranhado na alma, que não veem mais
nada além da serra e da leira e se mobilizam com enxadas, foices, forquilhas e
gadanhos para o combate aos dilapidadores “daquilo que é nosso”. A custo ouvem
as palavras serenas daqueles que os querem defender no valimento dos seus
direitos, se possível, na repartição ou na assembleia públicas, através da
palavra, abjurando a violência. No entanto, aparece a posição moderada e
moderadora de quem, por leitura e viagens, construiu um arcaboiço mental de
maior tolerância e expressão de ideias mais arejadas, tentando até perceber os
benefícios da mudança. Aliás, não esteve nunca na mente do escritor a repulsa
pela repulsa do dito benefício económico da florestação. Critica, sim,
asperamente: o estilo ancorado na prepotência, na arrogância e na utilização de
forças desproporcionadas; o tempo, pois, a ação florestante devia surgir na
sequência da atribuição dos benefícios de que estas gentes estavam arredadas; e
a falta de paciência e pedagogia quanto a um esclarecimento lento e acurado,
talvez sem necessidade do recurso à prévia mobilização dos simpáticos homens do
regime que habitavam a aldeia e também usufruíam eles dos benefícios da
serrania.
Enquanto
os homens do Governo persistem na utilização de todos os meios, designadamente
a força, na prossecução dos intentos governamentais, os camponeses resistem,
ferindo e matando os agressores. E são detidos para responder em tribunal
plenário, não tanto os mais aguerridos (que dispõem de
habilidade e sorte para se arredarem),
mas os mais moderados, que acabam por dar a cara e ir parar com os ossos na
masmorra – o que era consentâneo como juízo formulado pelo tribunal plenário
constituído para o julgamento sumário de crimes políticos, algures no Porto,
longe da serra e da terra, onde comparecem aldeãos rebeldes em pé de igualdade
com grevistas de uma unidade industrial (a greve era considerada
crime contra o Estado).
Os defendidos pelos advogados do regime foram absolvidos ou foram objeto de
penas mais suaves; e os que ousaram confiar a sua defesa a homens impolutos que
apostavam na verdade e na enunciação inequívoca dos direitos das gentes,
incluindo o direito à indignação e à insurreição, comeram pela medida grande em
termos de apoucamento público e de condenação penal. A par dos factos que
testemunhamos na obra, ressalta, como exceção luminosa, nesta crueza de
comportamentos tão mal dissimulada algumas vezes, a atitude de Carlos Fontalva,
homem do regime, que pelo enamoramento, embora unilateral, por uma rapariga da
aldeia serrana e pelo convívio com as populações do país profundo, acabou por
compreender e assumir a justeza das reivindicações dos campesinos e, por
consequência, proferiu depoimento, em tribunal, em favor destes homens. Por
isso, teve de trocar a comodidade de um emprego ao serviço do Estado pelo
incómodo da exoneração. Os tempos de hoje não são muito diferentes, pois não ?!
***
Porém,
a vingança serve-se fria. E o velho Teotónio Louvadeus, que fora ameaçado de
passar uns dias ou umas horas na prisão por se ter manifestado em tribunal, a
descontento dos magistrados, veio para a terra e para o seu tugúrio e vinga-se:
mata o inimigo, que obtivera emprego à custa da causa iníqua, depusera falso no
tribunal plenário e abusara da nora. Depois, escondeu-o num dos refolhos dos
soidões ribeirinhos da serra ampla e misteriosa. E a vingança passa a adquirir
contornos de ofensa à coletividade, já não só com o selo da “aldeia”, mas com a
marca do Governo. Pelas mãos incendiárias de Louvadeus, iludindo a vigilância
das brigadas florestais ou as patrulhas da Guarda Nacional Republicana, pululam
os incêndios por toda a vastidão da serra em esquemas de simultaneidade e
sucessão. É o resultado do benefício construído à custa de altos sacrifícios
para a nação e para o povo! O homem que humanizava a serra, bêbado de injusto
despeito e sequioso de inusitada vingança, transforma-se no principal agente da
sua desumanização. Triste exemplo para os tempos em que vivemos, assumido na
dialética do “acende e apaga” ou, se preferirmos, na trilogia do “incendeia,
queima e destrói”.
Toda
a trama é servida pela linguagem e pelo modo de contar aquilinianos. Veja-se,
em abono do que afirmo e para degustação sensitiva, o seguinte excerto do livro:
“Breve
lhes descaiu o focinho entre as mãos, e se deixaram como dois tios pegar do
sono e da mândria. Olho aberto, olho fechado, vigiavam o horizonte, embora ao
desdobre da vista nada se oferecesse de especial. Contra a brancura leitosa do
céu, atravessava-se lá longe a barra roxa da Serra da Estrela, e as colinas,
perto umas, remotas outras, encadeavam-se com as curvas dormentes dos vales,
baças ou mais azul-escuro que lagoas de tinta. Os lobos davam muito bem conta da
manobra pelo sonido dos chocalhos que, pouco a pouco, se ia diluindo na
distância até se desvanecer no ar como poeira fina assoprada. Mas este sonido, quando
repicava ao sabor do eco, levava-os a erguer a cabeça e a ficar atentos, de pupilas
acesas para a extensão. Não distinguindo vivalma, nem ovelha nem pastor, voltavam
a cabecear.”.
E
este, a propósito da morte do lobo, o estudante na tratamento de Louvadeus, por
ordem do povo congregado, em nome de quem Manuel da Obriga tenta eliminá-lo a
tiro:
“Deparou-se-lhe
um grande lobo que lhe dardejava, agachado por detrás dos sargaços, olhos
sonsos a fuzilar na cabeçorra meio dobrada para o chão. Sem perda de tempo,
meteu a espingarda à cara e puxou o gatilho. Chapéu, o tiro moita, e, como o
lobo lhe desse impressão de retesar-se nos jarretes para investir, ficou
assustado e sem pinga de sangue. Se a fera dava um pulo?”.
***
Bela
roupagem carregada de beleza de pormenor, leveza discursiva, concatenação de imagens
e dinamismo tranquilo nos movimentos dos animais, em contraste ora com a
timidez dos humanos quando tinham de agir contra aqueles seres, ora com o fogo vulcânico
que devora o interior dos homens em ocasiões que dão azo a atos de revolta
incontida.
Esta
é a crónica de um mundo que acaba: o dos aldeãos serranos, em quem se dão as
mãos o analfabetismo e a inteligência, a pobreza e a liberdade, a subserviência
e o sentido da dignidade. É um universo circunscrito em que a serra complementa
a agricultura de mera sobrevivência através do fornecimento daquilo que as minúsculas
leiras não têm para dar: pasto, mato, caça, água, solitude … e sobretudo a
sensação da liberdade. Na serra, o campónio era rei, como anota magistralmente
o Dr. Rigoberto. Porém, tal realeza, não compreendida pelo engenheiro Lisuarte
Streit da Fonseca, proporcionou-lhe um tiro que lhe arrancou um dos olhos e o
deixou na antecâmara da morte. “Governo para o aldeão é” – no comentário do
narrador – “sinónimo de Estado e de tudo o que dá leis, uma quadrilha do olho
vivo”.
Seria
interessante que os trabalhadores de hoje, mormente os funcionários do Estado, incluindo
os pensionistas (reformados, aposentados e jubilados), não se deixassem acabrunhar pelo
medo, pela exploração, pelo achincalhamento, pelo esbulho. Sem recurso à
violência, mas à força da razão e da sua vez e voz, este livro poderia servir
de pauta de atuação. Porém, com o império do bom senso. Caso contrário, seria
gravoso o resultado de cenas de violência individual e coletiva, de vinganças mais
subtis ou frontais. E o largo espaço da nossa “serra” social, mirado pela imensidão
ora azul ora cinzenta do céu, qual cenário múltiplo, intrincado e soberbo, se for
palco de confrontos exacerbados de novos “camponeses”, na sua maioria anónimos,
com a polícia e os vigilantes locais, acaba por ser destruído pela mão do homem,
à semelhança do fogo que tudo devora: florestas, terrenos de cultivo, armazéns,
fábricas e habitações.
Como
está o cenário de montes e vales pela florestação imposta e desordenada? Com
está o cenário socioeconómico arrebatado e desgastado por uns poucos impunes e
intocáveis?
2015.09.17 –
Louro de Carvalho
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