Li
com atenção o texto do professor Santana Castilho no Público de hoje e houve aspetos graves que me fizeram pensar no que
toca aos funcionários do Estado e sobretudo aos professores da escola pública.
Se
efetivamente os portugueses e, em especial, os governantes tivessem presente a
leitura que se deve fazer do por ele citado n.º 2 do art.º 49.º da CRP – todos os cidadãos têm o direito de acesso à
função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de
concurso – teriam abandonado de vez a tentação do compadrio (agora
eufemisticamente designado por capital de relação) e os favores políticos ou pessoais à custa dos
lugares e cargos públicos. Por via de regra, o sistema de ocupação de lugares e
cargos públicos é o concurso, mas o concurso deve ter regras formuladas em
termos de equidade e previamente conhecidas. Uma boa administração pública só
deveria admitir casos residuais de contratação/nomeação sem concurso prévio em
situações verdadeiramente excecionais e devidamente fundamentadas. Note-se que
as eleições configuram uma forma democrática de concurso.
Sendo
assim, as situações denunciadas por Castilho deveriam em bom rigor corresponder
a inverdades factuais, mas não.
Com
efeito, quanto a factos, há uma considerável margem de manobra para as escolas,
nomeadamente as abrangidas pelo regime de autonomia contratualizada e as
inseridas em TEIP (territórios educativos de intervenção
prioritária),
contratarem professores sem a submissão a um concurso. Quanto à não observância
de regras ou à sua formulação desvirtuada, acontece que professores acabados de sair da formação inicial ocupam postos de
trabalho numa escola, quando outros, do mesmo grupo de recrutamento, com
dezenas de anos de contratos consecutivos com o MEC (os contratos na escola pública são com o Estado e não com uma
qualquer entidade patronal) ficam no desemprego; e professores com 20 a 30 anos de serviço num quadro de
escola/agrupamento ou quadro de zona pedagógica veem-se recusados em favor de colegas
recém-vinculados, como sublinha Castilho, “em pleno período probatório, ou
seja, sem sequer terem um vínculo confirmado”.
E
o insigne professor e colunista refere uma situação pouco badalada, exceto no
respeitante à responsabilidade assacável a médicos que passam falsos atestados,
esquecendo outros tipos de fraudes e entidades e a omissão das necessárias
juntas médicas: dezenas
de professores que, tendo um lugar de quadro e tendo concorrido para se
aproximarem da residência, foram miseravelmente ludibriados, sem reação
adequada por parte dos sindicatos, por, afinal, os lugares para que concorreram
não existirem.
Devo dizer, antes de mais, que o professor Santana Castilho refere
estes casos num discurso interrogativo e sem descer a alguns pormenores de
formulação que aqui ficam espelhados.
***
Depois, Santana Castilho, professor coordenador de
Organização e Gestão do Ensino na Escola Superior de Educação de Santarém,
passa a comentar a notícia de que “o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tomou há dias uma decisão que visa impedir que, no espaço
comunitário, se ultrapassem 48 horas de trabalho semanal”. Mais: assegura que a
decisão do TJUE estabelece que “as deslocações de casa para o local de trabalho,
sempre que esse local seja variável, passam a contar para o cômputo final a
considerar no horário”.
Sendo assim, o professor entende que deve ser colocada a questão, “junto
dos tribunais nacionais, se a norma se aplica aos professores itinerantes,
cujos locais de trabalho são vários”. Já antes sucedia um docente ter horário
em mais que um estabelecimento, mas agora com o sistema de agrupamentos a
situação ampliou-se, passando alguns diretores a entregar essa deslocação nem sempre
a docentes menos antigos no grupo, mas a quem lhes faça sombra. Ademais, a
itinerância acontece por outros motivos, como orientação de estágio, apoio a docentes
que se encarregam de alunos com necessidades educativas especiais, etc.
Segundo um exercício de cálculo de Castilho, que, segundo ele,
“está longe de configurar as situações mais desfavoráveis”, os professores, por
via de regra trabalham muito mais que as 48 horas por semana. Vejamos:
Tome-se “por referência uma distribuição simpática de serviço, nada extrema (há
muito pior),
de um hipotético professor com 6 turmas, 25 alunos por turma” (Onde param as turmas com este número de alunos?) e “três níveis de
ensino (7.º, 8.º e 9.º anos)”; e “as 13 semanas que estão estabelecidas no calendário escolar
oficial, como duração do 1.º período lectivo de 2015-16”.
Suponha-se, “em cenários que pequem por defeito”, que “as turmas
do mesmo nível são homogéneas, não necessitando de aulas diferentes, e o
professor tem os mesmos alunos duas vezes por semana” (este professor, que não é dos, mais sobrecarregados tem, segundo o
ECD, uma redução de 8 horas na sua componente letiva, horas que terá de ocupar
em atividades de coordenação ou acompanhamento de alunos – a juntar às duas ou
três da componente não letiva de estabelecimento atribuídas a cada professor), este professor
terá que preparar 6 aulas diferentes por semana. E, para perfazer a totalidade
da sua componente letiva, ser-lhe-á atribuída uma direção de turma (duas horas para gerir os problemas da turma, fazer os convenientes
registos e atender os pais) ou mais uma turma. Admitindo que é necessária apenas uma hora de
trabalho para preparar cada lição, serão seis horas por semana. Nas 13 do período,
resultarão 78 horas.
O predito professor vai aplicar, segundo o que é usual, dois
testes ou provas a cada turma, o que dá, nas 13 semanas letivas 12 testes.
Considerando que basta uma hora para “conceber” cada teste (selecionar textos e questões, desenhar a grelha de classificação,
digitar tudo, fazer imprimir e conferir os exemplares necessários requer muito mais
tempo).
Obviamente que, a seguir, vem a correção. Ora, se o professor for experiente e
despachado, ocupa meia hora com a correção de cada um dos 300 testes. Feitas as
contas, são gastas ao todo em testes 162 horas.
Como “o que se aprende tem que ser apreendido”, vêm à baila como necessários “os exercícios de
aplicação e de pesquisa”. Então, com a “orientação para os resultados” com que
o assediam em permanência as estruturas ministeriais, os pais e os rankings, o docente não prescinde dos
trabalhos de casa e de outros tipos de práticas, nomeadamente trabalhos
individuais e/ou de grupo. Imagine-se que pede um trabalho em cada semana e que
vê cada um deles nuns simples cinco minutos (tempo
médio).
Lá se contabilizarão “mais 162 horas e meia, relativas a todo o 1.º período”.
E, se o docente reservar 2 escassas horas semanais para a sua formação
contínua (autoformação e/ou heteroformação) e atualização
científica, são mais 26 horas que devemos somar no fim.
Acrescentando, “finalmente, as horas de aulas e as denominadas
horas de componente não letiva “de estabelecimento”. São mais 318 horas e meia.
Somando tudo e dividindo pelas 13 semanas, para ver o número de
horas que o professor trabalhou em cada semana: 57 horas.
E, como diz o professor e colunista, “além disto, há atividades extracurriculares,
visitas de estudo, conversas com alunos e pais, reuniões que não caem dentro
das horas não letivas de estabelecimento e, em anos de exames/provas finais, pelo
menos, algumas aulas suplementares”. Isto, sem falar do trabalho de elaboração
de informações ou matrizes e das respetivas provas de equivalência à frequência
e necessária correção. E alguns diretores obrigam os docentes que acompanham
visitas de estudo a compensar as faltas às aulas das suas turmas que não se integram
na respetiva visita; e outros até as aulas que ficaram por lecionar, em regime
de sala de aula, nas turmas que integram a visita.
E, se o professor não tem qualquer redução da componente letiva,
os cenários são muito piores: professores com 22 horas de aulas por semana,
mais a componente não letiva; professores com uma hora ou duas por semana a
cada turma – com um excessivo número de turmas.
Porém, se os tempos letivos forem de 45 minutos, em vez de 50, lá
têm de compensar da diferença na componente letiva e na componente não letiva,
começando logo por aumentar gradativamente a componente letiva. O professor que
tinha 14 tempos passa a 15 e o que tinha 22 passa aos 24 (só para referir os extremos). E alguns diretores ainda obrigam à compensação dos 50 para 60
minutos. É para isto que serve a autonomia vigiada pelo MEC!
***
A respeito do tempo de trabalho, cujo conceito interessa aos docentes, passo à transcrição do art.º 197.º do Código
do Trabalho, que estabelece o seguinte (sublinho
alguns segmentos):
1 – Considera-se tempo de trabalho qualquer período
durante o qual o trabalhador exerce a
atividade ou permanece adstrito à realização da prestação, bem como as
interrupções e os intervalos previstos no número seguinte.
2 – Consideram-se compreendidos no tempo de trabalho:
a) A interrupção de trabalho como tal considerada em instrumento de
regulamentação coletiva de trabalho, em regulamento interno de empresa ou
resultante de uso da empresa;
b) A interrupção ocasional do período de trabalho diário inerente à
satisfação de necessidades pessoais inadiáveis do trabalhador ou resultante de
consentimento do empregador;
c) A interrupção de trabalho por motivos técnicos, nomeadamente limpeza,
manutenção ou afinação de equipamento, mudança de programa de produção, carga
ou descarga de mercadorias, falta de matéria-prima ou energia, ou por fator
climatérico que afete a atividade da empresa, ou por motivos económicos,
designadamente quebra de encomendas;
d) O intervalo para refeição em que o trabalhador tenha de permanecer no
espaço habitual de trabalho ou próximo dele, para poder ser chamado a prestar
trabalho normal em caso de necessidade;
e) A interrupção ou pausa no período de trabalho imposta por normas de
segurança e saúde no trabalho.
3 – Constitui contraordenação grave a violação do disposto no número
anterior.
O artigo define: no n.º 1, o conceito de tempo de trabalho; e n.º
2, os factos que são equivalentes ao
tempo de trabalho. Depois, no n.º 3, estabelece a tipificação da violação
da observância do disposto no n.º 2 – “contraordenação grave”.
Por seu turno, o art.º 102.º da Lei
Geral do trabalho em
Funções Públicas estabelece (sublinho):
1 — Considera-se tempo
de trabalho qualquer período durante o qual o trabalhador está a desempenhar a
atividade ou permanece adstrito à realização da prestação.
2 — Para além das
situações previstas no número anterior e no Código do Trabalho, são consideradas
tempo de trabalho as interrupções na prestação de trabalho durante o período de
presença obrigatória autorizadas pelo empregador público em casos excecionais e
devidamente fundamentados.
O
conceito de tempo de trabalho mantém-se inalterável. De resto, aplica-se o
Código do Trabalho.
Assim,
“Tempo de trabalho” não
é apenas o período durante o qual o trabalhador está a desempenhar a sua
atividade; mas cabe também nesta definição todo o período em que o trabalhador,
mesmo sem estar efetivamente a desempenhar a sua atividade, permanece adstrito
à realização da mesma.
Caraterizando-se como um conceito normativo, e não
naturalístico, o “tempo de trabalho” abrange não só os momentos em que o
trabalhador se mostra disponível para oferecer a sua prestação, como todos os
outros introduzidas por regras legais que qualifiquem como tempo de trabalho
períodos em que a atividade não é prestada e que constituem, por exemplo,
interrupções ou paragens, regra geral de curta duração, irrelevantes quando se
trata de apurar o tempo de dispêndio no cumprimento do débito laboral.
No caso dos professores, não foram eles que estabeleceram que
o tempo letivo é de 50 ou de 45 minutos. Nem são eles quem determina se os
intervalos são de 5, 10, 15 ou 20 minutos. Mas os intervalos são pedagogicamente
exigíveis. Estava determinado que o horário do professor não devia ter “furos”
(gíria escolar), ou seja, tempos de aula sem aula para si entre aulas suas,
sendo toleráveis no máximo três furos. Quanto ao mais, como pode um docente
sair do local de trabalho para fazer qualquer coisa de útil e pessoal num
intervalo de 5, 10, 15 ou 20 minutos? Porque é que os seus intervalos não são considerados
tempo de trabalho e andam a compensar o incompensável? E, graças à autonomia,
chegam a ter reuniões em plena hora de almoço!
***
Razão tem o professor Castilho quando pergunta: Será normal que os professores portugueses estejam coagidos a semanas
de trabalho com duração superior às 48 horas, que o Tribunal de Justiça da
União Europeia definiu como linha vermelha?
Efetivamente só com professores anestesiados e “domados” – com
medo da aproximação da precariedade, do ascendente dos pais, da pressão de
diretores e do MEC e de muitos alunos indisciplinados sentindo as costas
quentes – que “regressaram aos seus postos, tristes, desmotivados e descrentes”,
o MEC pôde construir a imagem de “normalidade” que perdura neste início de ano letivo, “pelo
menos” – afirma o professor – “como tal se vai falando na comunicação social,
na ausência dos escândalos que marcaram o ano passado”.
Ironicamente só não tem razão quando refere que “em plena campanha
eleitoral, a Educação parece ser um grande tabu, protegida por um qualquer acordo
entre os protagonistas, de referir pouco, de aprofundar ainda menos”: hoje
mesmo, uma candidatura partidária, embora tenha dito pouco, falou
abundantemente da Educação.
***
A saga dos professores tem muito a ver com a seguinte asserção do
filósofo espanhol Fernando Savater:
Os pais e as mães que não exerceram a sua autoridade sobre os
filhos tentam exercê-la sobre os professores, confrontando-os para que outros
façam o que eles deviam ter feito.
2015.09.23 – Louro de
Carvalho
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