quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Depois, os professores não hão de andar esgotados!

Li com atenção o texto do professor Santana Castilho no Público de hoje e houve aspetos graves que me fizeram pensar no que toca aos funcionários do Estado e sobretudo aos professores da escola pública.
Se efetivamente os portugueses e, em especial, os governantes tivessem presente a leitura que se deve fazer do por ele citado n.º 2 do art.º 49.º da CRP – todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso – teriam abandonado de vez a tentação do compadrio (agora eufemisticamente designado por capital de relação) e os favores políticos ou pessoais à custa dos lugares e cargos públicos. Por via de regra, o sistema de ocupação de lugares e cargos públicos é o concurso, mas o concurso deve ter regras formuladas em termos de equidade e previamente conhecidas. Uma boa administração pública só deveria admitir casos residuais de contratação/nomeação sem concurso prévio em situações verdadeiramente excecionais e devidamente fundamentadas. Note-se que as eleições configuram uma forma democrática de concurso.
Sendo assim, as situações denunciadas por Castilho deveriam em bom rigor corresponder a inverdades factuais, mas não.
Com efeito, quanto a factos, há uma considerável margem de manobra para as escolas, nomeadamente as abrangidas pelo regime de autonomia contratualizada e as inseridas em TEIP (territórios educativos de intervenção prioritária), contratarem professores sem a submissão a um concurso. Quanto à não observância de regras ou à sua formulação desvirtuada, acontece que professores acabados de sair da formação inicial ocupam postos de trabalho numa escola, quando outros, do mesmo grupo de recrutamento, com dezenas de anos de contratos consecutivos com o MEC (os contratos na escola pública são com o Estado e não com uma qualquer entidade patronal) ficam no desemprego; e professores com 20 a 30 anos de serviço num quadro de escola/agrupamento ou quadro de zona pedagógica veem-se recusados em favor de colegas recém-vinculados, como sublinha Castilho, “em pleno período probatório, ou seja, sem sequer terem um vínculo confirmado”.
E o insigne professor e colunista refere uma situação pouco badalada, exceto no respeitante à responsabilidade assacável a médicos que passam falsos atestados, esquecendo outros tipos de fraudes e entidades e a omissão das necessárias juntas médicas: dezenas de professores que, tendo um lugar de quadro e tendo concorrido para se aproximarem da residência, foram miseravelmente ludibriados, sem reação adequada por parte dos sindicatos, por, afinal, os lugares para que concorreram não existirem.
Devo dizer, antes de mais, que o professor Santana Castilho refere estes casos num discurso interrogativo e sem descer a alguns pormenores de formulação que aqui ficam espelhados.
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Depois, Santana Castilho, professor coordenador de Organização e Gestão do Ensino na Escola Superior de Educação de Santarém, passa a comentar a notícia de que “o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tomou há dias uma decisão que visa impedir que, no espaço comunitário, se ultrapassem 48 horas de trabalho semanal”. Mais: assegura que a decisão do TJUE estabelece que “as deslocações de casa para o local de trabalho, sempre que esse local seja variável, passam a contar para o cômputo final a considerar no horário”.
Sendo assim, o professor entende que deve ser colocada a questão, “junto dos tribunais nacionais, se a norma se aplica aos professores itinerantes, cujos locais de trabalho são vários”. Já antes sucedia um docente ter horário em mais que um estabelecimento, mas agora com o sistema de agrupamentos a situação ampliou-se, passando alguns diretores a entregar essa deslocação nem sempre a docentes menos antigos no grupo, mas a quem lhes faça sombra. Ademais, a itinerância acontece por outros motivos, como orientação de estágio, apoio a docentes que se encarregam de alunos com necessidades educativas especiais, etc.
Segundo um exercício de cálculo de Castilho, que, segundo ele, “está longe de configurar as situações mais desfavoráveis”, os professores, por via de regra trabalham muito mais que as 48 horas por semana. Vejamos:
Tome-se “por referência uma distribuição simpática de serviço, nada extrema (há muito pior), de um hipotético professor com 6 turmas, 25 alunos por turma” (Onde param as turmas com este número de alunos?) e “três níveis de ensino (7.º, 8.º e 9.º anos)”; e “as 13 semanas que estão estabelecidas no calendário escolar oficial, como duração do 1.º período lectivo de 2015-16”.
Suponha-se, “em cenários que pequem por defeito”, que “as turmas do mesmo nível são homogéneas, não necessitando de aulas diferentes, e o professor tem os mesmos alunos duas vezes por semana” (este professor, que não é dos, mais sobrecarregados tem, segundo o ECD, uma redução de 8 horas na sua componente letiva, horas que terá de ocupar em atividades de coordenação ou acompanhamento de alunos – a juntar às duas ou três da componente não letiva de estabelecimento atribuídas a cada professor), este professor terá que preparar 6 aulas diferentes por semana. E, para perfazer a totalidade da sua componente letiva, ser-lhe-á atribuída uma direção de turma (duas horas para gerir os problemas da turma, fazer os convenientes registos e atender os pais) ou mais uma turma. Admitindo que é necessária apenas uma hora de trabalho para preparar cada lição, serão seis horas por semana. Nas 13 do período, resultarão 78 horas.
O predito professor vai aplicar, segundo o que é usual, dois testes ou provas a cada turma, o que dá, nas 13 semanas letivas 12 testes. Considerando que basta uma hora para “conceber” cada teste (selecionar textos e questões, desenhar a grelha de classificação, digitar tudo, fazer imprimir e conferir os exemplares necessários requer muito mais tempo). Obviamente que, a seguir, vem a correção. Ora, se o professor for experiente e despachado, ocupa meia hora com a correção de cada um dos 300 testes. Feitas as contas, são gastas ao todo em testes 162 horas.
Como “o que se aprende tem que ser apreendido”, vêm à baila como necessários “os exercícios de aplicação e de pesquisa”. Então, com a “orientação para os resultados” com que o assediam em permanência as estruturas ministeriais, os pais e os rankings, o docente não prescinde dos trabalhos de casa e de outros tipos de práticas, nomeadamente trabalhos individuais e/ou de grupo. Imagine-se que pede um trabalho em cada semana e que vê cada um deles nuns simples cinco minutos (tempo médio). Lá se contabilizarão “mais 162 horas e meia, relativas a todo o 1.º período”.
E, se o docente reservar 2 escassas horas semanais para a sua formação contínua (autoformação e/ou heteroformação) e atualização científica, são mais 26 horas que devemos somar no fim.
Acrescentando, “finalmente, as horas de aulas e as denominadas horas de componente não letiva “de estabelecimento”. São mais 318 horas e meia.
Somando tudo e dividindo pelas 13 semanas, para ver o número de horas que o professor trabalhou em cada semana: 57 horas.
E, como diz o professor e colunista, “além disto, há atividades extracurriculares, visitas de estudo, conversas com alunos e pais, reuniões que não caem dentro das horas não letivas de estabelecimento e, em anos de exames/provas finais, pelo menos, algumas aulas suplementares”. Isto, sem falar do trabalho de elaboração de informações ou matrizes e das respetivas provas de equivalência à frequência e necessária correção. E alguns diretores obrigam os docentes que acompanham visitas de estudo a compensar as faltas às aulas das suas turmas que não se integram na respetiva visita; e outros até as aulas que ficaram por lecionar, em regime de sala de aula, nas turmas que integram a visita.
E, se o professor não tem qualquer redução da componente letiva, os cenários são muito piores: professores com 22 horas de aulas por semana, mais a componente não letiva; professores com uma hora ou duas por semana a cada turma – com um excessivo número de turmas.
Porém, se os tempos letivos forem de 45 minutos, em vez de 50, lá têm de compensar da diferença na componente letiva e na componente não letiva, começando logo por aumentar gradativamente a componente letiva. O professor que tinha 14 tempos passa a 15 e o que tinha 22 passa aos 24 (só para referir os extremos). E alguns diretores ainda obrigam à compensação dos 50 para 60 minutos. É para isto que serve a autonomia vigiada pelo MEC!
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A respeito do tempo de trabalho, cujo conceito interessa aos docentes, passo à transcrição do art.º 197.º do Código do Trabalho, que estabelece o seguinte (sublinho alguns segmentos):
1 – Considera-se tempo de trabalho qualquer período durante o qual o trabalhador exerce a atividade ou permanece adstrito à realização da prestação, bem como as interrupções e os intervalos previstos no número seguinte.
2 – Consideram-se compreendidos no tempo de trabalho:
a) A interrupção de trabalho como tal considerada em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, em regulamento interno de empresa ou resultante de uso da empresa;
b) A interrupção ocasional do período de trabalho diário inerente à satisfação de necessidades pessoais inadiáveis do trabalhador ou resultante de consentimento do empregador;
c) A interrupção de trabalho por motivos técnicos, nomeadamente limpeza, manutenção ou afinação de equipamento, mudança de programa de produção, carga ou descarga de mercadorias, falta de matéria-prima ou energia, ou por fator climatérico que afete a atividade da empresa, ou por motivos económicos, designadamente quebra de encomendas;
d) O intervalo para refeição em que o trabalhador tenha de permanecer no espaço habitual de trabalho ou próximo dele, para poder ser chamado a prestar trabalho normal em caso de necessidade;
e) A interrupção ou pausa no período de trabalho imposta por normas de segurança e saúde no trabalho.
3 – Constitui contraordenação grave a violação do disposto no número anterior.
O artigo define: no n.º 1, o conceito de tempo de trabalho; e n.º 2, os factos que são equivalentes ao tempo de trabalho. Depois, no n.º 3, estabelece a tipificação da violação da observância do disposto no n.º 2 – “contraordenação grave”.
Por seu turno, o art.º 102.º da Lei Geral do trabalho em Funções Públicas estabelece (sublinho):
1 — Considera-se tempo de trabalho qualquer período durante o qual o trabalhador está a desempenhar a atividade ou permanece adstrito à realização da prestação.
2 — Para além das situações previstas no número anterior e no Código do Trabalho, são consideradas tempo de trabalho as interrupções na prestação de trabalho durante o período de presença obrigatória autorizadas pelo empregador público em casos excecionais e devidamente fundamentados.
O conceito de tempo de trabalho mantém-se inalterável. De resto, aplica-se o Código do Trabalho.
Assim, Tempo de trabalho não é apenas o período durante o qual o trabalhador está a desempenhar a sua atividade; mas cabe também nesta definição todo o período em que o trabalhador, mesmo sem estar efetivamente a desempenhar a sua atividade, permanece adstrito à realização da mesma.
Caraterizando-se como um conceito normativo, e não naturalístico, o “tempo de trabalho” abrange não só os momentos em que o trabalhador se mostra disponível para oferecer a sua prestação, como todos os outros introduzidas por regras legais que qualifiquem como tempo de trabalho períodos em que a atividade não é prestada e que constituem, por exemplo, interrupções ou paragens, regra geral de curta duração, irrelevantes quando se trata de apurar o tempo de dispêndio no cumprimento do débito laboral.
No caso dos professores, não foram eles que estabeleceram que o tempo letivo é de 50 ou de 45 minutos. Nem são eles quem determina se os intervalos são de 5, 10, 15 ou 20 minutos. Mas os intervalos são pedagogicamente exigíveis. Estava determinado que o horário do professor não devia ter “furos” (gíria escolar), ou seja, tempos de aula sem aula para si entre aulas suas, sendo toleráveis no máximo três furos. Quanto ao mais, como pode um docente sair do local de trabalho para fazer qualquer coisa de útil e pessoal num intervalo de 5, 10, 15 ou 20 minutos? Porque é que os seus intervalos não são considerados tempo de trabalho e andam a compensar o incompensável? E, graças à autonomia, chegam a ter reuniões em plena hora de almoço!
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Razão tem o professor Castilho quando pergunta: Será normal que os professores portugueses estejam coagidos a semanas de trabalho com duração superior às 48 horas, que o Tribunal de Justiça da União Europeia definiu como linha vermelha?
Efetivamente só com professores anestesiados e “domados” – com medo da aproximação da precariedade, do ascendente dos pais, da pressão de diretores e do MEC e de muitos alunos indisciplinados sentindo as costas quentes – que “regressaram aos seus postos, tristes, desmotivados e descrentes”, o MEC pôde construir a imagem de “normalidade” que perdura neste início de ano letivo, “pelo menos” – afirma o professor – “como tal se vai falando na comunicação social, na ausência dos escândalos que marcaram o ano passado”.
Ironicamente só não tem razão quando refere que “em plena campanha eleitoral, a Educação parece ser um grande tabu, protegida por um qualquer acordo entre os protagonistas, de referir pouco, de aprofundar ainda menos”: hoje mesmo, uma candidatura partidária, embora tenha dito pouco, falou abundantemente da Educação.
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A saga dos professores tem muito a ver com a seguinte asserção do filósofo espanhol Fernando Savater:
Os pais e as mães que não exerceram a sua autoridade sobre os filhos tentam exercê-la sobre os professores, confrontando-os para que outros façam o que eles deviam ter feito.


2015.09.23 – Louro de Carvalho 

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