segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Audiência ao Bispo de Parténia

Foi notícia o facto de o Papa Francisco ter recebido, no passado dia 1 de setembro, na Casa de Santa Marta e por 45 minutos, Mons. Jacques Gaillhot, o francês bispo de Parténia.  Na ausência de fotógrafo oficial, a audiência foi concluída com uma sessão de selfie.
FalaramDuigou, Gaillot e Francisco – sobre o acolhimento aos divorciados novamente casados e aos migrantes, em Saint-Merri. E o Papa encorajou o acolhimento a todos, relevando o dos migrantes: “Os migrantes são a carne da Igreja” – disse o Papa.
O colóquio  não  versou  as querelas passadas do L' affaire Gaillot, mas evocou uma possível visita do Papa a França, tendo o Pontífice reiterado a sua preferência em ir aos “países pequenos que necessitam de ajuda”.
Mons. Gaillot narrou como, recentemente, abençoou um casal de divorciados e como igualmente abençoou um casal de homossexuais salientando que estava em trajes civis, que não se tratou de casamentos, mas de bênçãos, tal como outras bênçãos a pessoas, objetos e mesmo casas. Recorda o bispo a escuta e abertura de Francisco a isto, o qual terá lembrado que abençoar é dizer o bem de Deus sobre as pessoas”. E, quando o Bispo de Parténia disse que não era convidado a participar na conferência episcopal, o Bispo de Roma não comentou a relação com aquela estrutura local, mas incitou o prelado a ir em frente continuando a fazer o que vem fazendo pelos excluídos.
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O que é Parténia e como é que Mons Jacques Gaillot se tormou seu bispo?
No tempo de Santo Agostinho (séc. IV), Parténia figurava na Mauritânia Setifiena ou região de Setif, nos planaltos da Argélia atual. Sabe-se muito pouco desta diocese: nem a data da criação nem a localização exata. É uma diocese desaparecida como muitas outras, de que são exemplos: Mitilene (na ilha grega de Lesbos), Tácia Montana (na Tunísia), Tagári (na província de Bizancena, no norte de África) e, na Península Ibérica, Caliábria, Meinedo, Dume, Elvas e Pinhel.
No ano de 484, o país foi invadido por Hunéric, rei dos Vândalos, que chamou os bispos ao seu palácio de Cartago. Rogatus, bispo de Parténia, foi perseguido e exilado.
Como Parténia já não existe nem como diocese nem como território ocupado em termos populacionais, torna-se o símbolo dos que, na sociedade e na Igreja, têm a sensação psicossocial de não existir. É uma extensa diocese sem fronteiras onde o sol não se levanta nem se põe.
Hoje os bispos auxiliares são nomeados como titulares dessas dioceses antigas, extintas por motivos históricos, e bem assim aqueles que foram bispos diocesanos e, por motivos diversos, deixaram o governo da diocese e, não resignando nem sendo destituídos, passaram a auxiliares de outra diocese. Tal foi o caso de D. Manuel Ferreira Cabral, que de Bispo da Beira, em Moçambique, passou a bispo de Dume e auxiliar de Braga.
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Quanto a Mons. Jacques Gaillot, a história é outra.
Nascido a 11 de setembro de 1935, fez o serviço militar na Argélia, o que o levou a interessar-se pela não violência. Ordenado presbítero em março de 1961, trabalhou em várias estruturas de formação até ser nomeado bispo de Évreux, no noroeste de França, em maio de 1982.
Entretanto, em janeiro de 1995, foi forçado pelo Vaticano a sair da diocese de Évreux, no cumprimento de ordem, nesse sentido, do cardeal africano Bernardin Gantin, prefeito da Congregação para os Bispos. Subsequentemente, foi nomeado como responsável de Parténia, diocese extinta no século VII. Essa inexistência física levou-a a abrir uma página na internet, na qual escreve um catecismo “alternativo”, troca correspondência e facilita o acesso a páginas de outras instituições e associações. No âmbito desta ação pastoral virtual esteve no nosso país em 1997 e 2007.
Tudo leva a crer que foi uma razão política que levou o Vaticano a destituí-lo de Évreux. Como um homem livre que é, Gaillot aponta o dedo ao então ministro do Interior francês, Charles Pasqua, acusando-o de estar por detrás do ato do Vaticano. O prelado era conhecido pelas suas posições polémicas sobre temas controversos como o preservativo, a homossexualidade, a pobreza, a exclusão, a falta de habitação ou o desarmamento – postura que o guindou a presença constante na comunicação social, o que não agradaria aos poderes – da Igreja e do Estado.
Contestando, em livro fortemente crítico, as políticas restritivas do ministro no âmbito da imigração, Gaillot assinou a própria destituição. Porém, não desistiu: abrindo a sua página na internet, dali fala com toda a gente. Com esta nova diocese “sem fronteiras”, voltar à sua diocese seria dar um passo atrás. E assim, continuando no ativo como bispo, sente-se parte da Igreja, ao contrário do que alguns possam imaginar, não ambicionando mais nada. É um não alinhado, mas não se apresenta como contestatário sistemático da Igreja.
Tanto antes como depois de ter sido forçado a deixar a sua diocese, o combativo prelado nunca abdicou do seu papel de bispo, de pastor, junto dos mais desfavorecidos: os sem-abrigo, os refugiados, os pobres, os desempregados, as vítimas de tráfico humano – todas pessoas que ele apoia desde há muito, quer pessoalmente quer na sua diocese virtual de Parténia.
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O conteúdo das entrevistas
António Marujo, no livro Deus vem a Público  (ed. Pedra Angular: 2011) publicou uma síntese de duas entrevistas feitas em maio de 2007 e setembro de 1997, esta realizada em conjunto com Manuel Vilas Boas.
Da síntese se respigam as ideias principais, pelo que revelam de lucidez, equilíbrio e ousadia.
- Sonha com uma Igreja metida na massa humana do terreno, da base, de homens e mulheres abertos aos outros, que acolhem e trabalham com os outros, de cristãos que são o rosto de pessoas que não suportam a injustiça, que se batem pela paz – uma Igreja que leva a mensagem, o fermento do evangelho.
- Trata-se dum sonho reforçado com a experiência de bispo de Parténia. Há muita gente que se sente excluída da sociedade e da Igreja, mas que continua viva e a bater-se no interior de diversos organismos – eclesiais ou não – e que transporta a esperança do evangelho.
- Acaba por agradecer a Roma a sua vivência de “desligado de tudo o que é institucional”, mas “decididamente com as pessoas” e mais facilmente do que se fosse bispo de uma diocese real.
- As pessoas, segundo ele, veem-no como um bispo que sente a exclusão. Acham que um bispo que é como elas e como elas foi arredado – que perderam o trabalho, são desconsideradas – é um homem da Igreja capaz de as compreender. Assim, o prelado destituído é um sinal para muitos excluídos, o que não aconteceria se estivesse integrado, como bispo, numa diocese real.
- Falando da sua proximidade como os sem-abrigo, os marginalizados, diz:
“Estou com os sem-papéis, com os que não têm alojamento, com os presos políticos, com quem vive angustiado, que sobrevive na sociedade. Depois de Évreux, é uma segunda vida, um segundo povo.”.

- A respeito da hipotética imagem de contestatários da Igreja oficial, aplicada aos grupos que o apoiam, o prelado entende que é bom haver grupos, na Igreja, que estejam preocupados com a reforma da Igreja: a democracia, o lugar das mulheres... Para isso, é preciso estar ligado ao mundo da exclusão.
- Sobre as questões internas – como o celibato, a ordenação das mulheres, a moral sexual – colocadas por muitos grupos, esclarece:
“É bom que haja grupos para isso, mas não são as minhas questões. As minhas são as questões da sociedade: a injustiça, a paz, a ecologia. Mas é legítimo que haja cristãos que queiram a reforma da Igreja e continuem a contestar. Sobretudo, se são cristãos inteligentes e muito comprometidos, os bispos devem contar com eles.”.

- E justifica-se:
“A Igreja é relativa à sociedade. Se não houvesse sociedade, não haveria Igreja. A evolução profunda da sociedade faz com que a Igreja deva mudar. A dificuldade para a Igreja de hoje é a modernidade. Tudo está centrado no indivíduo, que é autónomo e que deve fazer o seu caminho, que deve encontrar os seus valores, o seu sentido, que é responsável pela sua vida. E se lhe dizem que há uma lei natural, que diz isto e aquilo, ele não aceita numa lei que vem de fora. O indivíduo conduz a sua vida, isso é a modernidade. Essa é uma das dificuldades da Igreja e da sociedade de hoje, em Espanha, em Itália, etc., porque na modernidade o indivíduo tem direito à felicidade, à realização de si mesmo, ser verdadeiro consigo mesmo.”.

- Faz assentar a santidade de uma Igreja – católica ou protestante – na sua íntima ligação com os oprimidos, com os que são excluídos, sendo que “a Igreja nunca é ela mesma sem os pobres”. Não lhe importa ser considerada pelos poderosos, por gente importante, mas ser acolhida pelos pobres, pelos pequenos. É esta a saúde, a força da Igreja – sublinha.
- Não tem pejo em dizer que, como bispo, foi libertado pelo evangelho e seduzido pela liberdade de Cristo; que não está sobretudo “por causa da doutrina, para chamar à lei, para defender a instituição”, mas para despertar as pessoas para quem está à beira do caminho, para quem sofre. “São os seres humanos que estão em primeiro lugar”.
- Rejeita em absoluto considerar-se um desempregado da Igreja. Ao invés, ousa dizer que os seus dias estão bem ocupados, sobretudo com os excluídos: “famílias sem alojamento, jovens sem trabalho, estrangeiros sem documentação...”.
- Julga que “o trabalho de um bispo é estar onde o povo sofre, onde o futuro do homem está em perigo”. Assim, pensa que é bom estar “perto de outros, junto dos excluídos”.
- Sobre o preservativo, questão que supostamente também estaria por detrás da sua destituição, diz que se trata de questão secundária ante o problema da SIDA. Afirma ser necessário que cada um se sinta responsável e tome os seus meios para não semear a morte e respeitar a vida. De todo, o preservativo, segundo Gaillot, não deve ser utilizado como um meio de contraceção, mas como respeito pelo outro e pela vida. Depois, acha esquisito que a Igreja se fixe nesse aspeto. Entende que esse deve ser um problema que deve ser simplesmente gerido, colocando as pessoas perante a sua responsabilidade.
- Quanto ao aborto, pensando que é matar a vida, declara-se inequivocamente contra. Não valorizando a questão da criminalização, acentua que “é um mal, é uma desgraça”. Admite, no entanto, que há situações de angústia, sobretudo de jovens mães, que as induzem ao recurso ao aborto. Em todo o caso, não deve fazer-se um juízo sobre elas e, além disso, pensa que qualquer país possa tentar fazer uma lei para resolver este quadro de miséria.
- É de parecer que, em geral, a Igreja está demasiado presente nas questões da sexualidade, sendo melhor que estivesse mais no terreno da justiça. Releva o papel dos responsáveis da Igreja de esclarecer as consciências das pessoas, de as orientar um pouco nas suas decisões.
- No atinente à posição da Igreja sobre a homossexualidade, diz o seguinte:
“Há pessoas que são homossexuais. Existem e sofrem de discriminação – na família, no trabalho, na religião. Isso deve interrogar a Igreja, para que não os excluamos. Já há muitos excluídos na sociedade, é preciso que a Igreja não faça o mesmo. Eu sempre defendi para que essas pessoas sejam acolhidas na Igreja, sejam escutadas na Igreja, que tenham também o seu lugar na Igreja.”

- Sobre o pretenso casamento de homossexuais, acha lamentável que se utilize a palavra “casamento” para eles. Declara que “o casamento tem por base um homem e uma mulher, é o casamento da diferença, não é preciso utilizar este termo em relação aos homossexuais”. Isso até não é favorável nem a uns nem a outros.
- Quanto ao acolhimento aos homossexuais em Igreja, também se pronuncia:
“Tento nunca julgar as pessoas, temos o dever de as acolher. E se não as acolhemos, não podemos reclamar-nos do evangelho. É preciso compreender o sofrimento, as suas dificuldades. É preciso que essas pessoas possam viver e, também na Igreja, ter responsabilidades. Dizer que alguém é homossexual é eximir-se a responsabilidades.”.

- Sobre a temática da ordenação de mulheres, é clarividente na sua posição, embora não preveja o momento em que isso venha a suceder:
“O que se passa na sociedade, hoje em dia, repercute-se na Igreja. Há uma exigência feita por todos, pelas mulheres, para que haja uma parceria homens-mulheres, tanto na sociedade como na Igreja. Estamos numa Igreja onde os responsáveis são homens, celibatários e, muitas vezes, idosos. E é uma batalha a ganhar, que haja mulheres investidas de responsabilidade. É uma complementaridade, uma riqueza. Temos um ministério de modelo masculino, é necessário inovar, é preciso procurar, mas isso acontecerá.”.


- No atinente ao celibato eclesiástico, enaltece-o como escolha pessoal. Reconhece nele um sinal importante para si próprio dado por Jesus e pelo evangelho. Porém, é de opinião que, para os padres, deve ser concedida a liberdade de escolha, na convicção de que hoje, na cultura, na evolução do mundo, é uma coisa que deve estar na liberdade de decisão.
- Em relação à guerra e à violência, entende não poder juntar a palavra ‘justa’ à palavra ‘guerra’. Seria aplaudir o fogo. Recusando-se a falar de guerra justa, declara sempre ter estado contra a guerra. Defende em absoluto a não violência, que descobriu na guerra da Argélia e o que o levou a tornar-se “um militante não violento”.
- Em contraponto à dúvida de que a não violência ser um princípio ainda praticável ou de se tratar de uma utopia que acabou com Gandhi e Luther King, explicita:
“A não violência não é alternativa à violência, que tudo regulamenta. A não-violência é uma opção, não se decreta. É uma atitude, é um espírito, é preciso que a maior parte possível das pessoas seja não-violenta, para que se possa oferecer resistência. Dito isto, existem na sociedade estruturas de violência que fazem com que estruturas injustas suscitem reações de violência. A miséria suscita situações de violência, mas a violência do Estado e da sociedade existe primeiro. Se se suprimir esta violência, talvez se suprima a outra.”

Depois, refere que “a violência gera a violência, não tem solução e é um impasse”. E, dando o exemplo da Argélia, diz:
“É claro que é o governo militar que está relacionado com aquela violência. Não é possível que, em Argel, onde há tantos quartéis, não se faça esta relação. A França apoia o governo argelino, vendendo material militar. Temos coisas aqui a fazer: ao nível diplomático, comercial ou da venda de armas. É assim que se começa.”

- Sobre a sua página na Internet, nega que seja qualquer modo de vingança do silêncio que lhe foi imposto. Revela que foi aconselhado por amigos, que lhe diziam que era importante este meio. Acha-o um modo de comunicar, para si muito interessante, porque assim pode franquear todas as fronteiras. Quando lhe ironizam como sendo um meio de pregar no deserto, responde que “o deserto está prestes a florir, porque por todo o lado há comunicações que se estabelecem e comunicar é viver”. E diz, com a inocência que lhe é peculiar, que tenta fazer florir o deserto.
Diz que são aos milhares as pessoas que lhe escrevem via internet, sobretudo jovens. Primeiro, manifestam-se felizes por comunicar (As pessoas estão muitas vezes sozinhas) e, se são cristãos, falam da Igreja (e estão ali, em rede...); depois, sobretudo, põem questões sobre o futuro, sobre a humanidade, a injustiça do mundo, o sentido da vida, uma busca religiosa – “há tantas religiões, as pessoas procuram...” – confessa.
- No concernente ao reconhecimento do direito de opinião na Igreja, acentua que “há uma opinião pública na Igreja”, mas “é preciso que todos os cristãos tenham oportunidade de manifestar a sua opinião”.
- Não considera o seu catecismo na internet como uma alternativa ao Catecismo da Igreja Católica, mas uma outra abordagem e explica tanto o motivo da obrigação que teve de o fazer como a metodologia da sua génese:
“Um bispo, normalmente, na sua diocese, é convidado a fazer o seu catecismo. O Concílio de Trento pediu, aliás, que cada bispo fizesse o seu catecismo. Então fiz o meu. Mas fi-lo, partindo das perguntas das pessoas, não de categorias religiosas, dizendo ‘é isto, imponho-vos aquilo’, mas construindo isso em conjunto, a partir da experiência dos grupos, das comunidades, perguntando: ‘como fazeis?’ Portanto, são pessoas de culturas diferentes, de países diferentes, que constroem em conjunto. Depois se verá...”.


- Finalmente, quanto ao futuro da Igreja, entende que está em ela se voltar para a humanidade, para a sociedade. As questões prioritárias têm de ser as questões da humanidade: as questões da injustiça, do combate pela paz, da salvaguarda da criação. Este é o grande objetivo: “que as igrejas, na sua ação ecuménica, se voltem nessa direção”.
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Contudo, não é somente a internet. As suas principais publicações são:
Avance et tu seras libre, Editions Payot, 2010;
Un Catéchisme au goût de liberte, Editions L`Harmattan, 2010;
Carnets de vie, Éditeur J.C. Gawsewitch, 2010;
Carnets de route, Éditeur J.C. Gawsewitch, 2004;
Un Catéchisme au goût de liberte, Éditions Ramsay, mai 2003;
Eglise virtuelle, Editions Albin Michel 2000;
Ce que je crois, Editions Grasset Desclée de Brouwer 1996;
Dialogue sur le parvis, Editions Desclée de Brouwer 1996;
Dialogue et liberté dans l'Eglise, avec Gabriel Ringlet,  Editions Ramsay 1995;
Coup de gueule contre les essais nucléaires, les risques de l'escalade, Editions Ramsay 1995;
Chers amis de Partenia, Editions Albin Michel 1995;
Je prends la liberté, Editions Flammarion 1995;
L'année de tous les dangers – Coup de gueule contre l'exclusion, Editions Ramsay 1994;
Paroles sans fronteires, Editions Desclée de Brouwer 1993;
Lettre ouverte à ceux qui prêchent la guerre et la font faire aux autres, Editions Albin Michel 1991;
Chemin de croix, Editions Desclée de Brouwer 1991;
Monseigneur des autres, Editions du Seuil 1989;
Foi sans fronteires, Editions Desclée de Brouwer 1988;
Ils m'ont donné tant de bonheur, Editions Desclée de Brouwer 1987.

2015.09.06 – Louro de Carvalho 

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