O
n.º 1177 da revisa Visão, de 24 a 30
de setembro, insere, na sua página 34, um texto de Sónia Sapage sob o título “Votos ou Mandatos – eis a (falsa) questão”.
Refere a jornalista que, “em caso de empate técnico, será convidado a formar
governo o líder do partido que tiver mais possibilidade de o fazer passar no
Parlamento”.
Penso
que assim deveria ser. No entanto, tal desejo não decorre necessariamente da
leitura do texto constitucional. E, se a autora do texto ousa destacar o
detalhe “do partido”, deveria também,
no texto constitucional atender ao pormenor “os partidos”, que no corpo do
referido texto jornalístico vem no parágrafo anterior ao do daquele detalhe.
Com efeito, o art.º 187.º da CRP tem a seguinte redação, a partir da 1.ª
revisão constitucional (vd LC n.º 1/1982, de 30 de setembro, aí no
art.º 190.º):
1.
O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os
partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os
resultados eleitorais.
2.
Os restantes membros do Governo são nomeados pelo Presidente da República, sob
proposta do Primeiro-Ministro.
Sendo
assim, o PR (Presidente da República) – ele e só ele – fará a sua
interpretação do texto. Não obstante a CRP não impor uma ou outra solução,
parece-me que, em caso de divergência-limite entre o número de votos a favor de
um partido ou coligação e o de mandatos a favor de outro/a, o PR deverá optar
pelo partido ou coligação que tiver obtido maior número de mandatos (dado
o caráter instrumental dos mandatos em detrimento dos votos), a menos que a outra componente
do texto, a audição dos partidos com assento parlamentar, lhe garanta melhor a
outra hipótese como forma iniludível de aceitar a viabilização do programa do
governo e do 1.º orçamento.
Algo
parecido se deve concluir para o caso de nenhuma das formações partidárias (Partido
ou coligação. Recorde-se que em 1980, havia duas grandes coligações em
concorrência, a FRS e a AD)
obter a maioria absoluta dos mandatos. Assim, no caso de se verificar que uma
formação partidária obtém uma maioria relativa dos votos convertidos em
mandatos, será sensato que, à partida, o PR convoque o líder da força
partidária vencedora para formar governo. É o que parece aconselhar uma leitura
imediata do art.º 187.º. No entanto e porque o texto constitucional não limita
o PR a esta opção, cumpre-lhe colocar outras hipóteses, sobretudo se for
possível constituir uma maioria parlamentar clara, coerente e estável.
***
Entretanto,
como parece que nestas eleições tudo pode acontecer, alguns constitucionalistas
encarregaram-se de lançar ou deixaram instalar a confusão através da leitura
apressada do art.º 22.º da lei eleitoral para a Assembleia da República. Da
leitura que fiz do texto de Sónia Sapage não concluí inequivocamente que os
constitucionalistas citados quisessem prender o PR a uma solução. Reconhecem,
sim, a dificuldade, e até apontam uma ou outra via de solução de que o PR pode
dispor para garantir a formação do governo e a viabilização da passagem parlamentar
do programa do governo (que não precisa de aprovação expressa,
bastando que nenhuma moção de censura apresentada por algum partido seja aprovada) e a aprovação do orçamento.
O
predito art.º 22.º é citado só em parte. Com efeito, o seu n.º 2 estabelece que
“as
coligações deixam de existir logo que for tornado público o resultado
definitivo das eleições, mas
podem transformar-se em coligações de partidos políticos, nos termos e para os
efeitos do disposto no artigo 12º do Decreto-Lei nº 595/74, de 7 de novembro”.
Ora, porque só foi transcrita a parte sublinhada parece que a articulista de Visão faz a correta interpretação.
Porém, deve ter-se em conta a segunda parte do n.º 2, iniciado pela conjunção
coordenativa adversativa “mas”.
Pode
acontecer, nestes termos, logo que a certeza dos resultados eleitorais se
vislumbre, que os líderes dos partidos que formam a coligação com fins
eleitorais a transmutem em coligação de partidos políticos. E o efeito de
coligação eleitoral desfeita deixa de fazer sentido. E, no processo de escolha,
o PR ouvirá os partidos; e os partidos que integram a coligação podem seguir o
mesmo teor de proposta e ter negociado já apoios.
Se
o PR tivesse, por imperativo constitucional com base no desfazer-se da
coligação, de seguir a orientação que parece transparecer no artigo de Sónia
Sapage, tal orientação valeria também no caso de uma coligação ter obtido a
maioria absoluta, já que o número dos mandatos de um só dos partidos que a
constituem podia não ser superior ao dos de outro partido que não integrasse a
dita coligação.
Ademais,
só faz sentido falar de empate técnico em termos eleitorais se considerarmos as
sondagens ou as projeções; no “pós-eleições”, o empate ou é real ou não existe.
Leia-se,
para dissipar dúvidas, com atenção a totalidade do art.º 22.º da lei eleitoral
em vigor (coligações para fins eleitorais):
1 –
As coligações de partidos para fins eleitorais devem ser anotadas pelo Tribunal
Constitucional, e comunicadas até à apresentação efetiva das candidaturas em
documento assinado conjuntamente pelos órgãos competentes dos respetivos
partidos a esse Tribunal, com indicação das suas denominações, siglas e
símbolos, bem como anunciadas dentro do mesmo prazo em dois dos jornais diários
mais lidos.
2 –
As coligações deixam de existir logo que for tornado público o resultado
definitivo das eleições, mas podem transformar-se em coligações de partidos
políticos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 12.º do
Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de novembro.
3 –
É aplicável às coligações de partidos para fins eleitorais o disposto no n.º 3
do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de novembro.
Por
outro lado, a remissão para o art.º 12.º do DL nº 595/74, de 7 de novembro, a
primeira lei dos partidos políticos (LPP), deve entender-se como
validamente feita para o art.º 11.º da atual lei dos partidos políticos (que
mantém o mesmo teor)
– a Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto, com as alterações introduzidas
pela Lei Orgânica n.º 2/2008, de 14 de maio, e que revoga o Decreto-Lei n.º
595/74, de 7 de novembro. Veja-se o art.º 11.º (coligações):
1 –
É livre a constituição de coligações de partidos políticos.
2 –
As coligações têm a duração estabelecida no momento da sua constituição, a qual
pode ser prorrogada ou antecipada.
3 –
Uma coligação não constitui entidade distinta da dos partidos políticos que a
integram.
4 –
A constituição das coligações é comunicada ao Tribunal Constitucional para os
efeitos previstos na lei.
5 –
As coligações para fins eleitorais regem-se pelo disposto na lei eleitoral.
Sobre
as coligações para fins eleitorais e coligações permanentes há que esclarecer o
seguinte:
O
n.º 2 do art.º 22.º da Lei Eleitoral para a Assembleia da Republica distingue entre
coligações eleitorais, constituídas especificamente para uma determinada
eleição nos termos da lei eleitoral, e coligações permanentes de partidos,
constituídas por tempo indefinido nos termos da LPP. Dado o fim específico que
prosseguem, as coligações eleitorais (e apenas estas) extinguem-se com a divulgação
dos resultados definitivos da eleição, podendo, contudo transformar-se em
coligações permanentes de partidos políticos, nos termos e para os efeitos do
disposto no art.º 11.º da LPP.
Atualmente,
a única coligação permanente é a CDU (Coligação Democrática
Unitária),
constituída pelo Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Ecologista “Os
Verdes” (PEV), que não carece de ser anotada
pelo TC para cada nova eleição, devendo contudo, em cada processo de
apresentação de candidaturas a um ato eleitoral, fazer prova bastante de que os
competentes órgãos dos partidos coligados deliberaram apresentar listas conjuntas.
A par desta coligação, formou-se a coligação PAF (Portugal
à Frente) para os
partidos PSD e CDS disputarem as próximas eleições. Transformar-se-á em
coligação permanente, em consonância com a toada de Passos “amigos para sempre”,
acompanhando a tuna académica do IP de Bragança ou será que Portas preferirá “um
dia eu vou partir”?
Os
partidos que integram coligações permanentes podem concorrer às eleições em
listas conjuntas, sem necessidade, para cada eleição, de cumprirem os
formalismos inerentes de anotação no TC (Tribunal Constitucional), para efeitos de renovação do
controlo da regularidade da sua constituição, bem como da sua denominação,
sigla e símbolo. No entanto, os competentes órgãos dos partidos assim coligados
têm de fazer prova bastante, no processo de apresentação de candidaturas, de
que deliberaram apresentar listas conjuntas (TC 267/85). Vd CNE, Lei Eleitoral para a Assembleia da República – anotada e comentada,
pgs 62-63.
***
O
art.º 187.º da CRP configura um preceito fundamental para a estruturação do
governo. São três os elementos essenciais do sistema: o poder inicial do PR, mediante
a escolha do PM; os limites provindos da vertente parlamentar; e o papel
crucial do PM na formação do governo.
Constitucionalmente,
é um ato próprio do PR a escolha direta do PM, ao passo que a escolha do governo
é também um poder seu, mas exercido mediante a pessoa do PM. É poder próprio, mas
não discricionário, porque tem de considerar a composição da AR (Assembleia
da República), ou
seja, os resultados eleitorais das últimas eleições e a sua projeção na AR.
No
entanto, a CRP não impõe que o PR faça recair a escolha de PM na pessoa do líder
do partido mais votado, mesmo que maioritário, nem que o PM seja escolhido de
entre os seus dirigentes. É que não há eleições para primeiro-ministro, embora,
sobretudo no caso de os resultados das eleições gerarem uma maioria parlamentar
inequívoca, o PR fique com a sua capacidade de decisão bastante limitada.
Também
não está constitucionalmente excluída a formação de governos à margem do quadro
partidário – como sucedeu com os governos de iniciativa presidencial – embora a
prática o dificulte cada vez mais, o que pode acontecer no início de legislatura
ou durante a mesma, no caso de se esgotarem as fórmulas possíveis de base
parlamentar, sobretudo se for necessário formar um governo encarregado da
gestão do país e da preparação de novas eleições.
São
situações-limite aquelas em que, por exemplo, venha a eclodir uma crise política
depois das eleições que leve a alteração significativa na correlação das forças
partidárias ou a divisões internas no partido maioritário.
E,
embora a prudência possa induzir o PR, no quadro da cooperação entre os
poderes, a tentar acautelar a viabilização do programa do Governo, não está constitucionalmente
obrigado a fazê-lo, já que a responsabilidade dessa matéria – no âmbito da separação
dos poderes – recai sobre o Governo, que apresenta o programa, e sobre a AR,
que o rejeita ou deixa passar.
Por
outro lado, a audição aos partidos com assento parlamentar – feita diretamente pelo
PR e não por interposta pessoa, embora sem prejuízo de contactos exploratórios –
deve ocorrer antes da nomeação formal do PM. Todavia, o PR não tem de auscultar
os partidos sobre o nome da pessoa a designar nem está previsto um tempo máximo
para a nomeação formal do PM, como este, depois de indigitado, não está
obrigado ao cumprimento de um prazo, restando-lhe o necessário tempo para negociações
partidárias e contactos de personalidades com vista à formação do Governo. E
até à nomeação e posse (atos simultâneos) do novo governo, mantém-se em
funções o governo cessante, que será exonerado aquando da nomeação e posse do
novo governo (cf CRP, art.º 186.º/4).
Esclareça-se
que, em termos constitucionais, as funções do PM se iniciam com a sua posse e
cessam com a sua exoneração pelo PR (cf CRP, art.º 186.º/1); e as funções dos restantes
membros do Governo iniciam-se com a sua posse e cessam com a sua exoneração ou
com a exoneração do PM (cf CRP, art.º 186.º/4).
Pode o
PR convocar o Conselho de Estado? Pode se quiser e julgar útil tal medida. Nada
o impede nem obriga, ao invés do texto original que determinava: “o Primeiro-Ministro é nomeado pelo
Presidente da República, ouvidos o Conselho da Revolução e os
partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os
resultados eleitorais (cf
n.º 2 do art.º 190.º da CRP, texto de 1976). Os poderes do Conselho da Revolução enquanto
órgão de consulta do PR passaram para o Conselho de Estado, mas o desta disposição
constitucional eclipsou-se no quadro dos poderes genéricos deste órgão, nomeadamente
o da alínea e) do art.º 145.º da CRP: pronunciar-se nos demais casos previstos
na Constituição e, em geral, aconselhar o Presidente da República no exercício
das suas funções, quando este lho solicitar.
***
Pelo
exposto se pode ver como a singularidade destas eleições pode trazer à ribalta da
política mais factos novos. O Papel deste PR, a quem não assiste a faculdade de
dissolver o Parlamento (vd CRP, art.º 172.º/1), pode resultar bastante espinhoso,
porque, bem aconselhado ou não, é ele que tem de interpretar a justa medida dos
seus poderes face à CRP e aos resultados eleitorais. Não sei mesmo se os partidos
mais sedentos do poder (da sua manutenção ou da sua aquisição) se ficarão pelo habitual escrupuloso
respeito dos resultados ou se virão a criar factos novos.
2015.09.28 – Louro
de Carvalho
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