terça-feira, 29 de setembro de 2015

“Os partidos” ou “o partido”?

O n.º 1177 da revisa Visão, de 24 a 30 de setembro, insere, na sua página 34, um texto de Sónia Sapage sob o título “Votos ou Mandatos – eis a (falsa) questão”. Refere a jornalista que, “em caso de empate técnico, será convidado a formar governo o líder do partido que tiver mais possibilidade de o fazer passar no Parlamento”.
Penso que assim deveria ser. No entanto, tal desejo não decorre necessariamente da leitura do texto constitucional. E, se a autora do texto ousa destacar o detalhe “do partido”, deveria também, no texto constitucional atender ao pormenor “os partidos”, que no corpo do referido texto jornalístico vem no parágrafo anterior ao do daquele detalhe. Com efeito, o art.º 187.º da CRP tem a seguinte redação, a partir da 1.ª revisão constitucional (vd LC n.º 1/1982, de 30 de setembro, aí no art.º 190.º):
1. O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais.
2. Os restantes membros do Governo são nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do Primeiro-Ministro.

Sendo assim, o PR (Presidente da República) – ele e só ele – fará a sua interpretação do texto. Não obstante a CRP não impor uma ou outra solução, parece-me que, em caso de divergência-limite entre o número de votos a favor de um partido ou coligação e o de mandatos a favor de outro/a, o PR deverá optar pelo partido ou coligação que tiver obtido maior número de mandatos (dado o caráter instrumental dos mandatos em detrimento dos votos), a menos que a outra componente do texto, a audição dos partidos com assento parlamentar, lhe garanta melhor a outra hipótese como forma iniludível de aceitar a viabilização do programa do governo e do 1.º orçamento.
Algo parecido se deve concluir para o caso de nenhuma das formações partidárias (Partido ou coligação. Recorde-se que em 1980, havia duas grandes coligações em concorrência, a FRS e a AD) obter a maioria absoluta dos mandatos. Assim, no caso de se verificar que uma formação partidária obtém uma maioria relativa dos votos convertidos em mandatos, será sensato que, à partida, o PR convoque o líder da força partidária vencedora para formar governo. É o que parece aconselhar uma leitura imediata do art.º 187.º. No entanto e porque o texto constitucional não limita o PR a esta opção, cumpre-lhe colocar outras hipóteses, sobretudo se for possível constituir uma maioria parlamentar clara, coerente e estável.
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Entretanto, como parece que nestas eleições tudo pode acontecer, alguns constitucionalistas encarregaram-se de lançar ou deixaram instalar a confusão através da leitura apressada do art.º 22.º da lei eleitoral para a Assembleia da República. Da leitura que fiz do texto de Sónia Sapage não concluí inequivocamente que os constitucionalistas citados quisessem prender o PR a uma solução. Reconhecem, sim, a dificuldade, e até apontam uma ou outra via de solução de que o PR pode dispor para garantir a formação do governo e a viabilização da passagem parlamentar do programa do governo (que não precisa de aprovação expressa, bastando que nenhuma moção de censura apresentada por algum partido seja aprovada) e a aprovação do orçamento.
O predito art.º 22.º é citado só em parte. Com efeito, o seu n.º 2 estabelece que “as coligações deixam de existir logo que for tornado público o resultado definitivo das eleições, mas podem transformar-se em coligações de partidos políticos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 12º do Decreto-Lei nº 595/74, de 7 de novembro”. Ora, porque só foi transcrita a parte sublinhada parece que a articulista de Visão faz a correta interpretação. Porém, deve ter-se em conta a segunda parte do n.º 2, iniciado pela conjunção coordenativa adversativa “mas”.
Pode acontecer, nestes termos, logo que a certeza dos resultados eleitorais se vislumbre, que os líderes dos partidos que formam a coligação com fins eleitorais a transmutem em coligação de partidos políticos. E o efeito de coligação eleitoral desfeita deixa de fazer sentido. E, no processo de escolha, o PR ouvirá os partidos; e os partidos que integram a coligação podem seguir o mesmo teor de proposta e ter negociado já apoios.
Se o PR tivesse, por imperativo constitucional com base no desfazer-se da coligação, de seguir a orientação que parece transparecer no artigo de Sónia Sapage, tal orientação valeria também no caso de uma coligação ter obtido a maioria absoluta, já que o número dos mandatos de um só dos partidos que a constituem podia não ser superior ao dos de outro partido que não integrasse a dita coligação.
Ademais, só faz sentido falar de empate técnico em termos eleitorais se considerarmos as sondagens ou as projeções; no “pós-eleições”, o empate ou é real ou não existe.
Leia-se, para dissipar dúvidas, com atenção a totalidade do art.º 22.º da lei eleitoral em vigor (coligações para fins eleitorais):
1 – As coligações de partidos para fins eleitorais devem ser anotadas pelo Tribunal Constitucional, e comunicadas até à apresentação efetiva das candidaturas em documento assinado conjuntamente pelos órgãos competentes dos respetivos partidos a esse Tribunal, com indicação das suas denominações, siglas e símbolos, bem como anunciadas dentro do mesmo prazo em dois dos jornais diários mais lidos.
2 – As coligações deixam de existir logo que for tornado público o resultado definitivo das eleições, mas podem transformar-se em coligações de partidos políticos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de novembro.
3 – É aplicável às coligações de partidos para fins eleitorais o disposto no n.º 3 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de novembro.

Por outro lado, a remissão para o art.º 12.º do DL nº 595/74, de 7 de novembro, a primeira lei dos partidos políticos (LPP), deve entender-se como validamente feita para o art.º 11.º da atual lei dos partidos políticos (que mantém o mesmo teor) – a Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 2/2008, de 14 de maio, e que revoga o Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de novembro. Veja-se o art.º 11.º (coligações):
1 – É livre a constituição de coligações de partidos políticos.
2 – As coligações têm a duração estabelecida no momento da sua constituição, a qual pode ser prorrogada ou antecipada.
3 – Uma coligação não constitui entidade distinta da dos partidos políticos que a integram.
4 – A constituição das coligações é comunicada ao Tribunal Constitucional para os efeitos previstos na lei.
5 – As coligações para fins eleitorais regem-se pelo disposto na lei eleitoral.

Sobre as coligações para fins eleitorais e coligações permanentes há que esclarecer o seguinte:
O n.º 2 do art.º 22.º da Lei Eleitoral para a Assembleia da Republica distingue entre coligações eleitorais, constituídas especificamente para uma determinada eleição nos termos da lei eleitoral, e coligações permanentes de partidos, constituídas por tempo indefinido nos termos da LPP. Dado o fim específico que prosseguem, as coligações eleitorais (e apenas estas) extinguem-se com a divulgação dos resultados definitivos da eleição, podendo, contudo transformar-se em coligações permanentes de partidos políticos, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 11.º da LPP.
Atualmente, a única coligação permanente é a CDU (Coligação Democrática Unitária), constituída pelo Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV), que não carece de ser anotada pelo TC para cada nova eleição, devendo contudo, em cada processo de apresentação de candidaturas a um ato eleitoral, fazer prova bastante de que os competentes órgãos dos partidos coligados deliberaram apresentar listas conjuntas. A par desta coligação, formou-se a coligação PAF (Portugal à Frente) para os partidos PSD e CDS disputarem as próximas eleições. Transformar-se-á em coligação permanente, em consonância com a toada de Passos “amigos para sempre”, acompanhando a tuna académica do IP de Bragança ou será que Portas preferirá “um dia eu vou partir”?
Os partidos que integram coligações permanentes podem concorrer às eleições em listas conjuntas, sem necessidade, para cada eleição, de cumprirem os formalismos inerentes de anotação no TC (Tribunal Constitucional), para efeitos de renovação do controlo da regularidade da sua constituição, bem como da sua denominação, sigla e símbolo. No entanto, os competentes órgãos dos partidos assim coligados têm de fazer prova bastante, no processo de apresentação de candidaturas, de que deliberaram apresentar listas conjuntas (TC 267/85). Vd CNE, Lei Eleitoral para a Assembleia da República – anotada e comentada, pgs 62-63.
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O art.º 187.º da CRP configura um preceito fundamental para a estruturação do governo. São três os elementos essenciais do sistema: o poder inicial do PR, mediante a escolha do PM; os limites provindos da vertente parlamentar; e o papel crucial do PM na formação do governo.
Constitucionalmente, é um ato próprio do PR a escolha direta do PM, ao passo que a escolha do governo é também um poder seu, mas exercido mediante a pessoa do PM. É poder próprio, mas não discricionário, porque tem de considerar a composição da AR (Assembleia da República), ou seja, os resultados eleitorais das últimas eleições e a sua projeção na AR.
No entanto, a CRP não impõe que o PR faça recair a escolha de PM na pessoa do líder do partido mais votado, mesmo que maioritário, nem que o PM seja escolhido de entre os seus dirigentes. É que não há eleições para primeiro-ministro, embora, sobretudo no caso de os resultados das eleições gerarem uma maioria parlamentar inequívoca, o PR fique com a sua capacidade de decisão bastante limitada.
Também não está constitucionalmente excluída a formação de governos à margem do quadro partidário – como sucedeu com os governos de iniciativa presidencial – embora a prática o dificulte cada vez mais, o que pode acontecer no início de legislatura ou durante a mesma, no caso de se esgotarem as fórmulas possíveis de base parlamentar, sobretudo se for necessário formar um governo encarregado da gestão do país e da preparação de novas eleições.
São situações-limite aquelas em que, por exemplo, venha a eclodir uma crise política depois das eleições que leve a alteração significativa na correlação das forças partidárias ou a divisões internas no partido maioritário.  
E, embora a prudência possa induzir o PR, no quadro da cooperação entre os poderes, a tentar acautelar a viabilização do programa do Governo, não está constitucionalmente obrigado a fazê-lo, já que a responsabilidade dessa matéria – no âmbito da separação dos poderes – recai sobre o Governo, que apresenta o programa, e sobre a AR, que o rejeita ou deixa passar.
Por outro lado, a audição aos partidos com assento parlamentar – feita diretamente pelo PR e não por interposta pessoa, embora sem prejuízo de contactos exploratórios – deve ocorrer antes da nomeação formal do PM. Todavia, o PR não tem de auscultar os partidos sobre o nome da pessoa a designar nem está previsto um tempo máximo para a nomeação formal do PM, como este, depois de indigitado, não está obrigado ao cumprimento de um prazo, restando-lhe o necessário tempo para negociações partidárias e contactos de personalidades com vista à formação do Governo. E até à nomeação e posse (atos simultâneos) do novo governo, mantém-se em funções o governo cessante, que será exonerado aquando da nomeação e posse do novo governo (cf CRP, art.º 186.º/4).
Esclareça-se que, em termos constitucionais, as funções do PM se iniciam com a sua posse e cessam com a sua exoneração pelo PR (cf CRP, art.º 186.º/1); e as funções dos restantes membros do Governo iniciam-se com a sua posse e cessam com a sua exoneração ou com a exoneração do PM (cf CRP, art.º 186.º/4).
Pode o PR convocar o Conselho de Estado? Pode se quiser e julgar útil tal medida. Nada o impede nem obriga, ao invés do texto original que determinava: “o Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos o Conselho da Revolução e os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais (cf n.º 2 do art.º 190.º da CRP, texto de 1976). Os poderes do Conselho da Revolução enquanto órgão de consulta do PR passaram para o Conselho de Estado, mas o desta disposição constitucional eclipsou-se no quadro dos poderes genéricos deste órgão, nomeadamente o da alínea e) do art.º 145.º da CRP: pronunciar-se nos demais casos previstos na Constituição e, em geral, aconselhar o Presidente da República no exercício das suas funções, quando este lho solicitar.
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Pelo exposto se pode ver como a singularidade destas eleições pode trazer à ribalta da política mais factos novos. O Papel deste PR, a quem não assiste a faculdade de dissolver o Parlamento (vd CRP, art.º 172.º/1), pode resultar bastante espinhoso, porque, bem aconselhado ou não, é ele que tem de interpretar a justa medida dos seus poderes face à CRP e aos resultados eleitorais. Não sei mesmo se os partidos mais sedentos do poder (da sua manutenção ou da sua aquisição) se ficarão pelo habitual escrupuloso respeito dos resultados ou se virão a criar factos novos.

2015.09.28 – Louro de Carvalho

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