quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Um Papa bem “católico” na capital cubana

Parece-me revestir-se de especial interesse a reflexão sobre os gestos e as palavras do Papa em Havana, a capital, por ser naturalmente o lugar onde a visita apostólica pode ser apreciada também de um ponto de vista eminentemente político.
Na saudação aos jornalistas durante o voo que levava a comitiva papal de Roma para Havana, Francisco mostra não retirar do seu horizonte de preocupações o mundo: mundo sequioso de paz, mas assinalado pela vaga migratória resultante das guerras ou para procurar vida. Por isso, em nome da paz e da vida, o Pontífice agradece e continua a solicitar aos jornalistas o seu trabalho de construção de pontes: pequenas pontes, que somadas fazem a grande ponte da paz.
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Na cerimónia de boas-vindas, evocou, na esteira do discurso presidencial, a celebração do 80.º aniversário do estabelecimento de relações diplomáticas ininterruptas entre a República de Cuba e a Santa Sé, recordou as memoráveis viagens apostólicas a Cuba pelos predecessores, cuja “lembrança desperta gratidão e afeto no povo e nas autoridades” e quis afirmar a renovação dos “laços de cooperação e amizade, para que a Igreja continue a acompanhar e encorajar o povo cubano nas suas esperanças, nas suas preocupações, com liberdade e todos os meios necessários para levar o anúncio do Reino até às periferias existenciais da sociedade”.
Quer-me parecer que os que esperavam que o Papa endeusasse a revolução marxista esperavam o absurdo. É que o Papa é católico e está disponível para rezar o credo, se for necessário fazer isso para o demonstrar, segundo o que referiu na conferência de imprensa no voo de Santiago para Washington. O que significam os laços de amizade e cooperação é a exigência da liberdade para a Igreja chegar às periferias, acompanhando e encorajando todo o povo cubano, é a liberdade de coexistência de todos os que pensam de maneira igual ou de maneira diferente.
Porém, não é crível que Francisco reivindicasse em Havana a mudança de regime político com abertura à economia de mercado em que o capitalismo de lucro desenfreado e morte tivesse lugar, sem controlo. Não é esse o pensamento do Papa nem o da doutrina social da Igreja. Nem se pede a um regime que está na linha das cedências, eventualmente a caminhar para uma democracia sui generis, que mude de todo, condenando em absoluto o sistema filosófico-político donde provém. Humanamente não se pergunta a alguém donde vem, mas para onde vai ou quer ir. Aliás, não é a Igreja que segue o Papa, mas o Papa que segue a Igreja; e ambos seguem Cristo.
Recordo que Paulo VI, visivelmente adverso ao regime ditatorial e colonialista português, quando esteve no Santuário de Fátima, saudou Portugal Continental, Insular e Ultramarino e ofereceu donativos avultados ao tempo para a Cáritas Portuguesa e para as Missões Portuguesas. Não cabe à hierarquia exigir mudança de regimes, mas exigir liberdade e trato humano.  
Por outro lado, o Papa argentino sublinhou a coincidência desta viagem apostólica com o I centenário da declaração da Virgem da Caridade do Cobre como Padroeira de Cuba, por Bento XV. Recordou que foram “os veteranos da Guerra da Independência que, movidos por sentimentos de fé e patriotismo, pediram que a Virgem mambisa fosse a padroeira de Cuba enquanto nação livre e soberana”.
Cá está: uma homenagem político-religiosa à história de Cuba independente, apoiada na esperança que preserva “a dignidade das pessoas nas situações mais difíceis” e luta pela promoção de “tudo o que dignifica o ser humano”. E, neste contexto, o Papa propõe-se, durante estes dias, “ir ao Santuário do Cobre, como filho e como peregrino, rezar à nossa Mãe por todos os seus filhos cubanos e por esta amada nação, para que caminhe por sendas de justiça, paz, liberdade e reconciliação”.
Mas Francisco não deixa de sublinhar a posição geoestratégica do arquipélago: “abre para todas as rotas, possuindo um valor extraordinário de ‘chave’ entre norte e sul, entre leste e oeste”. Mais: “a sua vocação natural é ser ponto de encontro para que todos os povos se reúnam na amizade, como sonhou José Martí”.
A seguir, vem a referência à relação Cuba-estados Unidos, que vem normalizando:
Desde há vários meses, temos sido testemunhas dum acontecimento que nos enche de esperança: o processo de normalização das relações entre dois povos, após anos de afastamento. É um processo, é um sinal da vitória da cultura do encontro, do diálogo, do ‘sistema da valorização universal (…) sobre o sistema, morto para sempre, de dinastia e de grupos’ (continua a citar José Martí).

Mas o Papa quer um pouco mais e encoraja-o. É a relação ente povos que se quer total e sã:
Encorajo os responsáveis políticos a prosseguir por este caminho e a desenvolver todas as suas potencialidades, como prova do alto serviço que são chamados a prestar em favor da paz e do bem-estar dos seus povos e de toda a América, e como exemplo de reconciliação para o mundo inteiro. O mundo precisa de reconciliação, nesta atmosfera de III Guerra Mundial por etapas que estamos a viver.

E é neste contexto de reconciliação e fraternidade que ocorrem os encontros com o Presidente Raul Castro, depois do encontro com Fidel e família. Este totalmente privado; e daquele ressalta o agradecimento pela libertação de milhares de presos.
À questão de Silvia Poggioli, durante o voo para Washington, se Fidel mostrara arrependimento pelo sofrimento provocado ao povo cubano, o Pontífice, ladeando um pouco a dificuldade inerente ao problema, responde:
O arrependimento é uma coisa muito íntima, uma coisa de consciência. No encontro com Fidel, falei de histórias de jesuítas conhecidos (…). Falámos muito da encíclica Laudato si’, porque nutre grande interesse por este tema da ecologia. Foi um encontro mais espontâneo que formal; estava presente também a família, e ainda os que me acompanhavam, o meu motorista; estando nós um pouco à parte, com a esposa e ele, os outros não podiam ouvir, mas estavam na mesma sala. (…). Do passado, não falámos. Bem, um pouco do passado, sim: do colégio dos jesuítas, de como eram os jesuítas, de como o faziam trabalhar.

E, quanto às questões de Rosa Flores – se foram presos mais de 50 dissidentes fora da Nunciatura, por tentarem um encontro com o Papa, se gostaria de encontrar os dissidentes e o que lhes diria – explicitou:
Não tenho notícias de que isso tenha sucedido. (…). Gostaria que acontecesse. Apraz-me encontrar toda a gente. Em primeiro lugar, porque considero que todas as pessoas são filhas de Deus, por direito. Em segundo lugar, o encontro com uma pessoa sempre enriquece. (…). Primeiro, estava bem claro que eu não teria dado qualquer audiência, porque pediram audiência não só os dissidentes, mas também pessoas de outros setores, incluindo vários chefes de Estado. (…). Segundo: a Nunciatura fez telefonemas para algumas pessoas, que fazem parte deste grupo de dissidentes... A missão do Núncio era comunicar-lhes que, à minha chegada à catedral para o encontro com os consagrados, teria com prazer saudado aqueles que lá estivessem. (…). Eu saudei todos aqueles que estavam lá. Sobretudo saudei os doentes, aqueles que estavam em cadeira de rodas... Mas ninguém se identificou como dissidente. (…). Não sei o que lhes diria… Eu diria coisas bonitas a todo o mundo, mas aquilo que uma pessoa diz vem-lhe na hora.

Sobre a evolução do regime cubano, o Papa Bergoglio, a instâncias do argentino Nelson Castro, salientou os avanços, mas também o facto de haver muito caminho a percorrer:
A Igreja de Cuba trabalhou para haver uma lista de prisioneiros a quem conceder o indulto... O indulto foi concedido a cerca de 3.500... Foi o Presidente da Conferência Episcopal que me disse o número: sim, mais de três mil. E ainda há casos em estudo. E a Igreja aqui em Cuba está a trabalhar para se conseguir indultos. Por exemplo, houve alguém que me disse: “Seria bom acabar com o ergástulo, ou seja, a prisão perpétua”. Falando claramente, o ergástulo é quase uma pena de morte escondida. Isto disse-o eu publicamente num discurso aos juristas europeus. Tu estás ali a morrer, dia após dia, sem a esperança da libertação. É uma hipótese. Outra hipótese é fazer indultos gerais cada ano ou de dois em dois anos... Mas a Igreja está a trabalhar, e trabalhou... Não digo que estes mais de três mil foram libertados pelas listas da Igreja, isso não. A Igreja fez uma lista – não sei de quantas pessoas –, pediu oficialmente indultos e vai continuar a fazê-lo.

É óbvio que a viagem do Papa a Cuba tinha de contribuir para a dissipação de qualquer ideia ou atitude de anticomunismo primário ou de reação, que não costuma ser bom conselheiro, mas sem qualquer postura de alinhamento e fazendo apelo à formação das pessoas.
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Nessa perspetiva da formação das pessoas se pode entender o restante conteúdo das intervenções papais em Havana, já que é na liberdade que se constroem os valores e definem os perfis que enformam o cristão, o cidadão e o político.
Assim, por exemplo, na homilia da Missa na Praça da Revolução em Havana, glosa o tema da preocupação diária dos discípulos de Jesus sobre quem será o maior, tema que pode ser objeto de discussão também hoje na Igreja e na Sociedade.
Ora, segundo o Papa, Jesus não tem medo das perguntas e preocupações dos homens e não insiste nas perguntas a fazer-lhes, até porque tudo compreende e tudo conhece mesmo que não lhe seja expresso. Porém, quanto àquela preocupação, Jesus tem uma resposta-convite – o serviço; e é simples na resposta: “Se alguém quiser ser o primeiro – ou seja, o mais importante –, há de ser o último de todos e o servo de todos” (Mc 9, 35). Fiel ao seu estilo, dá uma “resposta capaz de propor novos desafios, descartando as respostas esperadas ou aquilo que aparentemente já estava estabelecido”; e propõe sempre a lógica do amor, “uma lógica capaz de ser vivida por todos, porque é para todos”.
E o que significa servir? Significa, em grande parte, “cuidar da fragilidade”, “cuidar dos frágeis das nossas famílias, da nossa sociedade, do nosso povo”. É um amor “que se concretiza em ações e decisões” e que “se manifesta nas diferentes tarefas a que somos chamados, como cidadãos, a realizar. São “pessoas de carne e osso, com a sua vida, a sua história e especialmente com a sua fragilidade, aquelas que Jesus nos convida a defender, assistir, servir”.
E o serviço cristão? Ser cristão “comporta servir a dignidade dos irmãos, lutar pela dignidade dos irmãos e viver para a dignificação dos irmãos”. Assim, “à vista concreta dos mais frágeis, o cristão é sempre convidado a pôr de lado as suas exigências, expectativas, desejos de omnipotência”, sem servilismos, mas também sem empurrar a responsabilidade de servir para o próximo.
Ora um povo que serve e vive do serviço ao próximo sabe festejar. Por isso, Francisco salienta a dimensão de festa do povo cubano:
O santo povo fiel de Deus, que caminha em Cuba, é um povo que ama a festa, a amizade, as coisas belas. É um povo que caminha, que canta e louva. É um povo que, apesar das feridas que tem como qualquer povo, sabe abrir os braços, caminhar com esperança, porque se sente chamado para a grandeza.

E proferiu uma frase emblemática: quem não vive para servir, não serve para viver.
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Na celebração das “Vésperas” com sacerdotes, consagrados e seminaristas, depois de ter ouvido a irmã Yaileny a falar dos mais pequenos e o cardeal Jaime a falar de pobreza, Francisco entregou ao cardeal a homilia que tinha escrito para que a fizesse chegar aos destinatários noutra ocasião e resolveu falar de improviso da pobreza como selo da Igreja. E distingue a pobreza que o mundo provoca, despreza e encobre da pobreza voluntária, que faz com que muitos deixem tudo para se dedicarem ao serviço dos pobres, dos doentes, dos marginalizados, daqueles que o mundo rejeita, encobre e despreza.
E, se a freira ou o padre não tem ao seu dispor esses, não tem que os fabricar, mas aproveitar todas as oportunidades para testemunhar a misericórdia divina. Curiosa e aprofundadamente desafia os confessores a que atirem ao penitente a primeira pedra somente se nunca tiverem pecado, que façam, antes da confissão, o momento de encontro, de perdão, de misericórdia. Bem-aventurados os misericordiosos.
Não deixa de censurar aqueles que se afirmam pobres pelo Reino e se andam sempre a carpir contra as ofensas dos outros ou apegados a tantos materiais descartáveis em vez de se centrarem na sua vocação e missão.
E, no texto da homilia que tinha preparado para o momento, evidencia a tendência para a confusão entre unidade e uniformidade: “fazer, sentir e dizer todos o mesmo”. A unidade é um valor fundamental. Porém, a uniformidade mata a vida do Espírito, mata os carismas que Ele distribuiu para utilidade do seu povo. Ameaçamos a unidade “sempre que queremos fazer os outros à nossa imagem e semelhança”. Por isso, saúda ali a presença de “homens e mulheres de diferentes gerações, contextos, experiências de vida, unidos pela oração em comum”. E convida a pedirem a Deus “que faça crescer em nós o desejo de proximidade”, para que “possamos sentir-nos próximos, ser vizinhos, com as nossas diferenças, propensões, estilos, mas vizinhos”. Refere que “os conflitos, as discussões na Igreja são previsíveis” e até “necessárias”. São “sinal de que a Igreja está viva e o Espírito continua a agir, continua torná-la dinâmica”. E afirma que “as comunidades onde não há um sim ou um não” são comparáveis aos “esposos que já não discutem, porque perderam o interesse um pelo outro”, que perderam “o amor”.
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No encontro com os jovens, depois de escutar os testemunhos de jovens, a tónica foi a generosidade dos jovens, o entusiasmo, a capacidade de sonho e consciência crítica, na diversidade de proveniências e experiências, mas na capacidade de envolvimento em causas comuns, como o bem comum, a reconciliação e a paz.
Também aqui o Papa preferiu o discurso espontâneo em detrimento do texto que preparara.
E o último apelo à oração pelo Papa, acompanhado do seu compromisso de rezar por todos, pode servir de exemplo à compreensão, à tolerância e à diferença, sob o signo da cultura do encontro, contra o que nós designamos por capelinhas fechadas sobre si mesmas:
Despeço-me, desejando-vos o melhor. Desejando-vos… Bem, tudo isso que vos disse vo-lo desejo. Vou rezar por vós. E peço que rezeis por mim. E se algum de vós não for crente – e não pode rezar, porque não é crente – que ao menos me deseje coisas boas. Que Deus vos abençoe, vos faça continuar por este caminho da esperança para a cultura do encontro, evitando esses cubículos de que falou o nosso companheiro.
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Depois de tudo isto, como é que se pode pôr em causa o caráter católico do Papa Francisco, a sua teologia e a sua espiritualidade ou rotulá-lo de marxista, liberal, apolítico ou hiperpolítico?

2015.09.24 – Louro de Carvalho

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