Parece-me
revestir-se de especial interesse a reflexão sobre os gestos e as palavras do
Papa em Havana, a capital, por ser naturalmente o lugar onde a visita apostólica
pode ser apreciada também de um ponto de vista eminentemente político.
Na
saudação aos jornalistas durante o voo que levava a comitiva papal de Roma para
Havana, Francisco mostra não retirar do seu horizonte de preocupações o mundo: mundo
sequioso de paz, mas assinalado pela vaga
migratória resultante das guerras ou para procurar vida. Por isso, em nome
da paz e da vida, o Pontífice agradece e continua a solicitar aos jornalistas o
seu trabalho de construção de
pontes: pequenas pontes, que somadas fazem a grande ponte da paz.
***
Na
cerimónia de boas-vindas, evocou, na esteira do discurso presidencial, a celebração do 80.º aniversário do estabelecimento de
relações diplomáticas ininterruptas entre a República de Cuba e a Santa Sé,
recordou as memoráveis viagens apostólicas a Cuba pelos predecessores, cuja “lembrança
desperta gratidão e afeto no povo e nas autoridades” e quis afirmar a renovação
dos “laços de cooperação e amizade, para que a Igreja continue a acompanhar e
encorajar o povo cubano nas suas esperanças, nas suas preocupações, com liberdade e
todos os meios necessários para levar o anúncio do Reino até às periferias
existenciais da sociedade”.
Quer-me parecer que os que esperavam que o Papa endeusasse a revolução
marxista esperavam o absurdo. É que o Papa é católico e está disponível para rezar o credo, se for necessário fazer isso para o demonstrar, segundo o
que referiu na conferência de imprensa no voo de Santiago para Washington. O
que significam os laços de amizade e cooperação é a exigência da liberdade para
a Igreja chegar às periferias, acompanhando e encorajando todo o povo cubano, é
a liberdade de coexistência de todos os que pensam de maneira igual ou de
maneira diferente.
Porém, não é crível que Francisco reivindicasse em Havana a
mudança de regime político com abertura à economia de mercado em que o
capitalismo de lucro desenfreado e morte tivesse lugar, sem controlo. Não é
esse o pensamento do Papa nem o da doutrina social da Igreja. Nem se pede a um
regime que está na linha das cedências, eventualmente a caminhar para uma
democracia sui generis, que mude de
todo, condenando em absoluto o sistema filosófico-político donde provém.
Humanamente não se pergunta a alguém donde vem, mas para onde vai ou quer ir. Aliás,
não é a Igreja que segue o Papa, mas o Papa que segue a Igreja; e ambos seguem
Cristo.
Recordo que Paulo VI, visivelmente adverso ao regime ditatorial e
colonialista português, quando esteve no Santuário de Fátima, saudou Portugal Continental, Insular e Ultramarino
e ofereceu donativos avultados ao tempo para a Cáritas Portuguesa e para as
Missões Portuguesas. Não cabe à hierarquia exigir mudança de regimes, mas
exigir liberdade e trato humano.
Por
outro lado, o Papa argentino sublinhou a coincidência desta
viagem apostólica com o I centenário da declaração da Virgem da Caridade
do Cobre como Padroeira de Cuba, por Bento XV. Recordou que foram “os veteranos
da Guerra da Independência que, movidos por sentimentos de fé e patriotismo,
pediram que a Virgem mambisa fosse a padroeira de Cuba enquanto
nação livre e soberana”.
Cá está: uma homenagem político-religiosa à história de Cuba
independente, apoiada na esperança que preserva “a dignidade das pessoas nas
situações mais difíceis” e luta pela promoção de “tudo o que dignifica o ser
humano”. E, neste contexto, o Papa propõe-se, durante estes dias, “ir ao
Santuário do Cobre, como filho e como peregrino, rezar à nossa Mãe por todos os
seus filhos cubanos e por esta amada nação, para
que caminhe por sendas de justiça, paz, liberdade e reconciliação”.
Mas Francisco não deixa de sublinhar a posição geoestratégica do
arquipélago: “abre para todas as rotas,
possuindo um valor extraordinário de ‘chave’ entre norte e sul, entre leste e
oeste”. Mais: “a sua vocação natural é ser ponto de encontro para que todos
os povos se reúnam na amizade, como sonhou José Martí”.
A seguir, vem a referência à relação Cuba-estados Unidos, que vem normalizando:
Desde há vários meses, temos sido
testemunhas dum acontecimento que nos enche de esperança: o processo de
normalização das relações entre dois povos, após anos de afastamento. É um
processo, é um sinal da vitória da cultura do encontro, do diálogo, do ‘sistema
da valorização universal (…) sobre o sistema, morto para sempre, de dinastia e
de grupos’ (continua a citar José Martí).
Mas
o Papa quer um pouco mais e encoraja-o. É a relação ente povos que se quer
total e sã:
Encorajo os responsáveis políticos a
prosseguir por este caminho e a desenvolver todas as suas potencialidades, como
prova do alto serviço que são chamados a prestar em favor da paz e do
bem-estar dos seus povos e de toda a América, e como exemplo de reconciliação
para o mundo inteiro. O mundo precisa de reconciliação, nesta atmosfera de III
Guerra Mundial por etapas que estamos a viver.
E
é neste contexto de reconciliação e fraternidade que ocorrem os encontros com o
Presidente Raul Castro, depois do encontro com Fidel e família. Este totalmente
privado; e daquele ressalta o agradecimento pela libertação de milhares de
presos.
À
questão de Silvia Poggioli, durante o voo para
Washington, se Fidel mostrara arrependimento pelo sofrimento provocado ao povo
cubano, o Pontífice, ladeando um pouco a dificuldade inerente ao problema,
responde:
O arrependimento é uma
coisa muito íntima, uma coisa de consciência. No encontro com Fidel, falei de histórias
de jesuítas conhecidos (…). Falámos muito da encíclica Laudato si’, porque nutre
grande interesse por este tema da ecologia. Foi um encontro mais espontâneo que
formal; estava presente também a família, e ainda os que me acompanhavam, o meu
motorista; estando nós um pouco à parte, com a esposa e ele, os outros não
podiam ouvir, mas estavam na mesma sala. (…). Do passado, não falámos. Bem, um
pouco do passado, sim: do colégio dos jesuítas, de como eram os jesuítas, de
como o faziam trabalhar.
E, quanto às questões de Rosa Flores – se foram presos mais
de 50 dissidentes fora da Nunciatura, por tentarem um encontro com o Papa, se
gostaria de encontrar os dissidentes e o que lhes diria – explicitou:
Não tenho notícias de que
isso tenha sucedido. (…). Gostaria que acontecesse. Apraz-me encontrar toda a
gente. Em primeiro lugar, porque considero que todas as pessoas são filhas de
Deus, por direito. Em segundo lugar, o encontro com uma pessoa sempre
enriquece. (…). Primeiro, estava bem claro que eu não teria dado qualquer
audiência, porque pediram audiência não só os dissidentes, mas também pessoas
de outros setores, incluindo vários chefes de Estado. (…). Segundo: a
Nunciatura fez telefonemas para algumas pessoas, que fazem parte deste grupo de
dissidentes... A missão do Núncio era comunicar-lhes que, à minha chegada à
catedral para o encontro com os consagrados, teria com prazer saudado aqueles
que lá estivessem. (…). Eu saudei todos aqueles que estavam lá. Sobretudo
saudei os doentes, aqueles que estavam em cadeira de rodas... Mas ninguém se
identificou como dissidente. (…). Não sei o que lhes diria… Eu diria coisas
bonitas a todo o mundo, mas aquilo que uma pessoa diz vem-lhe na hora.
Sobre
a evolução do regime cubano, o Papa Bergoglio, a instâncias do argentino Nelson
Castro, salientou os avanços, mas também o facto de haver muito caminho a
percorrer:
A Igreja de Cuba trabalhou
para haver uma lista de prisioneiros a quem conceder o indulto... O indulto foi
concedido a cerca de 3.500... Foi o Presidente da Conferência Episcopal que me
disse o número: sim, mais de três mil. E ainda há casos em estudo. E a Igreja
aqui em Cuba está a trabalhar para se conseguir indultos. Por exemplo, houve
alguém que me disse: “Seria bom acabar com o ergástulo, ou seja, a prisão
perpétua”. Falando claramente, o ergástulo é quase uma pena de morte escondida.
Isto disse-o eu publicamente num discurso aos juristas europeus. Tu estás ali a
morrer, dia após dia, sem a esperança da libertação. É uma hipótese. Outra
hipótese é fazer indultos gerais cada ano ou de dois em dois anos... Mas a
Igreja está a trabalhar, e trabalhou... Não digo que estes mais de três mil
foram libertados pelas listas da Igreja, isso não. A Igreja fez uma lista – não
sei de quantas pessoas –, pediu oficialmente indultos e vai continuar a
fazê-lo.
É óbvio que a viagem do Papa a Cuba tinha de contribuir para
a dissipação de qualquer ideia ou atitude de anticomunismo primário ou de
reação, que não costuma ser bom conselheiro, mas sem qualquer postura de
alinhamento e fazendo apelo à formação das pessoas.
***
Nessa
perspetiva da formação das pessoas se pode entender o restante conteúdo das
intervenções papais em Havana, já que é na liberdade que se constroem os
valores e definem os perfis que enformam o cristão, o cidadão e o político.
Assim,
por exemplo, na homilia da Missa na Praça da Revolução em Havana, glosa o tema
da preocupação diária dos discípulos de Jesus sobre quem será o maior, tema que
pode ser objeto de discussão também hoje na Igreja e na Sociedade.
Ora,
segundo o Papa, Jesus não tem medo das perguntas e preocupações dos homens e
não insiste nas perguntas a fazer-lhes, até porque tudo compreende e tudo
conhece mesmo que não lhe seja expresso. Porém, quanto àquela preocupação, Jesus
tem uma resposta-convite – o serviço; e é simples na resposta: “Se alguém
quiser ser o primeiro – ou seja, o mais importante –, há de ser o último
de todos e o servo de todos” (Mc 9, 35). Fiel ao seu estilo, dá uma “resposta capaz de propor novos
desafios, descartando as respostas esperadas ou aquilo que aparentemente já
estava estabelecido”; e propõe sempre a lógica do amor, “uma lógica capaz de
ser vivida por todos, porque é para todos”.
E o que significa servir? Significa, em grande
parte, “cuidar da fragilidade”, “cuidar dos frágeis das nossas famílias, da
nossa sociedade, do nosso povo”. É um amor “que se concretiza em ações e
decisões” e que “se manifesta nas diferentes tarefas a que somos chamados,
como cidadãos, a realizar. São “pessoas de carne e osso, com a sua vida, a sua
história e especialmente com a sua fragilidade, aquelas que Jesus nos convida a
defender, assistir, servir”.
E o serviço cristão? Ser cristão “comporta
servir a dignidade dos irmãos, lutar pela dignidade dos irmãos e viver para a
dignificação dos irmãos”. Assim, “à vista concreta dos mais frágeis, o cristão
é sempre convidado a pôr de lado as suas exigências, expectativas, desejos de
omnipotência”, sem servilismos, mas também sem empurrar a responsabilidade de
servir para o próximo.
Ora
um povo que serve e vive do serviço ao próximo sabe festejar. Por isso,
Francisco salienta a dimensão de festa do povo cubano:
O santo povo fiel de Deus, que caminha em
Cuba, é um povo que ama a festa, a amizade, as coisas belas. É um povo que
caminha, que canta e louva. É um povo que, apesar das feridas que tem como
qualquer povo, sabe abrir os braços, caminhar com esperança, porque se sente
chamado para a grandeza.
E
proferiu uma frase emblemática: quem não vive para servir, não serve
para viver.
***
Na celebração das “Vésperas” com sacerdotes, consagrados e seminaristas,
depois de ter ouvido a irmã Yaileny a falar dos mais pequenos e o cardeal Jaime a falar de
pobreza, Francisco entregou ao cardeal a homilia que tinha escrito para que a
fizesse chegar aos destinatários noutra ocasião e resolveu falar de improviso
da pobreza como selo da Igreja. E distingue a pobreza que o mundo provoca,
despreza e encobre da pobreza voluntária, que faz com que muitos deixem tudo
para se dedicarem ao serviço dos pobres, dos doentes, dos marginalizados,
daqueles que o mundo rejeita, encobre e despreza.
E, se a freira ou o padre não tem ao seu
dispor esses, não tem que os fabricar, mas aproveitar todas as oportunidades
para testemunhar a misericórdia divina. Curiosa e aprofundadamente desafia os confessores a que atirem ao penitente a primeira pedra somente se
nunca tiverem pecado, que façam, antes da confissão, o momento de encontro, de
perdão, de misericórdia. Bem-aventurados os misericordiosos.
Não deixa de censurar aqueles que se
afirmam pobres pelo Reino e se andam sempre a carpir contra as ofensas dos
outros ou apegados a tantos materiais descartáveis em vez de se centrarem na
sua vocação e missão.
E, no texto da homilia que tinha preparado
para o momento, evidencia a tendência para a confusão entre unidade e
uniformidade: “fazer, sentir e dizer todos o mesmo”. A unidade é um valor
fundamental. Porém, a uniformidade mata a vida do Espírito, mata os carismas
que Ele distribuiu para utilidade do seu povo. Ameaçamos a unidade “sempre que
queremos fazer os outros à nossa imagem e semelhança”. Por isso, saúda ali a
presença de “homens e mulheres de diferentes gerações, contextos, experiências
de vida, unidos pela oração em comum”. E convida a pedirem a Deus “que
faça crescer em nós o desejo de proximidade”, para que “possamos sentir-nos
próximos, ser vizinhos, com as nossas diferenças, propensões, estilos, mas
vizinhos”. Refere que “os conflitos, as discussões na Igreja são previsíveis” e
até “necessárias”. São “sinal de que a Igreja está viva e o Espírito continua a
agir, continua torná-la dinâmica”. E afirma que “as comunidades onde não há um sim ou um não” são comparáveis aos “esposos que já não discutem, porque
perderam o interesse um pelo outro”, que perderam “o amor”.
***
No encontro com os jovens, depois de escutar
os testemunhos de jovens, a tónica foi a generosidade dos jovens, o entusiasmo,
a capacidade de sonho e consciência crítica, na diversidade de proveniências e
experiências, mas na capacidade de envolvimento em causas comuns, como o bem
comum, a reconciliação e a paz.
Também aqui o Papa preferiu o discurso espontâneo
em detrimento do texto que preparara.
E o último apelo à oração pelo Papa, acompanhado
do seu compromisso de rezar por todos, pode servir de exemplo à compreensão, à tolerância
e à diferença, sob o signo da cultura do encontro, contra o que nós designamos
por capelinhas fechadas sobre si mesmas:
Despeço-me, desejando-vos o melhor. Desejando-vos… Bem, tudo isso que vos
disse vo-lo desejo. Vou rezar por vós. E peço que rezeis por mim. E se
algum de vós não for crente – e não pode rezar, porque não é crente – que ao
menos me deseje coisas boas. Que Deus vos abençoe, vos faça continuar
por este caminho da esperança para a cultura do encontro, evitando esses
cubículos de que falou o nosso companheiro.
***
Depois de tudo isto, como é que se pode pôr
em causa o caráter católico do Papa Francisco, a sua teologia e a sua
espiritualidade ou rotulá-lo de marxista, liberal, apolítico ou hiperpolítico?
2015.09.24 – Louro de Carvalho
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