sábado, 12 de setembro de 2015

O 250.º aniversário do nascimento de Bocage

Como refere o Público de hoje, dia 12 de setembro, na cidade e município de Setúbal, vai decorrer durante um ano, a celebração dos 250 anos do nascimento de Bocage, com um vasto programa de comemorações, sendo as suas finalidades reavivar a memória em torno do poeta sadino e internacionalizar a sua obra. Trata-se de um conjunto de 250 iniciativas a cargo do município em parceria com o CEB (Centro de Estudos Bocageanos) e mais 25 instituições de todo o país.
A inauguração oficial das comemorações ocorrerá no próximo dia 15 de setembro, o do nascimento do poeta e feriado municipal de Setúbal, com a cerimónia do hastear da bandeira no edifício dos Paços do Município e o lançamento do selo postal nacional evocativo dos “250 Anos do Nascimento de Bocage” e do “Meu Selo”, produtos dos CTT e do Instituto Nacional Casa da Moeda (INCM) evocativos da notável efeméride.
Verificando que o poeta não tem o reconhecimento nacional que merece, a organização das comemorações pretende “trazer Bocage para o século XXI”, de acordo com as declarações de Maria das Dores Meira, presidente da Câmara Municipal de Setúbal. A iniciativa visa, assim, que “a cidade, os setubalenses e todos os que fazem de Setúbal a sua terra, se apropriem do poeta, que o sintam como seu” – diz a máxima responsável pela autarquia. E bem seria – digo eu – que a série de eventos adrede programada tocasse a sensibilidade histórica e literária da massa humanista dos portugueses.
Por sua vez, Daniel Pires, presidente do Centro de Estudos Bocageanos (CEB) e membro da comissão científica das comemorações, refere que “é uma oportunidade quase única de colocar Bocage no seu devido lugar na literatura e na cultura portuguesas”, acrescentando:
“Por razões várias, Bocage está de alguma forma esquecido, não ocupa o lugar que deveria, quando é de facto um dos maiores poetas portugueses de sempre”.
Da minha parte, creio que o poeta do Sado terá sido o melhor sonetista português.
A presidente do município não se furta ao elogio do vate, quando defende que “Bocage é um dos maiores poetas portugueses, equiparado a Luís Vaz de Camões ou Fernando Pessoa” e protesta o grande orgulho de Setúbal por ter sido o berço do poeta, em cujo embalamento persiste. Com efeito, o próprio se compara, no fado, na sorte e na ventura, ao grande lírico e épico quinhentista, embora se considere mero seguidor, tomando-o por modelo, que imita “nos transes da Ventura”, não “nos dons da Natureza”:
Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co' o sacrílego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura 
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.


Para o investigador Daniel Pires, entre as causas do quase esquecimento em que caiu o nome e a obra do poeta sadino, destacam-se duas (sendo estas as principais): o decurso e a erosão do tempo; e a especificidade da escrita bocageana. Com efeito, 250 anos é muito tempo e a sociedade hodierna é totalmente diferente da de setecentos. Por outro lado, apesar de Bocage ser um poeta popular (pela fama e por algo de excêntrico por que passou a sua vida), a sua poesia não é fácil e nem tão apetecível como parece à primeira impressão.
Perante esta dupla dificuldade, o ano de celebração de Elmano Sadino (seu pseudónimo arcádico), através de um vasto programa de comemorações, quer envolver as escolas e as associações culturais e recreativas do concelho de Setúbal e, segundo Pedro Pina, o vereador do pelouro da Cultura no município sadino, a recetividade já demonstrada pela comunidade educativa deixa antever grande e diversificada participação. Porém, segundo as suas palavras, o atinente à educação, para o qual estão programadas dezenas de atividades, significa apenas uma ínfima parte de todo o programa comemorativo de 250 iniciativas.
No concernente à internacionalização da obra de Bocage, o segundo grande objetivo traçado pela organização das comemorações, a Presidente da Câmara Municipal, já mencionada e citada, destaca a necessidade de “internacionalizar mais Elmano Sadino” e Daniel Pires, presidente do CEB, explica que a “internacionalização é possível” através da tradução da poesia bocageana afirmando a este respeito:
“Estamos a trabalhar nesse sentido, precisamos de que a sua poesia esteja disponível em francês, em inglês e em castelhano, e neste momento procuramos tradutores e editores da sua obra nestes países”.
Segundo o presidente do CEB, “as coisas estão bem encaminhadas” e a organização conta publicar edições em português-francês, português-inglês e português-castelhano até ao final do ano das comemorações. Depois, em setembro de 2016, deverá também realizar-se um congresso de encerramento, com investigadores de vários países, que, de acordo com Daniel Pires, constitui “outra forma de internacionalização”.
Por outro lado e apesar do mencionado seu quase esquecimento, a obra de Bocage revela atualmente alguma dinâmica editorial. Assim, a Biblioteca Nacional publicou recentemente uma antologia, preparada por Daniel Pires, com fábulas de Bocage em braille, o alfabeto para invisuais; e, para o próximo dia 15, está previsto o lançamento de uma biografia ilustrada de Elmano Sadino, com o título “Bocage: a Imagem e o Verbo”, preparada pelo mesmo especialista e editada pela Imprensa Nacional Casa da Moeda.
A propósito, cabe referir que Daniel Pires – fundador do Centro de Estudos Bocageanos e doutor pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa com tese sobre Bocage, intitulada A Transgressão em Bocage – estuda e divulga a obra de Bocage há 20 anos.
***
Apesar das numerosas biografias publicadas após a sua morte, boa parte da sua vida permanece envolta em mistério. Não se sabe que estudos fez, embora se deduza da sua obra que estudou os clássicos e as mitologias greco-romana e que estudou francês e latim. A identificação das mulheres que terá amado é duvidosa e discutível.
Manuel Maria Barbosa l'Hedois du Bocage, o maior representante do arcadismo lusitano e um insigne pré-romântico, nasceu em Setúbal, a 15 de setembro de 1765, e faleceu em Lisboa, a 21 de dezembro de 1805. Era filho do bacharel em Direito José Luís Soares de Barbosa, juiz de fora, ouvidor e, depois, advogado, e de D. Mariana Joaquina Xavier L'Hedois Lustoff du Bocage, cujo pai era o Almirante francês Gil Hedois du Bocage, que chegara a Lisboa em 1704, para reorganizar a Marinha de Guerra Portuguesa.
A sua infância foi infeliz. O pai foi preso, quando ele tinha seis anos e permaneceu na cadeia durante seis anos; e a mãe faleceu quando o menino tinha dez anos. Provavelmente ferido por amor não correspondido, assentou praça como voluntário em 22 de setembro de 1781 e permaneceu no Exército até 15 de setembro de 1783. Nessa data, ingressou na Escola da Marinha Real, onde fez estudos regulares para guarda-marinha. No final do curso desertou, mas, ainda assim, surge nomeado guarda-marinha pela rainha D. Maria I, a verdadeira. Nessa altura, já a sua fama de poeta e versejador corria por Lisboa.
Da Academia Real da Marinha embarcou em serviço para a Índia em 14 de abril de 1786, na nau “Nossa Senhora da Vida, Santo António e Madalena”, com passagem pelo Brasil, tendo chegado ao Rio de Janeiro em finais de junho.
Nesta cidade, viveu na atual Rua Teófilo Otoni e terá gostado tanto da cidade que, pretendendo permanecer definitivamente, dedicou ao vice-rei (ou capitão-general) algumas poesias-canção cheias de bajulações, visando atingir seus objetivos. Sendo, porém, o vice-rei avesso a elogios, e molestado com algumas rimas de baixo calão, que originaram a famosa frase: “quem tem c... tem medo, e eu também posso errar”, fê-lo prosseguir viagem para as Índias.
Fez escala na Ilha de Moçambique  (no início de setembro) e chegou à Índia a 28 de outubro de 1876. Em Pangim, frequentou de novo estudos regulares de oficial de marinha. Foi depois colocado em Damão, mas desertou em 1789, embarcando para Macau.
Viveu dois anos em Terras do Oriente, donde regressou a Lisboa com 25 anos de idade. Nesta cidade, dedicou-se a uma vida desregrada entre os botequins e as tertúlias literárias. Ainda em 1790, aderiu à Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia onde era conhecido pelo pseudónimo de Elmano Sadino. As suas relações com a Arcádia não foram pacíficas, tendo, ao afastar-se, lançando ferozes sátiras e ataques contundentes nos seus versos contra os confrades, rejeitando a loa mútua, entretanto, instalada em vez da crítica mútua.
A década seguinte é a da sua maior produção literária e também o período de maior boémia e vida de aventuras.
Dominava então Lisboa o Intendente da Polícia Pina Manique, que decidiu pôr ordem na cidade, tendo em 7 de agosto de 1797 dado ordem de prisão a Bocage por ser “desordenado nos costumes”. Ficou preso no Limoeiro até 14 de novembro de 1797, tendo depois dado entrada no calabouço da Inquisição, no Rossio. Ali ficou até 17 de fevereiro de 1798, tendo ido depois para o Real Hospício das Necessidades, dirigido pelos Padres Oratorianos de São Filipe de Néri, depois de uma breve passagem pelo Convento dos Beneditinos. Durante este longo período de detenção, Bocage mudou o seu comportamento e começou a trabalhar seriamente como redator e tradutor, sobretudo de poetas franceses e latinos. Só saiu em liberdade no último dia de 1798.
De 1799 a1801, trabalhou sobretudo com Frei José Mariano da Conceição Veloso, um frade brasileiro, politicamente bem situado e nas boas graças de Pina Manique, que lhe deu muitos trabalhos para traduzir.
A partir de 1801, até à morte por aneurisma, viveu em casa por ele arrendada no Bairro Alto, naquela que é hoje o n.º 25 da travessa André Valente.
As suas obras tiveram várias edições ainda em vida do poeta: Rimas, tomo I (1791), Rimas, tomo II (1799) e Rimas, tomo III (1804). Em 1811, foram publicadas as Obras Completas no Rio de Janeiro. Ficaram famosos os seus sonetos, epigramas, apólogos e fábulas.
***
Bocage é o poeta vivo, fascinante porque humano; incompreendido na obra como na vida. Falhado, arrependeu-se. Seduzido e sedutor, apelou à conversão.
Aqui se deixa o autorretrato daquele que tanto foi arauto da ânsia e do cântico da liberdade como da Imaculada Conceição (da Virgem santíssima) e que terminou a vida confessando, “Já Bocage não sou…/ …Se me creste, gente impia,/Rasga meus versos, crê na eternidade!”:
             Autorretrato
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura, 
Triste de facha, o mesmo de figura, 
Nariz alto no meio, e não pequeno:

Incapaz de assistir num só terreno, 
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura 
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades 
(Digo, de moças mil) num só momento, 
E somente no altar amando os frades

Eis Bocage, em quem luz algum talento; 
Saíram dele mesmo estas verdades 
Num dia em que se achou mais pachorrento.


2015.09.12 – Louro de Carvalho

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