Como
refere o Público de hoje, dia 12 de
setembro, na cidade e município de Setúbal, vai decorrer durante um ano, a
celebração dos 250 anos do nascimento de Bocage, com um vasto programa de
comemorações, sendo as suas finalidades reavivar a memória em torno do poeta sadino
e internacionalizar a sua obra. Trata-se de um conjunto de 250 iniciativas a
cargo do município em parceria com o CEB (Centro de Estudos
Bocageanos) e mais
25 instituições de todo o país.
A
inauguração oficial das comemorações ocorrerá no próximo dia 15 de setembro, o do
nascimento do poeta e feriado municipal de Setúbal, com a cerimónia do hastear da
bandeira no edifício dos Paços do Município e o lançamento do selo postal
nacional evocativo dos “250 Anos do
Nascimento de Bocage” e do “Meu Selo”,
produtos dos CTT e do Instituto Nacional Casa da Moeda (INCM) evocativos da notável efeméride.
Verificando
que o poeta não tem o reconhecimento nacional que merece, a organização das
comemorações pretende “trazer Bocage para o século XXI”, de acordo com as
declarações de Maria das Dores Meira, presidente da Câmara Municipal de
Setúbal. A iniciativa visa, assim, que “a cidade, os setubalenses e todos os
que fazem de Setúbal a sua terra, se apropriem do poeta, que o sintam como seu”
– diz a máxima responsável pela autarquia. E bem seria – digo eu – que a série
de eventos adrede programada tocasse a sensibilidade histórica e literária da massa
humanista dos portugueses.
Por
sua vez, Daniel Pires, presidente do Centro de Estudos Bocageanos (CEB) e membro
da comissão científica das comemorações, refere que “é uma oportunidade quase
única de colocar Bocage no seu devido lugar na literatura e na cultura portuguesas”,
acrescentando:
“Por razões várias, Bocage está de
alguma forma esquecido, não ocupa o lugar que deveria, quando é de facto um dos
maiores poetas portugueses de sempre”.
Da
minha parte, creio que o poeta do Sado terá sido o melhor sonetista português.
A presidente
do município não se furta ao elogio do vate, quando defende que “Bocage é um
dos maiores poetas portugueses, equiparado a Luís Vaz de Camões ou Fernando
Pessoa” e protesta o grande orgulho de Setúbal por ter sido o berço do poeta,
em cujo embalamento persiste. Com efeito, o próprio se compara, no fado, na
sorte e na ventura, ao grande lírico e épico quinhentista, embora se considere mero
seguidor, tomando-o por modelo, que imita “nos transes da Ventura”, não “nos
dons da Natureza”:
Camões,
grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! Igual causa nos fez, perdendo o Tejo, Arrostar co' o sacrílego gigante; Como tu, junto ao Ganges sussurrante, Da penúria cruel no horror me vejo; Como tu, gostos vãos, que em vão desejo, Também carpindo estou, saudoso amante. |
Ludíbrio,
como tu, da
Sorte dura
Meu fim
demando ao Céu, pela
certeza
De que
só terei paz na
sepultura.
Modelo
meu tu és,
mas... oh, tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura, Não te imito nos dons da Natureza. |
Para o
investigador Daniel Pires, entre as causas do quase esquecimento em que caiu o
nome e a obra do poeta sadino, destacam-se duas (sendo estas as principais): o decurso e a erosão do tempo;
e a especificidade da escrita bocageana. Com efeito, 250 anos é muito tempo e a
sociedade hodierna é totalmente diferente da de setecentos. Por outro lado,
apesar de Bocage ser um poeta popular (pela fama e por algo de
excêntrico por que passou a sua vida),
a sua poesia não é fácil e nem tão apetecível como parece à primeira impressão.
Perante
esta dupla dificuldade, o ano de celebração de Elmano Sadino (seu pseudónimo arcádico), através de um vasto programa
de comemorações, quer envolver as escolas e as associações culturais e
recreativas do concelho de Setúbal e, segundo Pedro Pina, o vereador do pelouro
da Cultura no município sadino, a recetividade já demonstrada pela comunidade
educativa deixa antever grande e diversificada participação. Porém, segundo as
suas palavras, o atinente à educação, para o qual estão programadas dezenas de atividades,
significa apenas uma ínfima parte de todo o programa comemorativo de 250
iniciativas.
No
concernente à internacionalização da obra de Bocage, o segundo grande objetivo
traçado pela organização das comemorações, a Presidente da Câmara Municipal, já
mencionada e citada, destaca a necessidade de “internacionalizar mais Elmano
Sadino” e Daniel Pires, presidente do CEB, explica que a “internacionalização é
possível” através da tradução da poesia bocageana afirmando a este respeito:
“Estamos a trabalhar nesse sentido,
precisamos de que a sua poesia esteja disponível em francês, em inglês e em
castelhano, e neste momento procuramos tradutores e editores da sua obra nestes
países”.
Segundo
o presidente do CEB, “as coisas estão bem encaminhadas” e a organização conta
publicar edições em português-francês, português-inglês e português-castelhano
até ao final do ano das comemorações. Depois, em setembro de 2016, deverá também
realizar-se um congresso de encerramento, com investigadores de vários países,
que, de acordo com Daniel Pires, constitui “outra forma de
internacionalização”.
Por
outro lado e apesar do mencionado seu quase esquecimento, a obra de Bocage
revela atualmente alguma dinâmica editorial. Assim, a Biblioteca Nacional
publicou recentemente uma antologia, preparada por Daniel Pires, com fábulas de
Bocage em braille, o alfabeto para invisuais; e, para o próximo dia 15, está
previsto o lançamento de uma biografia ilustrada de Elmano Sadino, com o título
“Bocage: a Imagem e o Verbo”,
preparada pelo mesmo especialista e editada pela Imprensa Nacional Casa da
Moeda.
A
propósito, cabe referir que Daniel Pires – fundador do Centro de Estudos
Bocageanos e doutor pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova de
Lisboa com tese sobre Bocage, intitulada A Transgressão em Bocage –
estuda e divulga a obra de Bocage há 20 anos.
***
Apesar das numerosas biografias
publicadas após a sua morte, boa parte da sua vida permanece envolta em
mistério. Não se sabe que estudos fez, embora se deduza da sua obra que estudou
os clássicos e as mitologias greco-romana e que estudou francês e latim. A
identificação das mulheres que terá amado é duvidosa e discutível.
Manuel Maria Barbosa l'Hedois du Bocage, o maior representante do arcadismo lusitano e um
insigne pré-romântico, nasceu em Setúbal, a 15 de
setembro de 1765, e faleceu em Lisboa, a 21 de dezembro de 1805. Era
filho do bacharel em Direito José Luís Soares de Barbosa, juiz de fora, ouvidor e, depois,
advogado, e de D. Mariana Joaquina Xavier L'Hedois Lustoff du Bocage, cujo pai
era o Almirante francês Gil Hedois du Bocage, que chegara a Lisboa em 1704,
para reorganizar a Marinha de Guerra Portuguesa.
A sua infância foi infeliz. O pai foi
preso, quando ele tinha seis anos e permaneceu na cadeia durante seis anos; e a
mãe faleceu quando o menino tinha dez anos. Provavelmente ferido por amor não
correspondido, assentou praça como voluntário em 22 de setembro de 1781 e
permaneceu no Exército até 15 de setembro de 1783. Nessa data, ingressou
na Escola da Marinha Real, onde fez estudos regulares para guarda-marinha. No
final do curso desertou, mas, ainda assim, surge nomeado guarda-marinha pela
rainha D. Maria I, a verdadeira. Nessa altura, já a sua fama de poeta e
versejador corria por Lisboa.
Da Academia Real da
Marinha embarcou em serviço para a Índia em 14 de abril de 1786, na nau “Nossa Senhora da Vida, Santo António e Madalena”, com passagem pelo
Brasil, tendo chegado ao Rio de Janeiro em finais de junho.
Nesta cidade, viveu na atual Rua Teófilo Otoni e terá gostado tanto da
cidade que, pretendendo permanecer definitivamente, dedicou ao vice-rei (ou capitão-general) algumas poesias-canção cheias de bajulações, visando atingir seus objetivos.
Sendo, porém, o vice-rei avesso a elogios, e molestado com algumas rimas de
baixo calão, que originaram a famosa frase: “quem tem c... tem medo, e eu
também posso errar”, fê-lo prosseguir viagem para as Índias.
Fez escala na Ilha de Moçambique
(no início de setembro) e chegou à Índia a 28 de outubro de 1876. Em Pangim, frequentou de novo
estudos regulares de oficial de marinha. Foi depois colocado em Damão, mas
desertou em 1789, embarcando para Macau.
Viveu dois anos em Terras do Oriente, donde regressou a Lisboa
com 25 anos de idade. Nesta cidade, dedicou-se a uma vida desregrada entre os
botequins e as tertúlias literárias. Ainda em 1790, aderiu à Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia onde era conhecido
pelo pseudónimo de Elmano Sadino. As
suas relações com a Arcádia não foram pacíficas, tendo, ao afastar-se, lançando
ferozes sátiras e ataques contundentes nos seus versos contra os confrades, rejeitando a loa mútua,
entretanto, instalada em vez da crítica mútua.
A década seguinte é a da sua maior
produção literária e também o período de maior boémia e vida de aventuras.
Dominava então Lisboa o
Intendente da Polícia Pina Manique, que decidiu pôr ordem na cidade,
tendo em 7 de agosto de 1797 dado ordem de prisão a Bocage por ser “desordenado
nos costumes”. Ficou preso no Limoeiro até 14 de novembro de 1797,
tendo depois dado entrada no calabouço da Inquisição, no Rossio. Ali ficou
até 17 de fevereiro de 1798, tendo ido depois para o Real Hospício das
Necessidades, dirigido pelos Padres Oratorianos de São Filipe de Néri,
depois de uma breve passagem pelo Convento dos Beneditinos. Durante este
longo período de detenção, Bocage mudou o seu comportamento e começou a
trabalhar seriamente como redator e tradutor, sobretudo de poetas franceses e
latinos. Só saiu em liberdade no último dia de 1798.
De 1799 a1801, trabalhou
sobretudo com Frei José Mariano da Conceição Veloso, um frade brasileiro, politicamente
bem situado e nas boas graças de Pina Manique, que lhe deu muitos
trabalhos para traduzir.
A partir de 1801, até à morte por
aneurisma, viveu em casa por ele arrendada no Bairro Alto, naquela que é
hoje o n.º 25 da travessa André Valente.
As suas obras tiveram várias edições ainda em vida do poeta: Rimas,
tomo I (1791), Rimas, tomo
II (1799) e Rimas, tomo III (1804). Em 1811, foram
publicadas as Obras Completas no Rio de Janeiro. Ficaram famosos os
seus sonetos, epigramas, apólogos e fábulas.
***
Bocage é o poeta vivo, fascinante porque
humano; incompreendido na obra como na vida. Falhado, arrependeu-se. Seduzido e
sedutor, apelou à conversão.
Aqui se deixa o autorretrato daquele que tanto foi
arauto da ânsia e do cântico da liberdade como da Imaculada Conceição (da Virgem santíssima) e
que terminou a vida confessando, “Já
Bocage não sou…/ …Se me creste, gente
impia,/Rasga meus versos, crê na eternidade!”:
Autorretrato
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno:
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno:
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades
Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades
Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.
2015.09.12 – Louro de Carvalho
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