segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Um romance escrito em cima do tempo da ação

“Volfrâmio” é outra designação de tungsténio. O termo “tungsténio” tem origem nos termos nórdicos tung sten, a significar pedra pesada, utilizados por Lexel Fredrik Cronstedt, em 1577, para designar o mineral que hoje se designa scheelita, descoberto na Suécia em 1750. É usado em muitas línguas como nome para designar este elemento. O termo “volfrâmio” ou “volfrâmio”, em voga em muitas línguas europeias, sobretudo nas línguas eslavas e germânicas, deriva do mineral volframita ou volframita. Este, por seu turno, deriva do alemão “wolf rahm” (“fuligem de lobo”, “creme de lobo”), o nome dado ao tungsténio por Johan Gottschalh Wallerius, em 1747, do qual derivou também o símbolo químico do elemento, W. Wolf rahm”, por sua vez, deriva de “Lupi spuma”, expressão latina usada por Georg Agricola para este elemento, em 1546, traduzida para português como “espuma”, “baba” ou “creme de lobo” e é uma referência às grandes quantidades de estanho perdidas na extração deste metal devido à presença de volframita no minério que continha o estanho. Aquela marca esbranquiçada que transparecia no metal em extração sugeria exatamente a baba de lobo. Comercialmente impôs-se a denominação alemã.  (Fonte: Wiquipédia)

Volfrâmio, o décimo romance de Aquilino Ribeiro, tem uma particularidade: a escrita decorre num tempo que recai sobre o tempo em que ação vai decorrendo, o que não é usual. Normalmente há um longo espaço temporal entre o tempo histórico e o tempo da escrita. Aquilino, porém, escreve a obra em 1942 (e a 1.ª edição surge em 1943), portanto, no decurso da II Guerra Mundial (1939-1945), e procede a uma segunda edição em 1944 com um prefácio justificativo em que que responde ao complexo das observações feitas pelos críticos, diga-se, mais sociopolíticos que literários.
Em termos comparativos, recordo que Miguel Miranda publicou, em 2008, tempo de escrita bem distante do da ação, o seu O Rei do Volfrâmio – A última viagem, com todo o requinte. Este é a saga dum país e das suas almas, a viver dum passado faustoso e iluminado, sem canalizar forças para o futuro, uma reflexão sobre a diáspora e as gerações de novos párias, uma ode ao amor, nas suas mais diversas e estranhas formas e uma elegia aos que das fraquezas fizeram forças, em nome da razão.
E porque o tempo da escrita não recai sobre o tempo da ação, o autor alarga o horizonte de contexto: “Na primeira metade do século XX, o mundo foi flagelado por guerras sucessivas, que causaram milhões de mortos, destruição e sofrimento. A pari, houve quem prosperasse com o esforço bélico, como os volframistas”. Porém, reduz o âmbito temporal da intervenção portuguesa na exploração e comércio do minério: “Portugal foi um dos principais exportadores de volfrâmio, durante a Guerra Civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial.”.
Por outro lado, dá ficcionalmente foros de tese de doutoramento ao tema do “enriquecimento súbito dos volframistas e sua queda na penúria do pós-guerra” por parte do investigador João de Deus: Este, imerso numa conturbada vida amorosa, investiga o passado de Petrónio Chibante, o Rei do Volfrâmio, explorador da mina Paraíso, em Vilar das Almas. O passado, convocado de modo estranho pela alma de Serafina Amásio, antes de abandonar o corpo, cruza-se com o presente, revivendo amores e desamores epocais, no lugar recôndito de Vilar e pelo mundo fora.
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Voltando ao nosso Aquilino, com a escrita do romance, volta o escritor à Beira que havia trocado pela narrativa citadina e pela vida em Lisboa. O insigne manejador da pena retorna às raízes da sua vivência e escrita, mas alcança uma experiência nova no seu múnus criador.
O romance radica numa problemática nova ao tempo, de que nos dá conta com a acutilância que se impõe, mas que o público leitor estranhou, talvez por se ver demasiado espelhado nas personagens, objetivos e tramas, até porque a problemática é nova, mas a forma de lidar com ela é como era, é e será. Ou seja, a temática é nova, mas a postura dos diversos intervenientes é transtemporal.
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Com a designação de volfrâmio ou de tungsténio, este minério, explorado em vários filões, de superfície ou de profundidade, no Centro e Norte do País, sobretudo nas Beiras, era procurado, durante a II Guerra Mundial, quer pelos países do bloco do Eixo quer pelos do dos Aliados, para o fabrico, sobretudo, de aços especiais, importantes como matéria-prima indispensável às fábricas de armamento para blindagens, cabeças de obuses, torpedos e outras máquinas de guerra, peças de avião e, ainda, como catalisador no fabrico de gasolina sintética.
É certo que na Beira Alta as explorações foram predominantemente de dimensão familiar e não de grandes proporções industriais, como na Beira Baixa – isto, se excetuarmos casos pontuais como o de Minas de Lagares, no lugar de Lousadela, da freguesia de Queiriga, concelho de Vila Nova de Paiva. Diga-se que, em alguns sítios, como nas imediações de Arouca, na Serra da Freita, coexistiam a exploração dos alemães e a dos ingleses, com as suas organizações e dirigentes próprios. Contudo, dirigentes e trabalhadores juntavam-se, nos tempos descanso e de folga, em franco convívio e cumplicidades pessoais e sociais.
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A Alemanha procura o volfrâmio por não dispor de jazidas; por seu turno, a Inglaterra, apesar de mais bem servida devido às suas colónias, e os Estados Unidos, que também eram produtores, contavam igualmente com a produção portuguesa, nem que fosse para obstar à aquisição em barda por parte da Alemanha.
Por decisão do Governo português, o país assumiu o estatuto de neutralidade beligerante ou cooperante, pelo que, ao menos teoricamente, não devia negar a venda dos seus produtos (e também deste) a nenhuma das partes beligerantes. Por um lado, o país tinha de respeitar a velha aliança com a Inglaterra; por outro, eram conhecidas as simpatias de alguns dos governantes pelos regimes de Hitler e de Mussolini e as tendências germanófilas da vizinha Espanha.
Sendo assim, os representantes dos países compradores aproximavam-se dos exploradores de volfrâmio (que até 1942 operavam no regime livre, com a simples obrigação de respeito pelas instruções da Comissão Reguladora do Comércio de Metais) e ofereciam preços aliciantes. Deu tal situação origem a uma diversidade de epifenómenos que o romancista escalpeliza no romance. Enumeram-se as fraudes, os roubos, os espezinhamentos, as corridas aos lugares onde se suspeitava haver jazigo, a candonga, etc. E, depois, assiste-se ao surgimento do novo-riquismo, caraterizado por comportamentos de arrogância exibicionista, concretizada em factos como: exibir a petulância da posse de maior cultura que os outros; empilhar notas de dinheiro; alardear a posse de n quilos de minério; fumar notas de conto de réis; promover a organização de festas nas suas terras a expensas exclusivas; agendar e apressar uma concretização pomposa de melhoramentos na terra; e comprar por caros tecidos e outros objetos baratos (porque os primeiros, melhores, eram rotulados com um preço que os pretensos compradores julgavam não serem condicentes com a sua nova condição socioeconómica). A este respeito, critica-se a jactância da excessiva posse de dinheiro que impedia a compra pelo justo preço dos tecidos e outros objetos existentes no momento. Porém, o mais condenável é a generalização desta mentalidade criada nas pessoas e grupos que tiveram o ensejo de singrar com o minério, apoucando os demais.
Ademais, o romance tem, não tanto ou não só, como outras obras, apontar o dedo ou a pena a um poder político opressor, mas também e sobretudo às relações socioeconómicas entre pares ou entre ricos e ricos, entre pobres e pobres, entre ricos e pobres e entre novos-ricos e os outros – em que uns e outros se escapam ou envolvem por entre fraudes, tramas e expedientes vários.
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Tudo mudou no primeiro semestre de 1942. O Governo teve de controlar o comércio e, por conseguinte, a exploração do volfrâmio. É que, pelo cunho dúbio da posição espanhola e pela atitude ambígua do Governo de Portugal, antevia-se como iminente uma invasão da Península Ibérica por parte dos beligerantes do bloco do Eixo, e/ou a tomada das bases militares dos Açores, por parte dos Aliados (designadamente Estados Unidos e Reino Unido), pela força e sem contrapartidas. E o Governo português, querendo manter a neutralidade a todo o custo, criou, por isso, dentro da Comissão Reguladora do Comércio de Metais, um serviço de compra e venda de todo o volfrâmio e estanho produzidos em Portugal. Este comércio torna-se agora, por esta via, monopólio do Estado, devendo a comissão fazer toda a compra, estabelecer os preços e determinar a tonelagem para exportação. Com muita dificuldade o Governo conseguiu equilibrar o fornecimento e as contrapartidas. A acrescentar aos vícios atrás apontados, deve somar-se a tentativa de suborno dos agentes ou representantes da comissão e o contrabando, dado que os estrangeiros (de um e de outro lado dos beligerantes) presentes no território nacional não desarmariam com facilidade na tentativa de reforço das respetivas dotações.
Aquilino, no romance, denuncia os vícios individuais e de grupo, a presença dos estrangeiros a sugar os produtos e a aproveitar a rapacidade dos mineiros (com a consequente concorrência desleal); a clara manifestação de uma primitividade económica duma população indigente e semibárbara, a exploração do trabalho infantil e feminino, o abandono da agricultura e da indústria e, depois, o monopólio de um Estado que teima numa neutralidade hipócrita e na exploração das classes baixas. O povo passa fome da negra, mas os comboios portugueses chegam à fronteira com a França com o rótulo “SOBRAS DE PORTUGAL”.
Estamos, como já foi dito, perante uma obra tecida no presente, não tão alicerçada no passado como outras. Tem uma escrita de tal modo atenta aos acontecimentos que parece que o narrador se move por entre eles. Todavia, como é natural, entre o início da escrita e o seu termo decorreram meses e mesmo anos.
Para lá da escrita, a pré-apresentação da primeira edição através da enorme pedra negra em provocante exposição na montra da Livraria Bertrand, a editora de quase todas as obras de Aquilino, preparou na mente dos críticos e dos leitores as mais díspares das reações, que foram desde a aceitação eufórica de uns à contundente mordacidade de outros, o que bem se compreende, dada a controversa faceta do escritor e o pungente dramatismo do momento. Foram tantos os que ali se viram retratados nos seus vícios; foram tantos os que queriam dizer aquelas coisas, mas a quem a coragem nunca assiste; eram tantos os zeladores da ideologia que suportava o regime; e eram tantos os opositores ocultos!...
O certo é que o livro teve um sucesso incrível, de que o autor nos dá conta no prefácio que acrescentou à segunda edição, como pode ler-se a seguir:
“Logrou este livro certo favor público, para lá do sufrágio a que me habituou o meu contingente de leitores fiéis e não decidi determinar porquê. Nele pressentiram uns a aventura empolgante à Jack London e bisbilhotaram outros uma crónica da atualidade com retratos ao vivo de permeio e os inevitáveis episódios de rapacidade e fereza.”.
O autor dá a entender o significado do fenómeno “volfrâmio”:
O volfrâmio foi para as populações do Norte, deserdadas de Deus, o que o maná foi para os Israelitas através do deserto faraónico”.
Segundo a crítica, o romance Volfrâmio, que é a imagem do Portugal rural, iletrado e atrasado, que de um momento para o outro, com a II Guerra Mundial, vê o volfrâmio das terras de paupérrimos recursos, valorizado, permitindo que o dinheiro começasse a jorrar a ritmos nunca previstos nas aldeias do interior do território. A obra, escrita por um homem com uma verve inigualável nas letras lusófonas, faz a descrição minuciosa do ridículo desse período fugaz de abastança no “Portugal dos tamancos” e dos gastos em festas, verdadeiras loas ao bacoquismo, em carros que as pessoas nem faziam ideia sequer do modo como trabalhavam, mas que punham na loja, a par do burro ou da junta de bois, não longe do porco para a matança, no jogo, nos artefactos de joalharia, nalguns casos pagos como tal, e mais não eram que pechisbeque, roupas caras e meretrizes, mandadas vir de Espanha para volúpias, pouco coincidentes com os códigos sexuais restritos da moral católica.
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Ficam ao dispor de quem ler algumas passagens com a descrição de uma mina de volfrâmio em pleno funcionamento, através dos olhos de Aires, uma das personagens do romance:
O ambiente geral visualizado pela personagem observante:
“Foi neste estado de espírito, quase cobardia, que, baixando da serra, entrou no braço de estrada que conduzia à exploração.
“Por ele marchavam isolados e em bandos, com a bolsinha pendurada do pau ou do pulso, homens mais andrajosos que ele no fito de retomar o trabalho, se não ajustar-se.
“De caminhos afluentes desembocavam mulheres com cestos à cabeça ou o seu molho de tangos, uma almotolia, encomendas das lojas, e entrevia-se nelas estas criaturas plurais que forjicam o bazulaque às maltas, as lavam e remendam, e ainda a tasqueira que abriu à margem da mina a baiuca de vinho, cigarros, petiscos e o resto.
“Andando, andando, chegou a um dédalo de caminhos, por um dos quais rolavam vagonetas, por outros ia e vinha o pessoal particular dos engenheiros e agentes técnicos, com as vivendas muito senhoris e claras à retaguarda de pequenas platibandas enfeitadas de pelargónios e eloendros.
“E, passos adiante, ao salvar a corcova do terreno, descobriu-se o formigueiro humano a seus olhos admirados, repartido em turmas consoante a natureza das tarefas, desprendendo uma barulheira a que era como abóbada o zunzum infernal dos volantes que se não viam.”
Depois, a pormenorização dos trabalhadores/trabalhadoras nas cercanias da mina:
“Até bem longe, quinhentos a mil metros, se via gente, mulheres que lavavam a terra mineralizada ao ar livre e debaixo de telheiros, braços arremangados, pés descalços, sai colhida entre os joelhos para a água não esperrinchar pelas pernas acima.
“Rapazotes, com boinas de homem, sem cor à força de usadas, a carne tenra a espreitar das camisas cheias de surro e em frangalhos, vinham baldear no monte o carrinho atestado de calhaus em que coruscavam como sol as pirites e palhetas de volframina.
“Mais ao largo, grande caterva de homens abria uma trincheira, e outra, para o morro, levava um banco de pedra e saibro à ponta de ferro e picareta. Aqui e além trabalhadores brocavam a rocha, enquanto a outros incumbia carregar os tiros de pólvora bombardeira.
“Crispados às varas dos sarilhos, muitos extraíam o resulho dos poços ou enxugavam-lhes a água para o trabalho prosseguir eficazmente.”.
A seguir, o acento na atividade capital da mina e o tipo de atividades e técnicas que mobiliza:
“Era subterrânea, por vezes, a dezenas de metros de profundidade, que se exercia a atividade capital da mina, com revólveres de ar comprimido a demolir a quartzo, piquetes de entivadores especializados a escorar as galerias, bombas elétricas e manuais a sorver a água dos regueirões, escombreiros mineiros de guilho e marreta, homens e mais homens à carga e descarga – pessoal complexo, testo e sabido na manobra”.
O ambiente de confusão à tona, só comparável a um arraial:
“A superfície era como um arraial. Por cima dos gritos, comandos, falas desencontradas, do retinir das ferramentas e estreloiçar das vagonas e raposas, o dínamo pulsava e a sua pancada mate e ensurdecedora criava este tónus especial, semibárbaro e feroz, da indústria moderna, homem e máquina conjugados.”.
O estatuto de Aires, a personagem cuja perspetiva dá aqui ao narrador a possibilidade da focalização interna:
“O Aires conhecia a Sobriga, não como assalariado, mas das rapiocas e visitas que ali fizera com outros curiosos.
“Não obstante, ao passar à beira da lavaria, em que estava integrado o transportador, com uma caradura brutesca em suas paredes a pique, altas e cegas, não deixou de estremecer de assombramento à ideia da obra de magia que ali se consumava: o calhau intonso convertido em farinha mineral, doce ao tacto e maravilhosa de propriedades.
(…)
“Girava tudo, ou afigurou-se-lhe, a ritmo acelerado: homens e máquinas. As vagonas descarregavam o recheio da ribanceira para baixo, e logo esse montão de cascalho passava através da passadeira rolante para as mandíbulas de aço dos trituradores.”
O Aires passa do sentimento e postura “de quase cobertura” a uma postura de observador contemplativo (“estremecer de assombramento”), segundo o que o narrador parece insinuar nos dois últimos excertos.
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Finalmente, saboreie-se a especificidade vocabular e o poder visualizante do escritor, cuja ductilidade e sustentabilidade de pena lhe facultam a apresentação do texto a progredir com um notável realismo pinturesco. E quem nos dera que o escritor beirão estive aqui e agora para exibir com toda a nudez e crueza as maleitas com que uma sociedade apodrecida emoldura a ação liderante da nossa classe política, salvaguardadas – é claro – as honrosas exceções!

2015.09.21 – Louro de Carvalho

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