“Volfrâmio” é
outra designação de tungsténio. O termo “tungsténio”
tem origem nos termos nórdicos tung sten,
a significar pedra pesada,
utilizados por Lexel Fredrik Cronstedt,
em 1577, para designar o mineral que hoje se designa scheelita, descoberto na Suécia em 1750. É usado em muitas línguas como nome para
designar este elemento. O termo “volfrâmio” ou “volfrâmio”, em voga em muitas
línguas europeias, sobretudo nas línguas eslavas e germânicas, deriva do
mineral volframita ou volframita. Este, por seu turno, deriva
do alemão “wolf rahm” (“fuligem
de lobo”, “creme de lobo”), o nome dado ao tungsténio por Johan Gottschalh
Wallerius, em 1747, do qual derivou também o símbolo químico do elemento, W. “Wolf
rahm”, por sua vez, deriva de “Lupi spuma”, expressão latina usada por Georg
Agricola para este elemento, em 1546, traduzida para português
como “espuma”, “baba” ou “creme de lobo” e é uma referência às grandes
quantidades de estanho perdidas
na extração deste metal devido à presença de volframita no minério que continha
o estanho. Aquela marca esbranquiçada que transparecia no metal em extração
sugeria exatamente a baba de lobo. Comercialmente impôs-se a denominação alemã.
(Fonte: Wiquipédia)
Volfrâmio, o décimo romance de Aquilino
Ribeiro, tem uma particularidade: a escrita decorre num tempo que recai sobre o
tempo em que ação vai decorrendo, o que não é usual. Normalmente há um longo
espaço temporal entre o tempo histórico e o tempo da escrita. Aquilino, porém,
escreve a obra em 1942 (e a 1.ª edição surge em 1943), portanto, no decurso da II
Guerra Mundial (1939-1945), e procede a uma segunda edição em 1944 com um
prefácio justificativo em que que responde ao complexo das observações feitas
pelos críticos, diga-se, mais sociopolíticos que literários.
Em termos comparativos, recordo
que Miguel Miranda publicou, em 2008, tempo de escrita bem distante do da ação,
o seu O Rei do Volfrâmio – A última viagem, com todo
o requinte.
Este é a saga dum país e
das suas almas, a viver dum passado faustoso e iluminado, sem canalizar forças
para o futuro, uma reflexão sobre a diáspora e as gerações de novos párias, uma
ode ao amor, nas suas mais diversas e estranhas formas e uma elegia aos que das
fraquezas fizeram forças, em nome da razão.
E porque o tempo da escrita não recai sobre o tempo da
ação, o autor alarga o horizonte de contexto: “Na primeira metade do século XX, o mundo foi flagelado por guerras
sucessivas, que causaram milhões de mortos, destruição e sofrimento. A pari, houve quem prosperasse com o
esforço bélico, como os volframistas”. Porém, reduz o âmbito temporal da
intervenção portuguesa na exploração e comércio do minério: “Portugal foi um dos
principais exportadores de volfrâmio, durante
a Guerra Civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial.”.
Por outro lado, dá ficcionalmente foros de tese de
doutoramento ao tema do “enriquecimento súbito dos volframistas e sua queda na
penúria do pós-guerra” por parte do investigador João de Deus: Este, imerso
numa conturbada vida amorosa, investiga o passado de Petrónio Chibante, o Rei
do Volfrâmio, explorador da mina Paraíso, em Vilar das Almas. O passado, convocado
de modo estranho pela alma de Serafina Amásio, antes de abandonar o corpo,
cruza-se com o presente, revivendo amores e desamores epocais, no lugar
recôndito de Vilar e pelo mundo fora.
***
Voltando
ao nosso Aquilino, com a escrita do romance, volta o escritor à Beira que havia
trocado pela narrativa citadina e pela vida em Lisboa. O insigne manejador da
pena retorna às raízes da sua vivência e escrita, mas alcança uma experiência
nova no seu múnus criador.
O
romance radica numa problemática nova ao tempo, de que nos dá conta com a
acutilância que se impõe, mas que o público leitor estranhou, talvez por se ver
demasiado espelhado nas personagens, objetivos e tramas, até porque a
problemática é nova, mas a forma de lidar com ela é como era, é e será. Ou
seja, a temática é nova, mas a postura dos diversos intervenientes é
transtemporal.
***
Com
a designação de volfrâmio ou de tungsténio, este minério, explorado em vários
filões, de superfície ou de profundidade, no Centro e Norte do País, sobretudo
nas Beiras, era procurado, durante a II Guerra Mundial, quer pelos países do
bloco do Eixo quer pelos do dos Aliados, para o fabrico, sobretudo, de
aços especiais, importantes como matéria-prima indispensável às fábricas de
armamento para blindagens, cabeças de obuses, torpedos e outras máquinas de
guerra, peças de avião e, ainda, como catalisador no fabrico de gasolina
sintética.
É
certo que na Beira Alta as explorações foram predominantemente de dimensão
familiar e não de grandes proporções industriais, como na Beira Baixa – isto,
se excetuarmos casos pontuais como o de Minas de Lagares, no lugar de
Lousadela, da freguesia de Queiriga, concelho de Vila Nova de Paiva. Diga-se
que, em alguns sítios, como nas imediações de Arouca, na Serra da Freita,
coexistiam a exploração dos alemães e a dos ingleses, com as suas organizações
e dirigentes próprios. Contudo, dirigentes e trabalhadores juntavam-se, nos tempos
descanso e de folga, em franco convívio e cumplicidades pessoais e sociais.
***
A
Alemanha procura o volfrâmio por não dispor de jazidas; por seu turno, a
Inglaterra, apesar de mais bem servida devido às suas colónias, e os Estados
Unidos, que também eram produtores, contavam igualmente com a produção
portuguesa, nem que fosse para obstar à aquisição em barda por parte da
Alemanha.
Por
decisão do Governo português, o país assumiu o estatuto de neutralidade beligerante
ou cooperante, pelo que, ao menos teoricamente, não devia negar a venda dos
seus produtos (e também deste) a nenhuma das partes
beligerantes. Por um lado, o país tinha de respeitar a velha aliança com a
Inglaterra; por outro, eram conhecidas as simpatias de alguns dos governantes
pelos regimes de Hitler e de Mussolini e as tendências germanófilas da vizinha
Espanha.
Sendo
assim, os representantes dos países compradores aproximavam-se dos exploradores
de volfrâmio (que até 1942 operavam no regime livre, com a simples
obrigação de respeito pelas instruções da Comissão
Reguladora do Comércio de Metais)
e ofereciam preços aliciantes. Deu tal situação origem a uma diversidade de
epifenómenos que o romancista escalpeliza no romance. Enumeram-se as fraudes,
os roubos, os espezinhamentos, as corridas aos lugares onde se suspeitava haver
jazigo, a candonga, etc. E, depois, assiste-se ao surgimento do novo-riquismo,
caraterizado por comportamentos de arrogância exibicionista, concretizada em
factos como: exibir a petulância da posse de maior cultura que os outros;
empilhar notas de dinheiro; alardear a posse de n quilos de minério;
fumar notas de conto de réis; promover a organização de festas nas suas terras
a expensas exclusivas; agendar e apressar uma concretização pomposa de
melhoramentos na terra; e comprar por caros tecidos e outros objetos baratos (porque
os primeiros, melhores, eram rotulados com um preço que os pretensos
compradores julgavam não serem condicentes com a sua nova condição socioeconómica). A este respeito, critica-se a
jactância da excessiva posse de dinheiro que impedia a compra pelo justo preço
dos tecidos e outros objetos existentes no momento. Porém, o mais condenável é
a generalização desta mentalidade criada nas pessoas e grupos que tiveram o
ensejo de singrar com o minério, apoucando os demais.
Ademais,
o romance tem, não tanto ou não só, como outras obras, apontar o dedo ou a pena
a um poder político opressor, mas também e sobretudo às relações
socioeconómicas entre pares ou entre ricos e ricos, entre pobres e pobres,
entre ricos e pobres e entre novos-ricos e os outros – em que uns e outros se
escapam ou envolvem por entre fraudes, tramas e expedientes vários.
***
Tudo
mudou no primeiro semestre de 1942. O Governo teve de controlar o comércio e,
por conseguinte, a exploração do volfrâmio. É que, pelo cunho dúbio da posição
espanhola e pela atitude ambígua do Governo de Portugal, antevia-se como
iminente uma invasão da Península Ibérica por parte dos beligerantes do bloco
do Eixo, e/ou a tomada das bases
militares dos Açores, por parte dos Aliados
(designadamente
Estados Unidos e Reino Unido),
pela força e sem contrapartidas. E o Governo português, querendo manter a
neutralidade a todo o custo, criou, por isso, dentro da Comissão Reguladora do Comércio de Metais, um serviço de compra e
venda de todo o volfrâmio e estanho produzidos em Portugal. Este comércio
torna-se agora, por esta via, monopólio do Estado, devendo a comissão fazer
toda a compra, estabelecer os preços e determinar a tonelagem para exportação.
Com muita dificuldade o Governo conseguiu equilibrar o fornecimento e as
contrapartidas. A acrescentar aos vícios atrás apontados, deve somar-se a
tentativa de suborno dos agentes ou representantes da comissão e o contrabando,
dado que os estrangeiros (de um e de outro lado dos
beligerantes)
presentes no território nacional não desarmariam com facilidade na tentativa de
reforço das respetivas dotações.
Aquilino,
no romance, denuncia os vícios individuais e de grupo, a presença dos
estrangeiros a sugar os produtos e a aproveitar a rapacidade dos mineiros (com
a consequente concorrência desleal);
a clara manifestação de uma primitividade económica duma população indigente e
semibárbara, a exploração do trabalho infantil e feminino, o abandono da
agricultura e da indústria e, depois, o monopólio de um Estado que teima numa
neutralidade hipócrita e na exploração das classes baixas. O povo passa fome da
negra, mas os comboios portugueses chegam à fronteira com a França com o rótulo
“SOBRAS DE PORTUGAL”.
Estamos,
como já foi dito, perante uma obra tecida no presente, não tão alicerçada no
passado como outras. Tem uma escrita de tal modo atenta aos acontecimentos que
parece que o narrador se move por entre eles. Todavia, como é natural, entre o
início da escrita e o seu termo decorreram meses e mesmo anos.
Para
lá da escrita, a pré-apresentação da primeira edição através da enorme pedra
negra em provocante exposição na montra da Livraria Bertrand, a editora de
quase todas as obras de Aquilino, preparou na mente dos críticos e dos leitores
as mais díspares das reações, que foram desde a aceitação eufórica de uns à contundente
mordacidade de outros, o que bem se compreende, dada a controversa faceta do
escritor e o pungente dramatismo do momento. Foram tantos os que ali se viram
retratados nos seus vícios; foram tantos os que queriam dizer aquelas coisas, mas
a quem a coragem nunca assiste; eram tantos os zeladores da ideologia que
suportava o regime; e eram tantos os opositores ocultos!...
O
certo é que o livro teve um sucesso incrível, de que o autor nos dá conta no prefácio
que acrescentou à segunda edição, como pode ler-se a seguir:
“Logrou
este livro certo favor público, para lá do sufrágio a que me habituou o meu
contingente de leitores fiéis e não decidi determinar porquê. Nele pressentiram
uns a aventura empolgante à Jack London
e bisbilhotaram outros uma crónica da atualidade com retratos ao vivo de permeio
e os inevitáveis episódios de rapacidade e fereza.”.
O autor dá a entender
o significado do fenómeno “volfrâmio”:
O volfrâmio foi para as populações do Norte, deserdadas de
Deus, o que o maná foi para os Israelitas através do deserto faraónico”.
Segundo a crítica, o romance Volfrâmio, que é a imagem do Portugal rural, iletrado e atrasado,
que de um momento para o outro, com a II Guerra Mundial, vê o volfrâmio das
terras de paupérrimos recursos, valorizado, permitindo que o dinheiro começasse
a jorrar a ritmos nunca previstos nas aldeias do interior do território.
A obra, escrita por um homem com uma verve inigualável nas letras lusófonas,
faz a descrição minuciosa do ridículo desse período fugaz de abastança no “Portugal
dos tamancos” e dos gastos em festas, verdadeiras loas ao bacoquismo, em carros
que as pessoas nem faziam ideia sequer do modo como trabalhavam, mas que punham
na loja, a par do burro ou da junta de bois, não longe do porco para a matança,
no jogo, nos artefactos de joalharia, nalguns casos pagos como tal, e mais não
eram que pechisbeque, roupas caras e meretrizes, mandadas vir de Espanha para
volúpias, pouco coincidentes com os códigos sexuais restritos da moral católica.
***
Ficam ao dispor de quem ler algumas passagens com a descrição
de uma mina de volfrâmio em pleno funcionamento, através dos olhos de Aires,
uma das personagens do romance:
O
ambiente geral visualizado pela personagem observante:
“Foi neste estado de espírito, quase cobardia, que, baixando
da serra, entrou no braço de estrada que conduzia à exploração.
“Por ele marchavam isolados e em bandos, com a bolsinha
pendurada do pau ou do pulso, homens mais andrajosos que ele no fito de retomar
o trabalho, se não ajustar-se.
“De caminhos afluentes desembocavam mulheres com cestos à
cabeça ou o seu molho de tangos, uma almotolia, encomendas das lojas, e entrevia-se
nelas estas criaturas plurais que forjicam o bazulaque às maltas, as lavam e
remendam, e ainda a tasqueira que abriu à margem da mina a baiuca de vinho,
cigarros, petiscos e o resto.
“Andando, andando, chegou a um dédalo de caminhos, por um dos
quais rolavam vagonetas, por outros ia e vinha o pessoal particular dos
engenheiros e agentes técnicos, com as vivendas muito senhoris e claras à retaguarda
de pequenas platibandas enfeitadas de pelargónios e eloendros.
“E, passos adiante, ao salvar a corcova do terreno,
descobriu-se o formigueiro humano a seus olhos admirados, repartido em turmas
consoante a natureza das tarefas, desprendendo uma barulheira a que era como
abóbada o zunzum infernal dos volantes que se não viam.”
Depois,
a pormenorização dos trabalhadores/trabalhadoras nas cercanias da mina:
“Até bem longe, quinhentos a mil metros, se via gente, mulheres
que lavavam a terra mineralizada ao ar livre e debaixo de telheiros, braços
arremangados, pés descalços, sai colhida entre os joelhos para a água não
esperrinchar pelas pernas acima.
“Rapazotes,
com boinas de homem, sem cor à força de usadas, a carne tenra a espreitar das
camisas cheias de surro e em frangalhos, vinham baldear no monte o carrinho
atestado de calhaus em que coruscavam como sol as pirites e palhetas de
volframina.
“Mais
ao largo, grande caterva de homens abria uma trincheira, e outra, para o morro,
levava um banco de pedra e saibro à ponta de ferro e picareta. Aqui e além trabalhadores
brocavam a rocha, enquanto a outros incumbia carregar os tiros de pólvora bombardeira.
“Crispados
às varas dos sarilhos, muitos extraíam o resulho dos poços ou enxugavam-lhes a
água para o trabalho prosseguir eficazmente.”.
A seguir, o acento
na atividade capital da mina e o tipo de atividades e técnicas que mobiliza:
“Era
subterrânea, por vezes, a dezenas de metros de profundidade, que se exercia a
atividade capital da mina, com revólveres de ar comprimido a demolir a quartzo,
piquetes de entivadores especializados a escorar as galerias, bombas elétricas
e manuais a sorver a água dos regueirões, escombreiros mineiros de guilho e
marreta, homens e mais homens à carga e descarga – pessoal complexo, testo e
sabido na manobra”.
O ambiente de confusão
à tona, só comparável a um arraial:
“A
superfície era como um arraial. Por cima dos gritos, comandos, falas
desencontradas, do retinir das ferramentas e estreloiçar das vagonas e raposas,
o dínamo pulsava e a sua pancada mate e ensurdecedora criava este tónus
especial, semibárbaro e feroz, da indústria moderna, homem e máquina
conjugados.”.
O estatuto de Aires,
a personagem cuja perspetiva dá aqui ao narrador a possibilidade da focalização
interna:
“O
Aires conhecia a Sobriga, não como assalariado, mas das rapiocas e visitas que
ali fizera com outros curiosos.
“Não
obstante, ao passar à beira da lavaria, em que estava integrado o transportador,
com uma caradura brutesca em suas paredes a pique, altas e cegas, não deixou de
estremecer de assombramento à ideia da obra de magia que ali se consumava: o
calhau intonso convertido em farinha mineral, doce ao tacto e maravilhosa de propriedades.
(…)
“Girava
tudo, ou afigurou-se-lhe, a ritmo acelerado: homens e máquinas. As vagonas descarregavam o recheio da ribanceira para baixo, e logo esse montão de
cascalho passava através da passadeira rolante para as mandíbulas de aço dos
trituradores.”
O
Aires passa do sentimento e postura “de quase cobertura” a uma postura de
observador contemplativo (“estremecer de assombramento”), segundo o que o narrador
parece insinuar nos dois últimos excertos.
***
Finalmente,
saboreie-se a especificidade vocabular e o poder visualizante do escritor, cuja
ductilidade e sustentabilidade de pena lhe facultam a apresentação do texto a progredir
com um notável realismo pinturesco. E quem nos dera que o escritor beirão
estive aqui e agora para exibir com toda a nudez e crueza as maleitas com que
uma sociedade apodrecida emoldura a ação liderante da nossa classe política,
salvaguardadas – é claro – as honrosas exceções!
2015.09.21 –
Louro de Carvalho
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