domingo, 27 de setembro de 2015

Difícil discurso papal no Congresso americano


O Papa falou à assembleia plenária do Congresso com mostras de simpatia e de proximidade identificando-se como americano, mercê da imigração como muitos outros, e terminou a sua alocução religiosamente como fazem os notáveis oradores americanos “Deus abençoe a América”.
Além disso, evidenciou algumas riquezas do património cultural, do espírito do povo americano, desejando que este espírito se desenvolva e cresça de modo que os jovens possam herdar e habitar numa terra que inspirou tantas pessoas a sonhar.  
E acabou por apresentar noções sobre: papel dos deputados; definição de política; perfil do bom líder; pressupostos duma economia moderna; e novas caraterísticas da dinâmica empresarial.

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Insere a vocação dos congressistas no quadro da responsabilidade básica pessoal e social dos cidadãos. Porém, cabe-lhes a eles, como rosto do povo, a missão específica de, através da produção legislativa, fazer com que o país cresça como nação.
Depois, enuncia o fim da política: o bem comum, conseguido através da busca incansável e exigente, que se espelha no cuidado das pessoas, satisfazendo as carências comuns, com relevo para os que estão em situação de maior vulnerabilidade ou risco. E atribui-lhes um significado nobre: Como Moisés, os congressistas têm de perceber a necessidade que o povo tem de “manter vivo o seu sentido de unidade” através dos “instrumentos duma legislação justa”. Por outro lado, os congressistas, tal como Moisés remetia diretamente para Deus e para a dignidade transcendente do ser humano, “devem proteger, com os instrumentos da lei, a imagem e semelhança moldadas por Deus em cada rosto humano”.
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Passa a manifestar a vontade de dialogar com os inúmeros milhares de homens e mulheres que trabalham, esforçando-se por trazer para casa o pão de cada dia e construir uma vida melhor para as suas famílias. São pessoas que “sustentam a vida da sociedade”, “geram solidariedade com as suas atividades e criam organizações que ajudam quem tem mais necessidade”.
Depois, menciona os idosos enquanto “depósito de sabedoria forjada pela experiência e que procuram de muito modos, especialmente através do voluntariado, partilhar as suas histórias e experiências”.
Alude aos jovens “que lutam por realizar as suas grandes e nobres aspirações, que não se deixam extraviar por propostas superficiais e que enfrentam situações difíceis, tantas vezes resultantes da imaturidade de muitos adultos”.
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No contexto de celebração aniversária de americanos famosos, Francisco evoca alguns dos que enditam a memória coletiva. Afirma que eles “foram capazes, com todas as suas diferenças e limitações, de construir um futuro melhor com trabalho duro e sacrifício pessoal – alguns à custa da própria vida”, dando “forma a valores fundamentais, que permanecerão para sempre no espírito do povo americano”. De entre eles, destaca Abraham Lincoln, Martin Luther King, Dorothy Day e Thomas Merton.
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No sesquicentenário do assassinato do Presidente Abraham Lincoln, Francisco elogia “o guardião da liberdade e sublinha que a construção dum “futuro de liberdade requer amor pelo bem comum e colaboração num espírito de subsidiariedade e solidariedade”. E contrapõe a este cenário positivo o cenário polvoroso do mundo atual: o mundo como “lugar de conflitos violentos, ódios e atrocidade brutais, cometidos até mesmo em nome de Deus e da religião”.
Repudiando, pois, qualquer forma de “fundamentalismo, tanto religioso como de qualquer outro género”, pugna por um “delicado equilíbrio para se combater a violência” perpetrada em nome duma religião, ideologia ou sistema económico, enquanto “se salvaguarda a liberdade religiosa, a liberdade intelectual e as liberdades individuais”.
Recusa também o reducionismo maniqueísta que vê o bem todo dum lado e do outro todo o mal e adverte que “imitar o ódio e a violência dos tiranos e dos assassinos é o modo melhor para ocupar o seu lugar”. Ao invés, propõe “uma resposta de esperança e cura, de paz e justiça”. E explica:
Os nossos esforços devem concentrar-se em restaurar a paz, remediar os erros, manter os compromissos e assim promover o bem-estar dos indivíduos e dos povos. Devemos avançar juntos, como um só, num renovado espírito de fraternidade e solidariedade, colaborando generosamente para o bem comum.

Depois, salienta o papel das várias denominações religiosas “na construção e fortalecimento da sociedade” e apela a que “a voz da fé continue a ser ouvida” enquanto “voz de fraternidade e de amor que procura fazer surgir o melhor em cada pessoa e em cada sociedade”. É esta cooperação “um poderoso recurso” para a eliminação das novas formas de escravidão, nascidas de graves injustiças que só podem ser superadas com “novas políticas” e formas de consenso.
Reconhece a singular marca da história política dos Estados Unidos, “onde a democracia está profundamente radicada no espírito do povo americano”. Depois de evocar a Declaração de Independência, propõe uma política que esteja verdadeiramente ao serviço da pessoa humana, que não pode estar submetida à economia e às finanças. E, como justificação, apresenta a sua noção de política:
A expressão da nossa insuprível necessidade de vivermos juntos em unidade, para podermos construir unidos o bem comum maior – uma comunidade que sacrifique os interesses particulares para poder partilhar, na justiça e na paz, os seus benefícios, os seus interesses, a sua vida social.
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Evocando a marcha de Martin Luther King, há 50 anos, de Selma a Montgomery, como parte da campanha para alcançar o sonho de plenos direitos civis e políticos para os afro-americanos, o Pontífice sustenta o cariz inspirador daquele sonho, que leva “à ação, à participação, ao compromisso”. Aponta a América como uma terra de sonhos, para muitos, e declara:
Nos últimos séculos, milhões de pessoas chegaram a esta terra perseguindo o sonho de construírem um futuro em liberdade. Nós, pessoas deste continente, não temos medo dos estrangeiros, porque outrora muitos de nós éramos estrangeiros.

No entanto, o Papa não deixa de lançar um olhar crítico sobre o passado:
Tragicamente, os direitos daqueles que estavam aqui, muito antes de nós, nem sempre foram respeitados. (…). Aqueles primeiros contactos foram muitas vezes tumultuosos e violentos, mas é difícil julgar o passado com os critérios do presente.

Sobre a atitude a adotar, exprime-se com clareza, sobre a relação com os imigrantes:
Quando o estrangeiro no nosso meio nos interpela, não devemos repetir os pecados e os erros do passado. Devemos decidir viver agora o mais nobre e justamente possível e, de igual modo, formar as novas gerações para não virarem as costas ao seu próximo e a tudo o que nos rodeia. Construir uma nação pede-nos para reconhecer que devemos constantemente relacionar-nos com os outros, rejeitando uma mentalidade de hostilidade para se adotar uma subsidiariedade recíproca, num esforço constante de contribuir com o melhor de nós.

Em relação ao presente, Francisco mostra-se realista e sublinha o epifenómeno dos refugiados e dos que, no continente americano, se sentem impelidos a viajar para o Norte. Esta crise de refugiados, que assumiu proporções não vistas desde os tempos da II Guerra Mundial, constitui uma realidade que nos coloca perante “grandes desafios e decisões difíceis”. Evocando a regra de ouro (o que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles – Mt 7,12), explicita:
Não devemos deixar-nos assustar pelo seu número, mas antes olhá-los como pessoas, fixando os seus rostos e ouvindo as suas histórias, procurando responder o melhor que pudermos às suas situações. Uma resposta que seja sempre humana, justa e fraterna. Devemos evitar uma tentação hoje comum: descartar quem quer que se demonstre problemático.

Por consequência e a nível positivo,
Procuremos para os outros as mesmas possibilidades que buscamos para nós mesmos. Ajudemos os outros a crescer, como quereríamos ser ajudados nós mesmos. Em suma, se queremos segurança, demos segurança; se queremos vida, demos vida; se queremos oportunidades, providenciemos oportunidades. A medida que usarmos para os outros será a medida que o tempo usará para connosco.


E com toda a clareza expõe a sua convicção:
A regra de ouro põe-nos diante também da nossa responsabilidade de proteger e defender a vida humana em todas as fases do seu desenvolvimento.

Ora, porque cada vida é sagrada, cada pessoa humana está dotada duma dignidade inalienável, e a sociedade só pode beneficiar da reabilitação daqueles que são condenados por crimes, o Papa Francisco declara o seu apoio aos bispos dos Estados Unidos, que recentemente “renovaram o seu apelo pela abolição da pena de morte”. Mais: encoraja “todos aqueles que estão convencidos de que uma punição justa e necessária nunca deve excluir a dimensão da esperança e o objectivo da reabilitação”.
Em suma, o Pontífice declara-se contra a pena de morte e contra a prisão perpétua!
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Num tempo de grandes preocupações sociais, vem a referência à Serva de Deus Dorothy Day, que fundou o Catholic Worker Movement, e ao seu compromisso social e paixão pela justiça e pela causa dos oprimidos, com inspiração no Evangelho, na sua fé e no exemplo dos Santos.
À sombra da obra benfazeja desta americana extraordinária, Francisco reconhece o trabalho feito “para fazer sair as pessoas da pobreza extrema”. Não obstante, mostrou a convicção “de que se tem de fazer ainda muito mais e de que, em tempos de crise e dificuldade económica, não se deve perder o espírito de solidariedade global”. Mais: não se podem esquecer todas as pessoas à nossa volta encastradas nas espirais da pobreza; é preciso dar-lhes esperança. A luta contra a pobreza e contra a fome deve ser travada com constância nas suas múltiplas frentes, especialmente nas suas causas.
Para tanto, há que apostar na criação e distribuição de riqueza; na utilização correta dos recursos naturais; na aplicação apropriada da tecnologia; e na capacidade de orientar devidamente o espírito empresarial – elementos essenciais duma economia que procura ser moderna, inclusiva e sustentável.
Por outro lado, há que fazer da atividade empresarial – nobre vocação orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos – “uma maneira muito fecunda de promover a região onde instala os seus empreendimentos”, sobretudo através da “criação de postos de trabalho” como “parte imprescindível do seu serviço ao bem comum”.
Segundo a perspetiva papal, o bem comum inclui “também a terra”, tema central da Encíclica Laudato si’, escrita para “entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum” e propor “um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito [a todos] e têm impacto sobre todos nós” (LS,14).
Torna-se imperativo o “esforço corajoso e responsável para mudar de rumo e evitar os efeitos mais sérios da degradação ambiental causada pela atividade humana”. Continuando a citar a encíclica, ligando a luta contra a pobreza ao cuidado da natureza e expressando a sua confiança no “contributo vital das instituições americanas de investigação e académicas nos próximos anos, o insigne orador explicita:
Agora é o momento de empreender ações corajosas e estratégias tendentes a implementar uma cultura do cuidado e uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza. Temos a liberdade necessária para limitar e orientar a tecnologia, para individuar modos inteligentes de orientar, cultivar e limitar o nosso poder e colocar a tecnologia ao serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral.
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Quanto a Thomas Merton, este monge cisterciense, nasceu há um século, nos começos da I Grande Guerra, que o Papa Bento XV chamou de “massacre inútil”. E continua a ser “uma fonte de inspiração espiritual e um guia para muitas pessoas”. Merton era, acima de tudo, “o homem de oração”, o “pensador que desafiou as certezas da época e abriu novos horizontes para as almas e para a Igreja”, o “homem de diálogo”, o “promotor de paz entre povos e religiões”.
À luz do perfil deste extraordinário americano, o Papa – convicto do seu “dever de construir pontes e ajudar, por todos os modos possíveis, cada homem e cada mulher a fazerem o mesmo” – saúda os esforços dos últimos meses para “procurar superar as diferenças históricas ligadas a episódios dolorosos do passado”. Nesta perspetiva, assegura (provavelmente, tendo em mente Cuba e Estados Unidos) que, “quando nações que estiveram em desavença retomam o caminho do diálogo, se abrem “novas oportunidades para todos”.
No pressuposto de que isto exige coragem e audácia, enuncia, citando a sua Evangelii Gaudium (222-223), o perfil do bom líder político:
O bom líder político é aquele que, tendo em conta os interesses de todos, lê o momento presente com espírito de abertura e sentido prático. Um bom líder político não cessa de optar mais por iniciar processos do que possuir espaços.

Porém, estar ao serviço do diálogo e da paz significa, segundo o Papa Bergoglio, a determinação “em reduzir e, a longo prazo, pôr termo a tantos conflitos armados em todo o mundo”.
E vem, de imediato, a interrogação pertinente: Por que motivo se vendem armas letais àqueles que têm em mente infligir sofrimentos inexprimíveis a indivíduos e sociedade?
Com a reposta certa, mas infeliz: Por dinheiro; dinheiro que está impregnado de sangue, e muitas vezes sangue inocente.
Com uma exigência: Perante este silêncio vergonhoso e culpável, é nosso dever enfrentar o problema e deter o comércio de armas.
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Finalmente, evocando o Encontro Mundial das Famílias, em que vai participar, enaltece a essencialidade da família na construção do país e que “merece o nosso apoio e encorajamento”, perante as inúmeras ameaças que impendem sobre ela, internas e externas.
Sobre isto, repropõe a importância e, sobretudo, a riqueza e a beleza da vida familiar”, não perdendo o ensejo de chamar a atenção para os jovens, que são os membros da família mais vulneráveis. E diz:
Para muitos deles anuncia-se um futuro cheio de tantas possibilidades, mas muitos outros parecem desorientados e sem uma meta, encastrados num labirinto sem esperança, marcado por violências, abusos e desespero. Os seus problemas são os nossos problemas. (…). É necessário enfrentá-los juntos, falar deles e procurar soluções eficazes em vez de ficar empantanados nas discussões. (…). Vivemos numa cultura que impele os jovens a não formarem uma família, porque lhes faltam possibilidades para o futuro. Mas esta mesma cultura apresenta a outros tantas opções que também eles são dissuadidos de formar uma família.
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Discurso difícil, na dialética entre a simpatia e a dureza dos problemas a enfrentar com esperança e determinação – que vale a pena ler e reler, porque se dirige aos americanos no horizonte do mundo inteiro.

2015.09.27 – Louro de Carvalho 

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