Na entrevista que o Papa Francisco concedeu em
exclusivo à jornalista da Rádio Renascença Aura Miguel e que foi para o ar no
dia 15 de setembro, um dos temas abordados foi o da crise por que passa o mundo
e, em especial, a Europa por causa do surto contínuo de refugiados e de
migrantes.
A este respeito, na entrevista com fins
eleitorais de Paulo Portas a Vítor Gonçalves no canal 1 da RTP no mesmo dia 15,
o vice-primeiro-ministro, falando das obrigações de Portugal e da Europa em
matéria de refugiados, distinguia entre os fugidos da guerra e os migrantes por
razões económicas. Tal distinção faz supor que o governante, também candidato a
eleições legislativas com a ideia de participar no governo que delas resulte,
não esqueceu um postulado defendido em tempos, e hoje ainda equacionado por
alguns governos europeus, da definição de políticas restritivas da imigração.
No entanto, é de ter em conta que a situação
daqueles que estão ou estiveram em trânsito e a daqueles que se encontram em
países de acolhimento (agressivo,
difícil ou aceitável), seja por motivos de guerra, seja por motivos
de carência económica, converge em pelo menos dois pontos: a exploração de que
são vítimas da parte de traficantes que almejam o lucro fácil aproveitando-se
da situação desesperada em que muitos se encontram; e no perigo de vida por que
passam ou passaram, muitos deles sucumbidos letalmente ao naufrágio e/ou ao
esvaimento de forças.
Não penso admitir-se o inquérito carregado
cinismo a investigar se o náufrago de navio ou de lancha, bem como o que tenta
passar no eurotúnel para a Grã-Bretanha, é refugiado de guerra e perseguição ou
migrante em razão das insuficientes posses económicas.
Ora, se é preciso debelar as causas e eliminá-las
ou minorá-las, não se pode perder tempo antes de lançar a tábua de socorro a
quem está à beira do abismo psico-físico-moral, sem haveres, sem sustento,
desenraizado da pátria e, tantas vezes, da família, que ficou pelo caminho ou
que teve de abraçar a morte.
***
Na aludida entrevista, o Papa Francisco, que
defende que é preciso ir às causas, entende que esta crise de refugiados em
pleno – estes refugiados, esta
pobre gente que escapa da guerra, que escapa da fome – “é a ponta de um icebergue”, estando debaixo dele a causa. E o
Pontífice explicita (Hoje é o tempo da educação de emergência!):
“E a causa é um sistema socioeconómico mau e injusto, porque dentro dum
sistema económico (dentro do mundo, falando do problema ecológico, da
sociedade socioeconómica, da política) o centro tem de ser sempre a pessoa. E o
sistema económico dominante, hoje em dia, descentrou a pessoa, colocando no
centro o deus dinheiro, que é o ídolo da moda. Ou seja, há estatísticas, não me
recordo bem (isto não é exato e posso equivocar-me), mas 17% da população
mundial detém 80% das riquezas.”.
Ora, é desde já preciso assentar em que infelizmente Francisco não está
enganado nas estatísticas que cita de cor. Aliás, esta economia que mata,
baseada na exploração, é uma forma de guerra. E a guerra, além de outras causas
– e sobretudo hoje – tem como causa significativa a economia, por vezes,
disfarçada de geoestratégia.
Assim, enquanto se acolhem com a maior dignidade possível os refugiados e
os migrantes a jusante, os decisores, nomeadamente os europeus têm de intervir
a montante, oferecendo um contributo válido para a criação de condições de
trabalho e consequente bem-estar nos territórios de origem e toda a oferta
diplomática (e quiçá a militar) para acabar com a guerra nos países donde vêm muitos prófugos. Não vale a
disposição dos países de acolhimento de quererem repatriar forçadamente
refugiados e imigrantes. Há que ter em consideração os traumas sofridos nas
terras donde se evadiram. Por outro lado, se houver um esforço conjunto de
integração e do reagrupamento familiar, sempre que possível, os refugiados
acolhidos e os imigrantes integrados podem constituir uma mais valia para a
natalidade europeia e para a simetria do desenvolvimento do Velho Continente
desgastado pela erosão socioética.
O Papa não deixa de lembrar que a “exploração
das riquezas dos países mais pobres, a médio prazo traz esta consequência: a destes
todos que agora querem vir para a Europa…”. E compara o êxodo para a Europa com
a migração do interior para as grandes cidades, interrogando-se por que motivos
“surgem as favelas nas grandes cidades”. Estas estão superlotadas com “gente
que vem do campo, porque o desflorestaram, porque fizeram monocultivo, não têm
trabalho e vão para as grandes cidades”.
Ao ser-lhe sugerido o paralelismo com África,
Francisco concorda e explica:
“Em África... ou seja, é o mesmo fenómeno. Então, esta gente emigrada que
vem para a Europa – é a mesma coisa – à procura de um sítio. E, claro, para a
Europa neste momento, é uma surpresa, porque até custa a crer que isto esteja a
acontecer, não é? Mas acontece.”.
À provocação da entrevistadora de que o Santo
Padre, quando foi a Estrasburgo, disse que era “necessário atuar sobre as
causas e não apenas sobre os efeitos” e que parece que ninguém o ouviu, estando
agora à vista os efeitos, o entrevistado não nega nem se contradiz. E afirma
peremptório: “Temos de ir às causas”. E detém-se na explanação do seu
pensamento:
“Onde as causas são a fome, há que criar fontes de
trabalho, investimentos. Onde a causa é a guerra, procurar a paz, trabalhar
pela paz. Hoje em dia, o mundo está em guerra contra si mesmo, ou seja, o mundo
está em guerra, como digo, uma guerra em folhetins, aos pedaços, mas também
está em guerra contra a Terra, porque está a destruir a Terra, ou seja, a nossa
casa comum, o ambiente. Os glaciares estão a derreter-se, no Ártico, o urso
branco vai cada vez mais para o norte para poder sobreviver.”
O Papa reitera o problema da fome, a guerra em pedaços e a agressão
continuada à terra mãe.
***
Certamente Aura Miguel tinha presente que a
Europa apoiou a oposição na Ucrânia a um governo que fora eleito e, como os
Estados Unidos, apoiou a revolução na Tunísia, na Líbia, no Egito e na Síria,
de que decorreram as soluções que todos conhecemos, tendo surgido o Estado
Islâmico com o dinamismo suicido-homicida e iconoclasta que está patente aos
olhos do mundo. Por outro lado, os refugiados servem de pretexto para tudo: “uns
constroem muros; outros escolhem os refugiados consoante a sua religião; outros
aproveitam esta situação para fazer discursos populistas” – dizia a jornalista.
E podia ter acrescentado o objetivo de alguns de os aproveitarem para a limpeza
das florestas ou como contraponto à crise demográfica europeia e portuguesa.
Mas não se esqueceu de questionar o pontífice sobre a preocupação pelo homem e
pelo seu destino e, em especial, sobre a responsabilidade da Europa perante esta
“vaga de refugiados”.
Na sua resposta, sem negar a responsabilidade da
Europa, Francisco junta um caso concreto que o chocou:
“Cada um faz uma interpretação da sua cultura. E, por vezes, a
interpretação ideológica, ou das ideias, é mais fácil do que fazer as coisas,
que é a realidade. Mais longe da Europa, há um outro fenómeno que também me
doeu muito: os “rohingya” [grupo étnico muçulmano, provavelmente, com origem na
antiga Birmânia. Marginalizados por razões étnicas e religiosas, foram
apontados pela ONU como uma das minorias mais perseguidas do mundo], que foram
expulsos do seu país e que entram num barco e partem. Chegam a um porto ou a
uma praia, dão-lhes água, dão-lhes de comer e, depois, mandam-nos outra vez
para o mar e não os acolhem.”.
Ademais, trata-se não de tolerar,
mas receber. O Papa especifica que “é mais do que tolerância: é acolhimento” –
acolher as pessoas tal como vêm. E faz o paralelo com o que se passou com a
grande recessão de 1929, em que a Europa necessitou de que outros países
acolhessem os europeus, nomeadamente italianos, espanhóis e portugueses.
Exemplificou-o com as suas origens e com o país donde proveio para o exercício
do ministério Petrino:
“Eu sou filho de emigrantes e pertenço à onda migrante do ano de 1929. Mas
na Argentina, desde o ano de 1884, começaram a chegar italianos, espanhóis...
portugueses, não sei quando chegou a primeira onda portuguesa; vinham sobretudo
destes três países. E quando chegavam lá, alguns tinham dinheiro, outros iam
para o hotel de emigrantes e daí eram enviados para as cidades. Iam trabalhar
ou procurar trabalho.”.
Evoca, depois, as migrações da Segunda Grande Guerra, sobretudo do centro
da Europa:
“[Vieram] muitos polacos, eslovacos, croatas, eslovenos e também da Síria e
do Líbano. E sempre nos demos bem por lá. Na Argentina, não houve xenofobia. E
agora, há migração interna na América, vêm de outros países da América para a
Argentina, apesar de ter diminuído nos últimos anos, por falta de trabalho na
Argentina.”.
E, com base no que se passa com o fenómeno migratório
do México para os Estados Unidos, sugerido pela entrevistadora, Francisco opina
em tom persistentemente coloquial:
“O fenómeno migratório é uma realidade. Mas eu queria abordar o tema, sem
censurar ninguém. Quando há um espaço vazio, a gente procura preenchê-lo. Se um
país não tem filhos, vêm os emigrantes ocupar o lugar. Penso no nível dos
nascimentos de Itália, Portugal e Espanha. Creio que é quase 0%. Então, se não
há filhos, há espaços vazios. Ou seja, o não querer ter filhos, em parte, – e
isto é uma interpretação minha, não sei se está correta – é um pouco o
resultado da cultura do bem-estar, não é? Eu ouvi, dentro da minha própria
família, cá, há uns anos, por parte dos meus primos italianos dizer: ‘Não,
crianças, não; preferimos viajar nas férias, ou comprar uma villa, ou isto ou aquilo’... e os idosos
vão ficando sozinhos.”
Sobre a responsabilidade da Europa, entende que metaforicamente o seu
grande desafio “é voltar a ser a mãe Europa...” e não “avó Europa”, embora
ressalve:
“Perdão, há países da Europa que são
jovens, por exemplo, a Albânia. A Albânia impressionou-me, gente com 40 anos,
45 anos... e a Bósnia-Herzegovina, ou seja, países que se refizeram depois duma
guerra, não é?”
E assumiu que a sua visita àqueles dos países
pretendeu ser “um sinal para a Europa”.
***
O Papa não escamoteia o problema da segurança na
Europa nem outros riscos que a miscigenação de culturas e mesmo dos de
supremacia política e poderio económico. E, assim, às questões colocadas pela
jornalista da Renascença em torno da onda de refugiados – se pode ser positiva
para a Europa, um benefício, uma provocação para um despertar ou para uma mudança
de rumo – Francisco começa por assentir. Porém, adverte:
“É verdade e reconheço que, hoje em dia, as condições de segurança
territorial não são as mesmas de outra época porque, na verdade, temos, a 400
quilómetros da Sicília, uma guerrilha terrorista sumamente cruel, não é? Então,
existe o perigo da infiltração, isso é verdade.”.
Assentindo que também Roma não é imune a isto,
patenteia um problema:
“Podem-se tomar precauções e pôr toda a gente que vem a trabalhar. Mas há
outro problema, é que a Europa atravessa uma crise laboral muito grande. Há um
país, melhor, vou falar de três países, mas que não vou nomear, dos mais
importantes da Europa, em que o desemprego juvenil dos jovens com menos de 25
anos, num país é de 40%, noutro é de 47% e noutro é de 50%. Há a crise laboral,
o jovem não encontra trabalho. Ou seja, misturam-se muitas coisas. Não podemos
ser simplistas. Evidentemente, se chega um refugiado, com as medidas de
segurança de todo o tipo, há que recebê-lo, porque é um mandamento da Bíblia.
Moisés disse ao seu povo: Recebei o
forasteiro porque não esqueçais que vós fostes forasteiros no Egito.”
É certo que o ideal era que eles não tivessem
fugido, que ficassem nas suas terras. Porém, as coisas são como são. E o Papa
Francisco pediu: “que cada
paróquia, cada instituto religioso, cada mosteiro, acolha uma família” – “uma
família, não uma pessoa”, pois, “uma família dá mais segurança de contenção, um
pouco para evitar que haja infiltrações de outro tipo”. E explicou-se:
“Quando digo que uma paróquia deve acolher uma família, não digo que tenham
de ir viver para a casa do padre, para a casa paroquial, mas que toda a
comunidade paroquial veja se há um lugar, um canto num colégio para aí se fazer
um pequeno apartamento ou, na pior das hipóteses, que arrendem um modesto
apartamento para essa família; mas que tenham um teto, que sejam acolhidos e
que se integrem na comunidade. Já tive muitas reações, muitas, muitas. Há
conventos que estão quase vazios.”
Quando Aura Miguel confrontou o Santo Padre com
apelo congénere que já fizera há dois anos aos conventos e o questionou sobre
os resultados, ele respondeu:
“Só quatro. Um deles, dos jesuítas, muito bem, os jesuítas! Mas o assunto é
sério, porque aí também há a tentação do deus dinheiro. Algumas congregações
dizem: ‘Não, agora que o convento está vazio, vamos fazer um hotel e podemos
receber pessoas e, com isso, sustentamo-nos ou ganhamos dinheiro’. Pois bem, se
quereis fazer isso, pagai os impostos! Um colégio religioso, por ser religioso
está isento de impostos, mas se funciona como hotel, então, que pague os
impostos como qualquer vizinho do lado. Senão, o negócio não é limpo.”.
Quanto às duas paróquias do Vaticano que vão
acolher duas famílias, o Papa adiantou que “já estavam localizadas e as duas paróquias do Vaticano encarregaram-se de
as procurar”; e que já estão
identificadas. Fora o cardeal Comastri, o vigário-geral papal para o
Vaticano, juntamente com o encarregado da Esmolaria Apostólica, monsenhor
Konrad Krajewski – o que trabalha com os sem-abrigo e que foi quem fez os
duches debaixo da colunata, o serviço de barbearia e que leva os que vivem na
rua a ver os museus do Vaticano e a Capela Sistina.
Também a jornalista da Renascença disse ao Pontífice que a estação de rádio que ela representa aderiu em Portugal a uma
iniciativa que reúne instituições cristãs e de outras religiões, para acolher e
movimentar-se a favor dos refugiados. A seu pedido, o Papa dirigiu palavras de
regozijo, recordou a doutrina bíblica e deixou um conselho.
O regozijo:
“Felicito-vos e agradeço-vos pelo que estão a fazer”.
A doutrina acompanhado da reiteração
do regozijo:
“No dia do Juízo Final, já sabemos sobre o que vamos ser julgados, está
escrito no capítulo 25 de São Mateus. Quando Jesus vos disser ‘Estive com fome,
deste-me de comer?’, vocês vão dizer ‘Sim’. ‘E quando estive sem refúgio, como
refugiado, ajudaste-me?’, “Sim’. Pois, felicito-vos: vão passar no exame!”.
E o conselho sobre o trabalho com
jovens desocupados:
“Creio que aqui é urgente, sobretudo para as congregações religiosas que
têm como carisma a educação, mas também os leigos, os educadores leigos, que
inventem cursos, pequenas escolas de emergência. Então, para um jovem que está
desocupado, se estudar, durante seis meses, para ser cozinheiro ou canalizador,
para fazer pequenas reparações – há sempre um teto para arranjar – ou para
pintor, com esse ofício, terá mais possibilidade de encontrar um trabalho,
ainda que parcial ou temporário. Fazer o que nós chamamos de ‘biscate’, um trabalho
ocasional e com isso não está totalmente desocupado. Mas hoje é o tempo da
educação de emergência.”.
Para sustentar pedagogicamente a sua recomendação deu o exemplo de um
grande educador da juventude:
“Foi o que fez Dom Bosco. Quando viu a quantidade de crianças que havia na
rua, disse ‘tem de haver educação’, mas não mandou as crianças para a escola
média ou secundária, sim aprender ofícios. Então, preparou carpinteiros,
canalizadores, que os ensinavam a trabalhar e assim já tinham com que ganhar o
pão.”.
***
Não sei se esta receita pega no sistema português onde, a coberto da
exploração do trabalho infanto-adolescente, se foge da educação pelo trabalho
como o diabo da cruz.
O Papa sublinha que há países na Europa que mostraram a necessária
sensibilidade para o drama dos refugiados e dos migrantes e formulou o seu
agradecimento “aos países da Europa que tomaram consciência disto”. Todavia, é
vergonhoso o que se passa: muros que se levantam; mortes no mar e na estrada;
força armada a impedir a entrada na Europa por via marítima e terrestre;
suspensão dos acordos de Schengen; adiamento das cimeiras europeias sobre a
distribuição dos refugiados… E as pessoas prosseguem na sua caminhada em barda
ao longo e por cima dos caminhos de ferro ou a tentar romper o arame farpado. Mas
a especulação e o tráfico, a corrupção e a exploração continuam. Até quando?
É caso para rezar: Dai, Senhor, a esta gente do poder sentimentos cristãos!
2015.09.15 – Louro de
Carvalho
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