terça-feira, 15 de setembro de 2015

Agudização do drama dos refugiados e dos migrantes – A visão papal

Na entrevista que o Papa Francisco concedeu em exclusivo à jornalista da Rádio Renascença Aura Miguel e que foi para o ar no dia 15 de setembro, um dos temas abordados foi o da crise por que passa o mundo e, em especial, a Europa por causa do surto contínuo de refugiados e de migrantes.
A este respeito, na entrevista com fins eleitorais de Paulo Portas a Vítor Gonçalves no canal 1 da RTP no mesmo dia 15, o vice-primeiro-ministro, falando das obrigações de Portugal e da Europa em matéria de refugiados, distinguia entre os fugidos da guerra e os migrantes por razões económicas. Tal distinção faz supor que o governante, também candidato a eleições legislativas com a ideia de participar no governo que delas resulte, não esqueceu um postulado defendido em tempos, e hoje ainda equacionado por alguns governos europeus, da definição de políticas restritivas da imigração.
No entanto, é de ter em conta que a situação daqueles que estão ou estiveram em trânsito e a daqueles que se encontram em países de acolhimento (agressivo, difícil ou aceitável), seja por motivos de guerra, seja por motivos de carência económica, converge em pelo menos dois pontos: a exploração de que são vítimas da parte de traficantes que almejam o lucro fácil aproveitando-se da situação desesperada em que muitos se encontram; e no perigo de vida por que passam ou passaram, muitos deles sucumbidos letalmente ao naufrágio e/ou ao esvaimento de forças.
Não penso admitir-se o inquérito carregado cinismo a investigar se o náufrago de navio ou de lancha, bem como o que tenta passar no eurotúnel para a Grã-Bretanha, é refugiado de guerra e perseguição ou migrante em razão das insuficientes posses económicas.
Ora, se é preciso debelar as causas e eliminá-las ou minorá-las, não se pode perder tempo antes de lançar a tábua de socorro a quem está à beira do abismo psico-físico-moral, sem haveres, sem sustento, desenraizado da pátria e, tantas vezes, da família, que ficou pelo caminho ou que teve de abraçar a morte.
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Na aludida entrevista, o Papa Francisco, que defende que é preciso ir às causas, entende que esta crise de refugiados em pleno – estes refugiados, esta pobre gente que escapa da guerra, que escapa da fome – “é a ponta de um icebergue”, estando debaixo dele a causa. E o Pontífice explicita (Hoje é o tempo da educação de emergência!):
“E a causa é um sistema socioeconómico mau e injusto, porque dentro dum sistema económico (dentro do mundo, falando do problema ecológico, da sociedade socioeconómica, da política) o centro tem de ser sempre a pessoa. E o sistema económico dominante, hoje em dia, descentrou a pessoa, colocando no centro o deus dinheiro, que é o ídolo da moda. Ou seja, há estatísticas, não me recordo bem (isto não é exato e posso equivocar-me), mas 17% da população mundial detém 80% das riquezas.”.

Ora, é desde já preciso assentar em que infelizmente Francisco não está enganado nas estatísticas que cita de cor. Aliás, esta economia que mata, baseada na exploração, é uma forma de guerra. E a guerra, além de outras causas – e sobretudo hoje – tem como causa significativa a economia, por vezes, disfarçada de geoestratégia.
Assim, enquanto se acolhem com a maior dignidade possível os refugiados e os migrantes a jusante, os decisores, nomeadamente os europeus têm de intervir a montante, oferecendo um contributo válido para a criação de condições de trabalho e consequente bem-estar nos territórios de origem e toda a oferta diplomática (e quiçá a militar) para acabar com a guerra nos países donde vêm muitos prófugos. Não vale a disposição dos países de acolhimento de quererem repatriar forçadamente refugiados e imigrantes. Há que ter em consideração os traumas sofridos nas terras donde se evadiram. Por outro lado, se houver um esforço conjunto de integração e do reagrupamento familiar, sempre que possível, os refugiados acolhidos e os imigrantes integrados podem constituir uma mais valia para a natalidade europeia e para a simetria do desenvolvimento do Velho Continente desgastado pela erosão socioética.
O Papa não deixa de lembrar que a “exploração das riquezas dos países mais pobres, a médio prazo traz esta consequência: a destes todos que agora querem vir para a Europa…”. E compara o êxodo para a Europa com a migração do interior para as grandes cidades, interrogando-se por que motivos “surgem as favelas nas grandes cidades”. Estas estão superlotadas com “gente que vem do campo, porque o desflorestaram, porque fizeram monocultivo, não têm trabalho e vão para as grandes cidades”.
Ao ser-lhe sugerido o paralelismo com África, Francisco concorda e explica:
“Em África... ou seja, é o mesmo fenómeno. Então, esta gente emigrada que vem para a Europa – é a mesma coisa – à procura de um sítio. E, claro, para a Europa neste momento, é uma surpresa, porque até custa a crer que isto esteja a acontecer, não é? Mas acontece.”.

À provocação da entrevistadora de que o Santo Padre, quando foi a Estrasburgo, disse que era “necessário atuar sobre as causas e não apenas sobre os efeitos” e que parece que ninguém o ouviu, estando agora à vista os efeitos, o entrevistado não nega nem se contradiz. E afirma peremptório: “Temos de ir às causas”. E detém-se na explanação do seu pensamento:
Onde as causas são a fome, há que criar fontes de trabalho, investimentos. Onde a causa é a guerra, procurar a paz, trabalhar pela paz. Hoje em dia, o mundo está em guerra contra si mesmo, ou seja, o mundo está em guerra, como digo, uma guerra em folhetins, aos pedaços, mas também está em guerra contra a Terra, porque está a destruir a Terra, ou seja, a nossa casa comum, o ambiente. Os glaciares estão a derreter-se, no Ártico, o urso branco vai cada vez mais para o norte para poder sobreviver.”

O Papa reitera o problema da fome, a guerra em pedaços e a agressão continuada à terra mãe.
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Certamente Aura Miguel tinha presente que a Europa apoiou a oposição na Ucrânia a um governo que fora eleito e, como os Estados Unidos, apoiou a revolução na Tunísia, na Líbia, no Egito e na Síria, de que decorreram as soluções que todos conhecemos, tendo surgido o Estado Islâmico com o dinamismo suicido-homicida e iconoclasta que está patente aos olhos do mundo. Por outro lado, os refugiados servem de pretexto para tudo: “uns constroem muros; outros escolhem os refugiados consoante a sua religião; outros aproveitam esta situação para fazer discursos populistas” – dizia a jornalista. E podia ter acrescentado o objetivo de alguns de os aproveitarem para a limpeza das florestas ou como contraponto à crise demográfica europeia e portuguesa. Mas não se esqueceu de questionar o pontífice sobre a preocupação pelo homem e pelo seu destino e, em especial, sobre a responsabilidade da Europa perante esta “vaga de refugiados”.
Na sua resposta, sem negar a responsabilidade da Europa, Francisco junta um caso concreto que o chocou:
“Cada um faz uma interpretação da sua cultura. E, por vezes, a interpretação ideológica, ou das ideias, é mais fácil do que fazer as coisas, que é a realidade. Mais longe da Europa, há um outro fenómeno que também me doeu muito: os “rohingya” [grupo étnico muçulmano, provavelmente, com origem na antiga Birmânia. Marginalizados por razões étnicas e religiosas, foram apontados pela ONU como uma das minorias mais perseguidas do mundo], que foram expulsos do seu país e que entram num barco e partem. Chegam a um porto ou a uma praia, dão-lhes água, dão-lhes de comer e, depois, mandam-nos outra vez para o mar e não os acolhem.”.

Ademais, trata-se não de tolerar, mas receber. O Papa especifica que “é mais do que tolerância: é acolhimento” – acolher as pessoas tal como vêm. E faz o paralelo com o que se passou com a grande recessão de 1929, em que a Europa necessitou de que outros países acolhessem os europeus, nomeadamente italianos, espanhóis e portugueses. Exemplificou-o com as suas origens e com o país donde proveio para o exercício do ministério Petrino:
“Eu sou filho de emigrantes e pertenço à onda migrante do ano de 1929. Mas na Argentina, desde o ano de 1884, começaram a chegar italianos, espanhóis... portugueses, não sei quando chegou a primeira onda portuguesa; vinham sobretudo destes três países. E quando chegavam lá, alguns tinham dinheiro, outros iam para o hotel de emigrantes e daí eram enviados para as cidades. Iam trabalhar ou procurar trabalho.”.

Evoca, depois, as migrações da Segunda Grande Guerra, sobretudo do centro da Europa:
“[Vieram] muitos polacos, eslovacos, croatas, eslovenos e também da Síria e do Líbano. E sempre nos demos bem por lá. Na Argentina, não houve xenofobia. E agora, há migração interna na América, vêm de outros países da América para a Argentina, apesar de ter diminuído nos últimos anos, por falta de trabalho na Argentina.”.

E, com base no que se passa com o fenómeno migratório do México para os Estados Unidos, sugerido pela entrevistadora, Francisco opina em tom persistentemente coloquial:
“O fenómeno migratório é uma realidade. Mas eu queria abordar o tema, sem censurar ninguém. Quando há um espaço vazio, a gente procura preenchê-lo. Se um país não tem filhos, vêm os emigrantes ocupar o lugar. Penso no nível dos nascimentos de Itália, Portugal e Espanha. Creio que é quase 0%. Então, se não há filhos, há espaços vazios. Ou seja, o não querer ter filhos, em parte, – e isto é uma interpretação minha, não sei se está correta – é um pouco o resultado da cultura do bem-estar, não é? Eu ouvi, dentro da minha própria família, cá, há uns anos, por parte dos meus primos italianos dizer: ‘Não, crianças, não; preferimos viajar nas férias, ou comprar uma villa, ou isto ou aquilo’... e os idosos vão ficando sozinhos.”

Sobre a responsabilidade da Europa, entende que metaforicamente o seu grande desafio “é voltar a ser a mãe Europa...” e não “avó Europa”, embora ressalve:
 “Perdão, há países da Europa que são jovens, por exemplo, a Albânia. A Albânia impressionou-me, gente com 40 anos, 45 anos... e a Bósnia-Herzegovina, ou seja, países que se refizeram depois duma guerra, não é?”

E assumiu que a sua visita àqueles dos países pretendeu ser “um sinal para a Europa”.
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O Papa não escamoteia o problema da segurança na Europa nem outros riscos que a miscigenação de culturas e mesmo dos de supremacia política e poderio económico. E, assim, às questões colocadas pela jornalista da Renascença em torno da onda de refugiados – se pode ser positiva para a Europa, um benefício, uma provocação para um despertar ou para uma mudança de rumo – Francisco começa por assentir. Porém, adverte:
“É verdade e reconheço que, hoje em dia, as condições de segurança territorial não são as mesmas de outra época porque, na verdade, temos, a 400 quilómetros da Sicília, uma guerrilha terrorista sumamente cruel, não é? Então, existe o perigo da infiltração, isso é verdade.”.

Assentindo que também Roma não é imune a isto, patenteia um problema:
“Podem-se tomar precauções e pôr toda a gente que vem a trabalhar. Mas há outro problema, é que a Europa atravessa uma crise laboral muito grande. Há um país, melhor, vou falar de três países, mas que não vou nomear, dos mais importantes da Europa, em que o desemprego juvenil dos jovens com menos de 25 anos, num país é de 40%, noutro é de 47% e noutro é de 50%. Há a crise laboral, o jovem não encontra trabalho. Ou seja, misturam-se muitas coisas. Não podemos ser simplistas. Evidentemente, se chega um refugiado, com as medidas de segurança de todo o tipo, há que recebê-lo, porque é um mandamento da Bíblia. Moisés disse ao seu povo: Recebei o forasteiro porque não esqueçais que vós fostes forasteiros no Egito.”

É certo que o ideal era que eles não tivessem fugido, que ficassem nas suas terras. Porém, as coisas são como são. E o Papa Francisco pediu: “que cada paróquia, cada instituto religioso, cada mosteiro, acolha uma família” – “uma família, não uma pessoa”, pois, “uma família dá mais segurança de contenção, um pouco para evitar que haja infiltrações de outro tipo”. E explicou-se:
“Quando digo que uma paróquia deve acolher uma família, não digo que tenham de ir viver para a casa do padre, para a casa paroquial, mas que toda a comunidade paroquial veja se há um lugar, um canto num colégio para aí se fazer um pequeno apartamento ou, na pior das hipóteses, que arrendem um modesto apartamento para essa família; mas que tenham um teto, que sejam acolhidos e que se integrem na comunidade. Já tive muitas reações, muitas, muitas. Há conventos que estão quase vazios.”

Quando Aura Miguel confrontou o Santo Padre com apelo congénere que já fizera há dois anos aos conventos e o questionou sobre os resultados, ele respondeu:
“Só quatro. Um deles, dos jesuítas, muito bem, os jesuítas! Mas o assunto é sério, porque aí também há a tentação do deus dinheiro. Algumas congregações dizem: ‘Não, agora que o convento está vazio, vamos fazer um hotel e podemos receber pessoas e, com isso, sustentamo-nos ou ganhamos dinheiro’. Pois bem, se quereis fazer isso, pagai os impostos! Um colégio religioso, por ser religioso está isento de impostos, mas se funciona como hotel, então, que pague os impostos como qualquer vizinho do lado. Senão, o negócio não é limpo.”.

Quanto às duas paróquias do Vaticano que vão acolher duas famílias, o Papa adiantou que “já estavam localizadas e as duas paróquias do Vaticano encarregaram-se de as procurar”; e que já estão identificadas. Fora o cardeal Comastri, o vigário-geral papal para o Vaticano, juntamente com o encarregado da Esmolaria Apostólica, monsenhor Konrad Krajewski – o que trabalha com os sem-abrigo e que foi quem fez os duches debaixo da colunata, o serviço de barbearia e que leva os que vivem na rua a ver os museus do Vaticano e a Capela Sistina.
Também a jornalista da Renascença disse ao Pontífice que a estação de rádio que ela representa aderiu em Portugal a uma iniciativa que reúne instituições cristãs e de outras religiões, para acolher e movimentar-se a favor dos refugiados. A seu pedido, o Papa dirigiu palavras de regozijo, recordou a doutrina bíblica e deixou um conselho.
O regozijo:
“Felicito-vos e agradeço-vos pelo que estão a fazer”.
 A doutrina acompanhado da reiteração do regozijo:
“No dia do Juízo Final, já sabemos sobre o que vamos ser julgados, está escrito no capítulo 25 de São Mateus. Quando Jesus vos disser ‘Estive com fome, deste-me de comer?’, vocês vão dizer ‘Sim’. ‘E quando estive sem refúgio, como refugiado, ajudaste-me?’, “Sim’. Pois, felicito-vos: vão passar no exame!”.

 E o conselho sobre o trabalho com jovens desocupados:
“Creio que aqui é urgente, sobretudo para as congregações religiosas que têm como carisma a educação, mas também os leigos, os educadores leigos, que inventem cursos, pequenas escolas de emergência. Então, para um jovem que está desocupado, se estudar, durante seis meses, para ser cozinheiro ou canalizador, para fazer pequenas reparações – há sempre um teto para arranjar – ou para pintor, com esse ofício, terá mais possibilidade de encontrar um trabalho, ainda que parcial ou temporário. Fazer o que nós chamamos de ‘biscate’, um trabalho ocasional e com isso não está totalmente desocupado. Mas hoje é o tempo da educação de emergência.”.

Para sustentar pedagogicamente a sua recomendação deu o exemplo de um grande educador da juventude:
“Foi o que fez Dom Bosco. Quando viu a quantidade de crianças que havia na rua, disse ‘tem de haver educação’, mas não mandou as crianças para a escola média ou secundária, sim aprender ofícios. Então, preparou carpinteiros, canalizadores, que os ensinavam a trabalhar e assim já tinham com que ganhar o pão.”.
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Não sei se esta receita pega no sistema português onde, a coberto da exploração do trabalho infanto-adolescente, se foge da educação pelo trabalho como o diabo da cruz.
O Papa sublinha que há países na Europa que mostraram a necessária sensibilidade para o drama dos refugiados e dos migrantes e formulou o seu agradecimento “aos países da Europa que tomaram consciência disto”. Todavia, é vergonhoso o que se passa: muros que se levantam; mortes no mar e na estrada; força armada a impedir a entrada na Europa por via marítima e terrestre; suspensão dos acordos de Schengen; adiamento das cimeiras europeias sobre a distribuição dos refugiados… E as pessoas prosseguem na sua caminhada em barda ao longo e por cima dos caminhos de ferro ou a tentar romper o arame farpado. Mas a especulação e o tráfico, a corrupção e a exploração continuam. Até quando?
É caso para rezar: Dai, Senhor, a esta gente do poder sentimentos cristãos!

2015.09.15 – Louro de Carvalho

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