domingo, 18 de junho de 2023

Aprovação de estatutos leva as Ordens a acusar governo de ingerência

 

O Comunicado do Conselho de Ministros de 15 de junho de 2023 refere que o Conselho aprovou, naquele dia, a proposta de lei, a submeter à Assembleia da República (AR), que adapta os estatutos de 12 ordens profissionais ao previsto no regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais.

No quadro da reforma das ordens profissionais, o diploma adapta os estatutos da Ordem dos Médicos Dentistas, da Ordem dos Médicos, da Ordem dos Engenheiros, da Ordem dos Notários, da Ordem dos Enfermeiros, da Ordem dos Economistas, da Ordem dos Arquitetos, da Ordem dos Engenheiros Técnicos, da Ordem dos Farmacêuticos, da Ordem dos Advogados, da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas e da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução.

O objetivo é, segundo o governo, eliminar restrições de acesso às profissões e melhorar as condições de concorrência, processo iniciado com a entrada em vigor da Lei n.º 12/2023, de 28 de março, tendo sido auscultadas, para o efeito, todas as entidades relevantes para o processo.

Por outro lado, o Conselho de Ministros apreciou, em leitura final, a proposta, já aprovada em maio, relativa às restantes oito ordens profissionais (Ordem dos Médicos Veterinários, Ordem dos Biólogos, Ordem dos Contabilistas Certificados, Ordem dos Psicólogos Portugueses, Ordem dos Nutricionistas, Ordem dos Despachantes Oficiais, Ordem dos Assistentes Sociais e Ordem dos Fisioterapeutas), tendo determinado a agregação, numa única Proposta de Lei, das alterações aos estatutos das 20 ordens profissionais existentes.

Esta medida do governo vem na sequência da vigência da Lei n.º 12/2023, de 28 de março, que introduz alterações significativas à Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais.

Já essa alteração legislativa mereceu grande contestação das ordens profissionais e o próprio Presidente da República (PR) suscitou a fiscalização preventiva da constitucionalidade do decreto da AR, apresentando alguns argumentos (e podendo ter apresentado outros, mas sem o fazer) que o Tribunal Constitucional (TC) não acolheu. Já tive ocasião de o referir e de o especificar.

É, pois, natural que a lei que adapta os estatutos de cada ordem profissional à nova lei-quadro seja passível de contestação de igual volume, cabendo à AR dar ou não seguimento à proposta do governo ou acolher, no todo ou em parte, a contestação. Porém, se acolher as vozes da contestação, a não ser em pormenores pouco relevantes, incorre em situação de incongruência com a lei que, em tempo, aprovou, ficando diminuída a autoridade do Estado.     

Ao longo das últimas semanas, vozes representativas das associações públicas profissionais criticaram o que têm por ingerência e ataque violento do governo às ordens profissionais.

Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros, levantando dúvidas ao que diz ser “uma espécie de PIDE” dentro destas associações, diz que está em causa, sobretudo “uma questão muito ideológica” do governo, que “não gosta das ordens profissionais”. Entendendo que “nenhum governo gosta”, sustenta que “este, em particular, mostra muito mais tiques ditatoriais, que se notam mais, depois da maioria absoluta”.

Diz a bastonária que as alterações surgem na sequência de um alerta da Comissão Europeia relativamente ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). A coberto desse alerta, o governo introduziu uma série de alterações que lhe permitem controlar as ordens, nomeadamente o órgão de supervisão, que será uma espécie de PIDE.

Segundo Rita Cavaco, se esse órgão ficar com as competências que estão a definir nos estatutos, terá mais poderes do que o conselho diretivo. São pessoas externas, que têm de ser pagas com o dinheiro dos profissionais e que não percebem nada, do ponto de vista técnico, científico e deontológico, das regras que se aplicam à profissão, mas que estarão ali “a fazer de polícias políticos”. No caso da Ordem dos Enfermeiros, a convicção foi de que “as negociações com o governo não iam dar em nada” ou podiam correr muito bem, mas, como o Partido Socialista (PS) tem maioria absoluta, sempre aprovaria o que entendesse.

O comunicado de 15 de junho frisa que o diploma visa “eliminar restrições de acesso às profissões e melhorar as condições de concorrência, processo iniciado com a entrada em vigor da lei”, publicada em março, que altera o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais e o regime jurídico da constituição e funcionamento das sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais. E salienta- que foram auscultadas “todas as entidades relevantes para o processo”. Porém, as ordens não se reveem na lei e esquecem que as audições não são vinculativas

Para lá da Ordem dos Enfermeiros, também as dos Médicos, dos Contabilistas Certificados e dos Advogados contestaram as alterações aos estatutos propostas pelo governo.

Os novos estatutos foram aprovados um dia depois de ser conhecida a demissão do coordenador da Comissão para a Reforma da Saúde Pública, Mário Jorge Neves, em desacordo quanto aos novos estatutos da Ordem dos Médicos. Na carta de demissão, enviada a 13 de junho, à secretária de Estado da Promoção da Saúde, o médico demissionário considerou que os novos estatutos propostos pelo governo são uma “violenta e escandalosa tentativa de liquidação de elementares competências legais da Ordem dos Médicos e de ingerência política e governativa na autonomia e independência técnico-científica da profissão médica”.

Para o Ministério da Saúde, a proposta legislativa não altera o modelo de formação médica, não modifica o papel central do Serviço Nacional de Saúde (SNS), nem a especificidade da intervenção dos médicos e da sua ordem profissional. Já o bastonário da Ordem dos Médicos (OM), Carlos Cortes, disse, anteriormente, que a Ordem “precisa de ser uma instituição autónoma e independente do poder político”, para cumprir, na plenitude, a sua missão de “garantir a segurança dos utentes e oferecer os melhores cuidados de saúde”.

Uma das vozes que mais se fez ouvir, antes da aprovação do diploma, foi a de Fernanda de Almeida Pinheiro, bastonária da Ordem dos Advogados (OA), aduzindo que as alterações propostas pelo governo não salvaguardam o sigilo profissional, o regime de conflito de interesses e outros princípios éticos e deontológicos: “O governo ultrapassou a linha vermelha.”

A 15 de junho, a OA criticou a iniciativa de alterar o regime das associações públicas profissionais, considerando-a um “gravíssimo golpe aos direitos, liberdades e garantias” de cidadãos e empresas e de empresas e “um inqualificável ataque às ordens profissionais”.

A OA diz que o diploma “respaldou as subsequentes propostas de alteração aos Estatutos das várias associações públicas profissionais, incluindo, naturalmente, o Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA)”, tendo sido acompanhada de proposta de alteração à Lei dos Atos Próprios dos Advogados e dos Solicitadores ou Lei dos Atos Próprios. E considera que a proposta do governo “parte de falsas premissas, assentes em factos falsos ou incorretos e numa enorme mistificação, em torno de uma suposta necessidade de maior concorrência no que à advocacia diz respeito, olvidando o rácio de advogados per capita no nosso país”.

Para a OA, o diploma “abre a porta à prestação de serviços por profissionais não qualificados e à inerente perda de qualidade desses serviços”; “não garante, de forma alguma, o cumprimento do sigilo profissional e o regime relativo ao conflito de interesses, nem outros princípios ético-deontológicos adstritos à profissão”; “privatiza a Justiça”, ao permitir a negociação e cobrança de créditos por empresas constituídas para o efeito; “promove a concorrência desleal”; permite o controlo externo da OA por órgãos compostos por não associados, desconhecedores da prática da advocacia; e “encerra um ataque grosseiro” à liberdade e independência da advocacia e da OA.

A bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC), Paula Franco, acusou o governo de querer acabar com a profissão, ao propor que qualquer cidadão possa submeter declarações fiscais, estando, por isso, a preparar formas de luta. “[...] O governo quer destruir uma profissão que ajudou o país e as empresas a ultrapassar todas as dificuldades e desafios”, afirmou a bastonária em comunicado enviado aos membros da ordem.

Segundo a OCC, está em causa a proposta de alteração do estatuto da profissão, que elimina as suas competências exclusivas. A ser aprovada, a proposta permite que qualquer pessoa possa submeter as declarações fiscais, deixando de ser necessária a assinatura de um contabilista certificado nas demonstrações financeiras e declarações fiscais “que possuam ou que devam possuir contabilidade organizada”.

Paula Franco avisou, antecipadamente que, sem os contabilistas certificados, haverá mais fraude e evasão fiscal, pedindo à classe que se una para demonstrar a sua força e valor e para exigir respeito. Referiu que, no processo de revisão do estatuto, discutiu e acordou com a Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, que tem a tutela do setor, uma proposta que reforçava o interesse público da profissão e os direitos dos contabilistas certificados. Porém, a proposta do governo não reflete a discussão com a Ordem e, “de forma desleal e desonesta”, acaba com as competências exclusivas destes profissionais. Ora, a OCC não aceita a extinção da profissão e os danos que o governo quer infligir ao país. Assim, em resposta à comunicação, informaria o governo da não aceitação desta proposta de lei. Prometia isso antes de 15 de junho.

Paula Franco avisou também que, se o governo aprovasse, em Conselho de Ministros, a proposta em cima da mesa, convocaria todos os contabilistas certificados para as “iniciativas e formas de luta necessárias à defesa da profissão e do interesse público”, de modo que a mesma não receba ‘luz verde’ da AR. “O momento é o mais grave e difícil da história das nossas vidas profissionais. É hora de mostrar a nossa força e poder”, considerou.

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Belas formas de mostrar a vertente corporativista das ordens, não se contentando com os atos estritamente exclusivos da profissão e não se sujeitando à concorrência em atos comuns a outras profissões! Por outro lado, as ordens pretendem coartar a atividade dos cidadãos.

Ora, segundo o Portal do Governo, os principais objetivos da reforma das ordens profissionais são: menos restrições no acesso às profissões, eliminando esperas e custos desnecessários e desadequados, sobretudo para os jovens que pretendem aceder às profissões; mais igualdade, garantindo maior justiça e combatendo a discriminação socioeconómica no acesso das novas gerações às profissões reguladas por ordens profissionais; menos precariedade, evitando que o estágio das ordens repita a formação das universidades, com prejuízos para os jovens profissionais, com adiamento injustificado da sua entrada no mercado de trabalho e com o aumento significativo dos custos da sua formação; mais transparência, pelo reforço do trabalho de interesse público das ordens profissionais e de garantia da qualidade dos serviços prestados, através da criação do provedor de beneficiários dos serviços; mais independência, pelo aumento da isenção e da autonomia da função regulatória das ordens profissionais, através da integração de personalidades de reconhecido mérito e de fora da profissão, sobretudo quando os seus órgãos exercem funções disciplinares ou avaliam os jovens profissionais no acesso à profissão; e o cumprimento das recomendações nacionais e internacionais.

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É importante que o Estado exerça um poder moderador contra alguns tiques corporativistas de entidades cuja existência quase não se justifica, principalmente quando os profissionais, maioritariamente, fazem trabalho dependente de uma determinada entidade e da sua organização e da sua hierarquia. Aí, era preferível um sindicato para defesa dos interesses de classe.

2023.06.18 – Louro de Carvalho

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