sexta-feira, 2 de junho de 2023

Nem todos os rios vão dar ao mar

 

A maior parte dos rios desemboca no mar ou no oceano. Porém, o estudo da hidrografia da Terra mostra que nem todos os rios seguem para o mar. Alguns abastecem lagos, lençóis freáticos e outros rios e, por isso, não chegam ao mar. Em contrapartida, a maioria dos rios do planeta tem como destino o mar e o oceano.

O mar é uma longa extensão de água salgada conectada, ou não, com um oceano. Em termos técnicos, dizemos que o mar é como um grande lago salino que pode não ter saída natural. Há diversos mares famosos e conhecidos, como o Mar Negro, o Mar Cáspio, o Mar Morto e o Mar de Aral. E há mares que ligam com o oceano, como, por exemplo, o Mar dos Sargaços, o Mar do Norte (estes são parte de oceano), o Mar Mediterrâneo (com vários mares interiores, como o Mar Adriático, o Mar Egeu ou o Mar Jónico). A água do mar é formada, principalmente, pelos cursos de água dos rios, os quais, tal como o mar, contam com rochas de vários períodos geológicos.

O mar recebe cursos de água da maioria dos rios que nele desemboca e essa água, no mar ou no rio, nas imediações da foz, fica com todo o sal em extensão.

Curiosamente, há um rio, na Terra, que é endorreico, ou seja, não corre nem para o mar, nem para outro rio, nem para lagos e, muito menos, para lençóis freáticos. O rio Cubango ou Okavango é o único do planeta que desagua num deserto, o Deserto da Namíbia.

***

O Delta do Okavango, situado na África Austral, é o maior delta interior do planeta, formado onde o rio encontra uma placa tectónica, no deserto do Calaári, no território da Botsuana. Toda a água que atinge o delta é evaporada e transpira, não chegando a mar ou a oceano. Em cada ano, aproximadamente 11 quilómetros cúbicos de água passam na região. Parte do rio chega ao lago Ngami. É a Reserva de Moremi, um parque nacional situado na parte oriental do Delta, que ajudou o Delta do Cubango a afirmar-se como uma das Sete Maravilhas de África.

O Delta do Okavango foi incluído na lista de património mundial da UNESCO por “ser um dos poucos deltas interiores do mundo, com um sistema aquático quase intacto”, constituindo “um excecional exemplo de interação entre processos climáticos, hidrológicos e biológicos”.

Outrora, a área integrava o lago Macadicadi, que secou, por completo, durante o Período Oloceno. Além deste delta interno, há mais dois deltas internos similares geograficamente, em África: o Sudd do rio Nilo e o delta interior do Níger, no Mali.

O rio Okavango nasce nas Boas Águas, serra do Moco, município de Chicala-Choloanga, na província do Huambo, no Planalto Central de Angola. Corre para sudeste, atravessa a faixa de Caprivi, na Namíbia (faz fronteira entre Angola e a Namíbia), e desagua no Delta do Okavango, uma formação da bacia endorreica, no deserto do Calaári, no norte do Botsuana. O Delta cobre uma superfície entre 15 000 km² e 22 000 km², durante as cheias, e é de grande interesse ecoturístico.

No Delta do Okavango, existe a única população de leões que caçam dentro de água, a qual, durante as enchentes, chega a cobrir o 70% da região pantanosa.

O Delta do Okavango – muito plano, com menos de 2 metros de variação na sua profundidade – é produzido por inundações sazonais. A água espalha-se pela área de 250km x 150km no delta, em cerca de quatro meses (março-junho). O rio drena a chuva de verão (janeiro-fevereiro) dos planaltos de Angola. A média de chuvas anuais é de 450mm, ocorrendo a maioria entre dezembro e março, na forma de tempestades vespertinas. De dezembro a fevereiro são os meses mais quentes, com temperaturas que chegam a 40 graus centígrados (40°C), noites quentes e níveis de humidade que flutuam entre 50% e 80%. De março a maio a temperatura torna-se mais confortável com o máximo de 30 °C, durante o dia, e frio leve a moderado, à noite. O período mais seco vai de setembro a novembro. Em outubro, as temperaturas passam facilmente os 40 °C, mas começam a cair após o meio-dia, com tempestades rápidas, com certa frequência.

A alta temperatura do Delta causa rápida evaporação e transpiração, resultando um ciclo de aumento e de queda do nível de água que não era completamente entendido até ao início do século XX. A inundação atinge o pico entre junho e agosto, nos meses de inverno seco do Botsuana, quando o delta aumenta três vezes em tamanho permanente, atraindo animais localizados a quilómetros dali e criando uma das maiores concentrações de vida selvagem da  África.

A cada ano, cerca de 11 quilómetros cúbicos (11 biliões de litros) de água fluem pelo Delta. Aproximadamente 60% perde-se com a transpiração pelas plantas, 36% por evaporação, 2% por percolados em sistemas aquíferos e 2% fluem para o lago Ngami. Esse fluxo enorme significa que o Delta é incapaz de eliminar os minerais carregados pelo rio, o que o torna salgado e desabitado, mas isto é reduzido pelo baixo conteúdo de sal absorvido pelas raízes das plantas. A baixa salinidade da água também significa que a inundação não enriquece o solo com nutrientes. A aglomeração de sal ao redor de algumas raízes de plantas impossibilita o crescimento de várias espécies, tornando a região rica em espécies resistentes ao sal, como a palmeira. Mesmo a grama e outras árvores que crescem na areia tornam-se muito salgadas. Cerca de 70% das ilhas começaram como montes de cupim, onde uma árvore foi destruída até à raiz.

O Delta do Okavango é a morada permanente e sazonal de uma grande variedade de animais, muito populares como atração turística, em que se incluem: o elefante-da-savana, o búfalo-africano, o leão, a chita, o hipopótamo, o leopardo, o kobus leche, o topi, a sitatunga, o gnu-azul, a girafa, o crocodilo do Nilo, a hiena-castanha, a hiena-malhada, a badoca (cabra-de-leque), a palanca-negra, o grande cudo (grande antílope africano), o rinoceronte-negro, o rinoceronte-branco, a zebra-da-planície, o javali, o papio ursinus (babuíno) e o mabeco (cão selvagem).

A maioria dos 200 mil grandes mamíferos nos arredores do delta não é residente do local. Partem com as chuvas de verão, a fim de encontrar novas pastagens e abrigo. Grandes manadas de búfalos e elefantes são formadas por 30 mil animais.

O grande mamífero mais populoso é o antílope kobus leche, com mais de 60 mil animais. São pouco maiores do que o impala, com cascos alongados e uma substância repelente à água nas pernas, o que lhes permite moverem-se rapidamente, mesmo com os joelhos debaixo de água. Pastam nas plantas aquáticas e correm para a água, quando ameaçados por predadores. Só os machos têm chifres.

Habitam no Delta mais de 400 espécies de pássaros, como: a águia-pescadora africana, o corujão-pesqueiro-de-pel, o grou-coroado-oriental, o rolieiro-de-peito-lilás, o cabeça-de-martelo, o avestruz e o íbis-sagrado.

O Delta do Okavango é lar de 71 espécies de peixes, incluindo o hydrocynus vittatus, a tilápia e várias espécies de bagre. Os peixes variam de 1,4 m (clárias gariepinus) a 3,2 cm (barbus haasianus). Estas espécies encontram-se também no rio Zambeze, indicando ligação histórica entre os dois sistemas.

Os papiros formam grande parte da vegetação do Okavango, flutuam, em época de cheias, acima da areia e têm as raízes livres na água. O espaço entre o solo e as raízes é abrigo dos crocodilos.

As plantas do Delta têm um papel importante na coesão da areia. Os bancos de areia dos rios têm um conteúdo alto de lama e a combinação com a areia leva a construção dos bancos de areia. Mas, no Delta, devido às águas límpidas do rio, não há lama e o rio é formado totalmente por areia. As plantas capturam a areia, que age como cola, formando ilhas, onde mais plantas criam raízes.

Ao mesmo tempo, formam-se ilhas lineares, que são longas e estreitas e que, geralmente, se curvam ligeiramente com o curso do rio. Isto, porque, agora, são bancos naturais de antigos canais, bloqueados, com o tempo, pelo crescimento das plantas e pela deposição de areia, resultando na mudança de curso do rio e transformando em ilha o curso antigo do rio. Pela acentuada planura do Delta e pela tonalidade da areia vinda do rio, o assoalho é claro. Onde há canais hoje, teremos ilhas, amanhã, e novos canais se podem formar nas ilhas existentes.

***

A população do Delta é constituída por cinco grupos étnicos, cada um com a sua identidade e com o seu idioma. São os Hambukushu, os Dceriku, os Wayeyi, os Bugakhwe e os Anikhwe. Os três primeiros são Bantus, com tradição de economia mista de agricultura, pesa, caça, botânica de plantas selvagens e pasto, ao passo que os outros dois são San, que praticam a pesca, a caça e a botânica de plantas selvagens. Os Bugakhwe utilizam os recursos da floresta e os do rio, enquanto os Anikhwe se focam no rio. Os Hambukushu, os Dceriku, e os Bugakhwe são presentes ao longo do Okavango, em Angola e na Namíbia, havendo um pequeno número de Hambukushu e de Bugakhwe na Zâmbia. Nos últimos 150 anos, os Hambukushu, os Dceriku e os Bugakhwe habitaram o Panhandle e o Magwegqana, no noroeste do Delta. Os Anikhwe habitam o Panhandle e a área ao longo do rio Boro através do Delta, bem como a área ao longo do rio Boteti.

Os Wayeyi habitam a área ao redor de Setonga e a porção sul do Delta, ao redor de Maun, e alguns poucos Wayeyi vivem como os seus ancestrais, em Caprivi. Nos últimos 20 anos, muitas pessoas de todo o Okavango migraram para Maun. E, nas décadas de 1960 e 1970, mais de quatro mil Hambukushu refugiados de Angola estabeleceram-se na área próxima de Etsha.

O Delta do Okavango está sob controlo político dos Batawana, desde o século XVIII. Entretanto, muitos Batawana vivem tradicionalmente na periferia do Delta. Um pequeno número de outros grupos étnicos como os Ovaherero e os Ovambanderu vivem, hoje, na região do Delta do Okavango, mas a maioria dos membros destes grupos habitam nos seus locais de origem, pelo que não são considerados parte do povo do Delta do Okavango. Há, na região, muitos Bushmen, grupo dizimado por doenças originárias do contacto com o homem do século XX. E ainda há muitos casamentos com os Anikhwe.

Existem alguns chalés na região, os The Botswana Okavango Game Lodges, onde se podem hospedar poucos hóspedes, cada um numa área de concessão delimitada no Delta. Estes chalés seguem a política rígida de não afetar o ambiente da região.

***

O governo da Namíbia apresentou planos para a construção de uma hidroelétrica no rio Zambeze, para regular o fluxo do Okavango. Alguns creem que os efeitos seriam mínimos, mas os ambientalistas alegam que o projeto pode destruir muito da vida animal e da flora no Delta. Outras ameaças incluem o assentamento humano e a extração de água de Angola e da Namíbia.

O premiado cineasta e conservacionista sul-africano Rick Lomba advertiu, na década de 1980, para a ameaça da invasão de gado na área, com o documentário “The End of Eden”, que retrata vividamente este facto  e a sua luta pela preservação da integridade do Delta do Okavango.

***

Enfim, o segundo grande rio de Angola, com a extensão total de 1.700 quilómetros, alimentado, neste país, pelo Cutato dos Ganguelas, percorridos mais de mil quilómetros, dá origem a um dos maiores santuários da natureza, já em território do Botsuana – maravilha da Natureza e do Tempo.

2023.06.02 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário