sábado, 10 de junho de 2023

“Cortar ramos mortos que atingem a árvore toda”: o desafio do Douro

O Presidente da República (PR) esteve no Peso da Régua, cidade no distrito de Vila Real, a 9 e a 10 de junho, a presidir às comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, onde elogiou e reforçou a autoestima do país e, em particular, do interior.
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Porém, em dias anteriores, esteve na República da África do Sul, a celebrar, por antecipação, a efeméride, em contacto direto com as comunidades portuguesas ali residentes – no dia 5, na cidade do Cabo, e no dia 7, nas cidades de Joanesburgo e de Pretória.
Nesta deslocação, adiada de 2020, devido à covid-9, o PR fez-se acompanhar pelo primeiro-ministro (PM) António Costa, em Joanesburgo e em Pretória, por membros do governo e por um grupo de deputados à Assembleia da República, além do presidente do Governo Regional da Madeira, do presidente da Câmara Municipal do Peso da Régua e dos presidentes da Comunidade Intermunicipal do Douro e da Comissão Organizadora do Dia de Portugal 2023.
O programa incluiu uma visita às Forças Nacionais Destacadas (FND) na missão “Mar Aberto”, na Cidade do Cabo, constituídas pelo navio de patrulha oceânico NRP Setúbal e pelo submarino NRP Arpão. Acompanharam esta componente do programa a Ministra da Defesa Nacional, o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e o chefe do Estado-Maior da Armada.
Em Joanesburgo, o chefe de Estado visitou a Universidade de Witwatersrand, avistou-se com os estudantes de Língua Portuguesa, no âmbito do Departamento de Português do Camões I.P. e fez uma visita simbólica ao Museu do Apartheid. Em Pretória, foi recebido com honras militares no palácio presidencial “Union Buildings” e teve um encontro com o seu homólogo sul-africano, o presidente Matamela Cyril Ramaphosa, a que se seguiu uma conferência de imprensa conjunta e um almoço em honra da delegação portuguesa. Ainda neste âmbito, prestou uma homenagem solene no santuário do Freedom Park.
O encontro entre os chefes de Estado pretendeu reforçar os laços bilaterais entre Portugal e a África do Sul, nas mais diversas dimensões, tendo constituído uma oportunidade para abordar temas relevantes no plano multilateral. E o presidente sul-africano aceitou o convite, que o PR português lhe fez, para visitar Portugal, por ocasião das comemorações do cinquentenário do 25 de Abril.
No Peso da Régua, o dia 9 foi, sobretudo, para as selfies, mas também se realizou um cocktail e um concerto e uma sessão de fogo-de-artifício, em que o PM, não podendo comparecer, devido a uma reunião com embaixadores, se fez representar pelo ministro dos Negócios Estrangeiros.  
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No discurso do 10 de Junho, o chefe de Estado deixou mensagens que os comentadores tinham de ler como recado à maioria parlamentar absoluta que apoia o atual governo, apesar de o supremo orador ter advertido que não ia falar da espuma dos dias, mas que o discurso que assinala o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas seria dedicado “aos interiores, às vezes, esquecidos”, do país.  
O PR referiu as capacidades do Douro, “profundo, majestoso e monumental”, para fazer “um retrato do Portugal que queremos”, num momento em que a tensão política está no auge, mas em que, no costumeiro dizer presidencial, o governo tem oportunidade única para relançar o país, com o muito dinheiro europeu e com um arranjo parlamentar que permite estabilidade.
O discurso gravitou em torno do pedido de ambição nacional, que tem faltado. “Não podemos desistir nunca de criar mais riqueza, mais igualdade, mais coesão, distribuindo essa riqueza com mais justiça”, disse Marcelo Rebelo de Sousa, vincando que  Portugal continua a ser um país com “mais pobreza do que riqueza, mais desigualdade do que igualdade, mais razões para partir, às vezes, do que para ficar”.
Na verdade, depois de sondagem que dá conta da profunda insatisfação que perpassa o país – pela falta de qualidade do serviço público, pela falta de confiança dos cidadãos em muitas das instituições, pela não chegada das vantagens do propalado crescimento económico às carteiras dos cidadãos, pela magreza dos salários e pela excessiva carga fiscal – o Presidente validou e reforçou o descontentamento: “Sejamos honestos para connosco mesmos: assim tem sido, e continua a ser, século após século.”
Fê-lo sem surpresa, para quem esteve atento, pois já tinha dito aos jornalistas que se apercebera de que os Portugueses não querem eleições, neste momento, mas querem a remodelação do governo e que ele não mudou de opinião. Mais uma vez o PR está refém das sondagens e tentado a fazer a avaliação da atividade do governo, substituindo-se ao juízo dos eleitores e britando a regra dos prazos, sem que as instituições estejam a funcionar de modo irregular, embora com problemas como cogumelos, que uma dissolução parlamentar não iria resolver. Quando muito, outros rostos comporiam o cenário parlamentar e governativo      
Em todo o caso, o chefe de Estado procedeu a uma breve revisitação histórica do país e evocou o Estado Novo, a que chamou “aquelas eras, que não distam assim tanto de nós, em que as finanças estavam certas, mas a liberdade, a saúde, a educação, a segurança social, ou não existiam ou eram para um punhado de privilegiados”. E transpôs essa evocação para a atualidade: “Tudo isto foi e, às vezes, ainda é verdade.” O aviso ficou: ter “contas certas” não é tudo, ou não é nada, se não for sentido na vida do dia a dia.
Todavia, é de questionar o Presidente da República se pretende que o governo se desalinhe das normas da União Europeia (UE) ou ignore as leis do mercado, aspetos em que tanto insistia o seu antecessor, ou pensa deixar tais quesitos para um futuro governo, mais alinhado com o neoliberalismo europeu, que pretende menos Estado, mas melhor Estado, o que injete dinheiro público, não sobre os problemas do povo, mas sobre as grandes empresas.   
“De que nos serve termos influência mundial, se, entre portas, sempre tivemos e temos problemas por resolver?” Esta interrogação formulada por um partido de esquerda soaria a demagogia e, num partido de direita, seria a crítica aos atuais “agentes do governo” no exterior. Porém, na voz presidencial, marca a hora de fazer “um futuro diferente e muito melhor do que o presente”.
Concordo que o PR tenha puxado pela autoestima nacional, com referência à Língua Portuguesa, “a quinta mais falada no Mundo, a segunda mais falada no hemisfério sul”, às Forças Armadas – “destacadas em missões de paz” pelo Mundo, “sendo as mais pedidas e louvadas de todas” – e com referência ao “eleito e reeleito por aclamação de quase 200 estados” secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. Todavia, essas prestações na cena internacional nem são incompatíveis com a necessidade de relançar o país, nem devem ser vedadas, por haver deficiências e problemas no país. Louvemos os nacionais que trabalham no exterior e os que pontificam nos areópagos internacionais, mas perguntemo-nos por que motivo deixaram alguns de servir o país, cá dentro.
Não obstante, é de relevar o apelo do Douro que Marcelo deixou ao país e aos poderes: “pegarmos no impossível, tentarmos uma vez, cem vezes, mil vezes, falharmos mais do que acertarmos, termos tantas, mas tantas, tentações de desistirmos, mas não desistirmos, começarmos de novo.”
E como o cenário era o Douro vinhateiro, não faltou a metáfora apropriada: é preciso “darmos novo viço ao que disso precisar – plantar, semear, podar, cortar ramos mortos que atingem a árvore toda”. Porém, o Douro é muito mais do que isso. O Douro arroteou terrenos, fez socalcos, comercializou o produto de que fez o seu ex-libris e meteu o comboio por sítios onde não cabia o diabo. No entanto, a grande empreendedora do Douro Antónia Adelaide Ferreira (a Ferreirinha) conseguiu riqueza, tratou bem os trabalhadores, socorreu os mais necessitados e resistiu à grande crise do Douro – a filoxera, que destruiu muitas vinhas (ficaram conhecidas como os mortórios as vinhas abandonadas, agora plantadas de oliveiras, de amendoeiras e de pessegueiros) – com os resistentes pés de videira, americanos, os cavalos, para enxertar as castas autóctones. Alargou a zona do vinho do Douro e, para não dispensar trabalhadores mandou murar a quinta do Vesúvio.
E, além da poda, cortam-se os ramos secos (por inúteis), os doentes (por contaminarem), mas os ramos mortos caem por si. O problema é quando o mal está na raiz!   
O PR falou do festejo no Peso da Régua – cidade que “nunca foi capital de distrito nem de diocese” (apesar de o ter merecido há muito tempo, é um das novas cidades, recordo, e está só 12km de uma cidade episcopal, Lamego) – como forma de celebrar, “ao mesmo tempo, em 19 municípios do Centro e do Norte”, que têm o Douro em comum, “num ano em que são todos eles, e não um, como é habitual, cidade europeia do vinho.” Escusava, porém, de pluralizar, de modo popularucho, os nomes de cidades. Bastaria dizer, por exemplo: que o Peso da Régua e os pesos dos nossos interiores sejam tão importantes como os das outras cidades, as do litoral.
Porém, correspondeu ao que o enólogo João Nicolau de Almeida, escolhido para presidir às comemorações, tinha dito, ou seja, que o Douro enfrenta o desafio da “forte desertificação do interior”, que gera “falta de mão-de-obra e escassez de massa crítica”, pelo que fez o o pedido de “urgente adaptação das leis à atualidade”. E Marcelo pediu universalidade, solidariedade e união para “ultrapassar egoísmos”, e que, olhando para dentro, o país possa projetar-se lá fora, cumprindo “o nosso desígnio nacional”.
Depois, lembrou: “Nós nascemos diferentes, uma pátria improvável, feita a pulso, contra o vento, muito cedo universal, chamada ou condenada a ser mais importante lá fora do que cá dentro.
E porfiou; “Não queremos nunca cometer o erro de trocar a nossa vocação, que nos fez maiores e diferentes, pela ilusão de que sermos felizes é deixarmos de ser o que nos marcou há séculos.”
Porém, advertiu: “Que isso não seja álibi para não sermos mais fortes e mais justos cá dentro. […] Só se não quisermos, é que o nosso Portugal não será eterno.”
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A seguir aos discursos, seguiu-se o imponente desfile militar (tropas apeadas e autotransportadas, viaturas e meios aéreos), o almoço e um concerto em que o PR condecorou três bandas militares.    
O ministro das Infraestruturas, João Galamba, que tinha sido vaiado à chegada, manifestou-se “confiante” no seu trabalho, ao ser questionado pelos jornalistas sobre a razão da sua presença nas comemorações. Referiu o seu papel na eletrificação da Linha do Douro, entre Marco de Canaveses e o Peso da Régua, e na projeção da eletrificação até ao Pocinho.
E interpelado sobre se não devia facilitar a vida ao PM, respondeu, demitindo-se: “Facilitar a vida ao primeiro-ministro é fazer o meu trabalho, que é o que tenciono fazer.”
Por outro lado, com exceção dos professores, que levaram à Régua uma delegação liderada por Francisco Gonçalves, secretário-geral adjunto da FENPROF, e que assobiaram e exigiam “respeito”, António Costa, que, no dia 10, participou nas cerimónias, foi bem recebido, mas, como é habitual, não nos mesmos níveis de entusiasmo dispensados a Marcelo Rebelo de Sousa.
Quanto aos protestos dos professores, considerou-os injustos, mas lícitos em democracia.
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Enfim, num dia de festa nacional, em que se lançam bases de reflexão sobre o presente e sobre o futuro de um país periférico e assimétrico, a questão lançada pelos formadores da opinião pública é se Galamba sai ou não do elenco governamental. Que pobreza! Eu também queria que o ministro fosse outro, mas isso não é o mais importante. Não diz a verdade toda. Qual é o político que tem uma relação serena e total com a verdade?

2023.06.10 – Louro de Carvalho


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