quinta-feira, 8 de junho de 2023

Mil cânticos de glória nas alturas

 

É o primeiro verso de um cântico eucarístico que o Padre Rui Morais Botelho, de saudosa memória, compôs a fim de servir de introito para a liturgia da Missa da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo – composição para coro e banda filarmónica – e que passou a figurar também no repertório de cânticos para a comunhão.

Em dia em que a Igreja Católica celebra solenemente a instituição da Eucaristia – pois o clima de reflexão que envolve a noite de Quinta-feira Santa não propicia os “mil cânticos de glória nas alturas” que subam da Terra aos Céus – importa que a comunidade dos crentes, mobilizados que são todos os seus elementos, se reúna em festa e, no templo e na rua, cante os louvores d’Aquele que, na véspera da sua Paixão e Morte na cruz, como prova de perpétua doação, instituiu, sob as espécies de pão e de vinho, o augusto mistério do seu corpo e sangue tornado alimento do homem peregrino e banquete de toda a comunidade peregrina (a Igreja), a antecipação do sacrifício de Sexta-feira Santa e da sua confirmação na gloriosa madrugada da Ressurreição. É a esta comunidade, família dos filhos de Deus, que incumbe anunciar, em cada dia, a morte do Senhor e proclamar a sua ressurreição, enquanto, em espera ativa e jubilosa da sua última vinda, está em saída pelo Mundo, a fazer crescer o número dos discípulos, em todas as nações.                

O trecho do Evangelho proclamado nesta solenidade, no Ano A (Jo 6,51-58), insere-se no capítulo 6 do Quarto Evangelho.

Após a preparação do cenário, com as personagens (Jesus, uma grande multidão, os discípulos) e com as circunstâncias de lugar e de tempo, vem a interrogação socrática de Jesus a Filipe (“Onde compraremos pão para que eles comam?”), não respondida corretamente por Filipe. E a sugestão de André parecia manifestamente insuficiente, mas seguiu-se-lhe o prodígio da distribuição-partilha dos cinco pães e dos dois peixes que um rapaz tinha consigo.

A seguir, temos os discípulos a atravessar, no escuro, o mar encapelado, e Jesus a vir ao encontro deles, caminhando sobre o mar.

“No dia seguinte”, a multidão que nota a ausência de Jesus, parte para Cafarnaum, à sua procura.

Temos a mudança de cenário. Neste novo lugar, comtemplamos a grande discussão (vv. 25-59) entre Jesus e a multidão ou os judeus, sobre o Pão do Céu, em que se insere o trecho em apreço.  

A discussão apontada progride em texto ritmado, segundo esquema pergunta-resposta. As perguntas vêm de multidão não identificada ou dos judeus, com as correspondentes respostas de Jesus. Seguindo este esquema, o texto de João 6,25-59 comporta cinco itens: apelo ao trabalho pelo alimento que dá a vida eterna; superioridade do Pão descido do Céu sobre o maná, que já tinha origem em Deus (não em Moisés); primeiro discurso do Pão da Vida, com o objetivo da realização da vontade de Deus e com o apelo à fé; murmúrio dos judeus e afirmação do papel de Jesus, como mediador e como obreiro da ressurreição dos crentes; e discurso do pão da vida, interrompido pela exaltação dos judeus, mas reafirmado e desenvolvido por Jesus, de forma cabal.

É este item que constitui o trecho evangélico que enforma o tema da solenidade, neste Ano A, seguindo-se-lhe o abandono de muitos judeus, incluindo alguns discípulos e a inefável confissão de fé de Pedro. 

Às perguntas dos judeus: “Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: ‘Eu desci do céu’?”, Jesus responde, afirmando claramente a sua verdadeira identidade: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu […], pão que é a minha carne, que Eu darei para a vida do mundo.” É de referir que Jesus não está a responder à “multidão” anónima, mas aos “judeus”, que entraram em cena e formularam as perguntas entre si.

A afirmação de Jesus contém todos os elementos que importa: “Eu sou o pão vivo (ho zôn) que desceu do céu”, “este pão é a minha carne”, e “dá a vida (zôê)”. Porém, vem, logo a seguir, outra pergunta dos judeus, em réplica à resposta de Jesus. A nova pergunta é: “Como pode este dar-nos a sua carne (sárx) a comer?”

Em tréplica, Jesus fala de vida nova e de alimento novo, côngruo com essa vida. É de anotar que o verbo “comer” (trôgô) surge conjugado com o nome “carne” (sárx), com o nome “pão” (ártos) e com o pronome “eu”, ou seja, “comigo” (me) [“o que me come”]. Assim, “comer o pão descido do céu” é “comer a carne do Filho do Homem”. São expressões que equivalem a comer a pessoa de Jesus e o seu modo de viver. Só assim a vida eterna (zôê aiônios) configura a nossa vida com a de Jesus. Tudo o que fica para trás, toda a História passada se resume no maná, “que os vossos pais comeram, mas morreram”. O maná tem referência só com a vida terrena, sem eficácia para lá da morte. Ao invés, o pão que Jesus é e dá não sustenta a vida terrena, a não ser em casos muito excecionais e raros (por exemplo, “Alexandrina de Balazar”). Em termos terrenos, também Jesus morreu. Já o pão que Jesus é dá a vida eterna (zôê aiônios).

Depois, sobressai o tema da pertença mútua e permanente: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele.” Este segmento discursivo traduz a comunhão eucarística do crente com Jesus. O verbo “comer” ganha, aqui, realismo. Habitualmente, para dizer “comer”, usa-se o verbo grego esthíô. Porém, neste discurso, João usa, para o nosso verbo “comer”, o verbo grego trôgô (trincar, mastigar), que João só torna a usar em 13,18, no contexto da ceia pascal. Vida nova e eterna, ressurreição, comunhão e intimidade Deus-Humanidade são os fins da synkatábasis de Jesus. Ele desceu ao nosso mundo e doou-se completamente a nós, deu a sua vida (psychê) por nós e deu-nos a vida que não acaba (zôê aiônios).

Diz o Bispo de Lamego, citando Paul Claudel, que, se interrogarmos “a velha terra”, responderá sempre com o pão e com o vinho – palavras que traduzem bem a Eucaristia. Os sinais do pão e do vinho atingem o alimento físico, indispensável, e estão presentes, sobretudo, ao manifestarmos a comunhão na alegria (solenidades e festas) e na dor (por exemplo, em rituais fúnebres). Com efeito, Moisés diz, com energia, ao povo de Israel, reunido na planície de Moab: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8,3) – o que antecipa o que, para nós, são os sinais do pão e do vinho: o alimento espiritual e comunitário, radicado na bênção.  

Talvez seja interessante seguir D. António Couto, Bispo de Lamego, na sua análise ao curto trecho de Paulo, na 1.ª Carta aos Coríntios (1Cor 10,16-17), provavelmente a mais antiga evocação da Eucaristia, que se chamaria eulogía (“bênção”), e que serviu de 2.ª leitura.

São duas perguntas retóricas, para chegarmos a uma asserção unitário-comunitária.

“O cálice da bênção (tò potêrion tês eulogías) que bendizemos (eulogoûmen) não é comunhão (koinônía) no sangue de Cristo? O pão que partimos (kláô) não é comunhão no corpo de Cristo?” O texto é curto e simples, mas condensado. A bênção, hebraico berakah, é unitiva e põe em comunhão. Parte de Deus, recai sobre o homem, mobiliza os homens e volta a Deus, unindo Deus e homem e os homens entre si, num circuito interrompível. Ou parte do homem ou dos homens, recai sobre Deus, e volta ao homem e aos homens, unindo-os entre si, num circuito interrompível. “Bendizer” significa “dizer bem”, de que resulta querer o bem e querer bem. Nas coisas de Deus, dizer tem consequência. Crer exige compromisso e ação côngrua.

Não obstante, passamos a vida a maldizer (“dizer mal”). Maldizer divide e leva a querer mal e a querer o mal. Celebrar a Eucaristia, além de festa, é um programa de vida, pois significa, “para quem nela participa, dizer bem, pensar bem, querer bem, fazer bem”.

Por outro lado, D. António Couto anota que, tradicionalmente, o Senhor da vida preside e abençoa com a sua presença sacramental, caminhando connosco, em solene procissão, os caminhos das nossas aldeias, vilas e cidades, sobressaindo o pálio, com Jesus no ostensório. Assim, o pálio ou manto (pallium, em Latim; e, em Grego, há o verbo palýnô: cobrir espargindo) de Deus atravessa as nossas aldeias, vilas e cidades, cobrindo-nos de bênção, abraçando-nos e envolvendo-nos, e apela a que façamos o mesmo, enchendo de graça e de esperança todos os irmãos.

E o texto paulino justifica tudo isto com o facto de haver um só pão, o qual tem de ser dado em partilha. Com efeito, sendo muitos e diversos, um só pão e um só cálice fazem, de nós todos, um só; fazem da diversidade a unidade; de muitos fazem comunidade e a comunhão.

Num Mundo em crise como este em que vivemos, não podemos voltamos a viver “sem esperança e sem Deus no Mundo”.

Na verdade, como reza o trecho do Livro do Deuteronómio (Dt 8,2-3.14b-16a), tomado como 1.ª leitura, o Senhor, nosso Deus, põe-nos à prova, a fim de conhecer o íntimo dos nossos corações e verificar se guardamos ou não os mandamentos. Porém, deu-nos a comer o maná que não conhecíamos, nem os nossos pais conheceram, para fazer compreender que o homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca do Senhor. Foi Ele quem fez sair os nossos pais da casa de escravidão e nos conduz através do imenso deserto da vida, entre serpentes venenosas e escorpiões, em terreno árido e sem águas. Foi Ele quem, da rocha dura, faz nascer água para nós e, no deserto da vida, nos dá a comer o maná e o pão da vida, da vida que não terá fim.

***

Portanto, em dia da Eucaristia, creiamos, dêmos graças, louvemos, adoremos, festejemos, comunguemos. Todavia, é preciso sair à rua e testemunhar a fé publicamente, como é urgente a ação junto do próximo necessitado. É preciso construir e consolidar a comunidade, fazer unidade sem anular a diversidade. Juntemos-mos aos anjos e santos que, perpetuamente adoram e cantam: “Glória a Deus nas Alturas e paz na Terra aos homens por Ele amados!”

“Adoro-te, Divindade oculta” (Tomás de Aquino)

“Glorifica, Jerusalém, Senhor; louva, Sião, o teu Deus!” (Sl 147,12)

“Mil cânticos de glória nas Alturas, / se elevem ao Senhor. /Cantai o Pão da Vida, criaturas, / cantai o Deus de amor.” (Rui Botelho).

2023.06.08 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário