quinta-feira, 22 de junho de 2023

Perdão e amnistia a jovens por ocasião da JMJ

 

De acordo com o respetivo comunicado, o Conselho de Ministros aprovou, a 19 de junho, por via eletrónica, a proposta de lei, a apresentar à Assembleia da República (AR), que estabelece perdão de penas e amnistia de infrações praticadas por jovens.

O diploma estabelece o perdão de um ano a todas as penas de prisão até oito anos, sendo adicionalmente fixado um regime de amnistia que compreende as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda mil euros e as infrações penais cuja pena não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de pena de multa.

A proposta de lei compreende exceções ao perdão e à amnistia, não beneficiando, nomeadamente, quem tiver praticado crimes de homicídio, de infanticídio, de violência doméstica, de maus-tratos, de ofensa à integridade de física grave, de mutilação genital feminina, de ofensa à integridade física qualificada, de casamento forçado, de sequestro, contra a liberdade e contra autodeterminação sexual, de extorsão, de discriminação e de incitamento ao ódio e à violência, de tráfico de influência,  de branqueamento ou de corrupção.

Estão abrangidas pela presente proposta de lei, a submeter à AR, as infrações praticadas até 19 de junho de 2023 por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade.

E refere o Conselho de Ministros que as medidas de clemência propostas, focadas nos jovens, têm lugar no quadro da realização, em Portugal, da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que contará com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal.

O “explicador” da Rádio Renascença, no seu comentário, segundo o esquema de pergunta e resposta, esclarece que o objetivo da lei é “a promoção da reinserção social dos condenados”. São jovens entre os 16 e os 30 anos que terão direito a um perdão (limitado a um ano, acrescento eu) das respetivas penas de prisão. É uma medida legislativa que o Conselho de Ministros enquadra com a realização da JMJ, em Lisboa, e com o testemunho de vida e de pontificado de Francisco, que, “insistentemente apela à reintegração das pessoas em conflito com a lei penal”.

Sobre a abrangência desta medida, é referido que são contemplados os jovens entre os 16 e os 30 anos que tenham sido condenados a penas de prisão até oito anos e as infrações penais cuja condenação não seja superior a um ano ou a 120 dias de multa, tal como ficam isentas de condenação as infrações cuja coima não ultrapasse os mil euros. Já o horizonte temporal em referência é o das infrações cometidas até 19 de junho do corrente ano.

Este perdão exclui todas as situações de homicídio, infanticídio, violência doméstica, maus-tratos, ofensa à integridade física, mutilação genital, casamento forçado, sequestro, bem como todos os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, extorsão, discriminação e incitamento ao ódio e à violência, tráfico de influência, branqueamento e corrupção.

 Trata-se de uma medida excecional, no âmbito da JMJ, não confundível com indulto.

Nos termos da alínea f) do artigo 134.º da Constituição, compete ao Presidente da República indultar ou comutar penas, ouvido o Governo. Trata-se de ato que atinge uma ou mais pessoas consideradas individualmente. Assim, é costume, todos os anos, por altura do Natal (usualmente a 22 de dezembro), serem concedidos indultos presidenciais. Cada um deles é um ato de perdão jurídico emitido pelo Estado que extingue o cumprimento de uma pena resultante de condenação. É competência exclusiva do chefe de Estado, sem quaisquer outras condições para lá de audição prévia do Governo, através do/a ministro/a da Justiça.

Já a concessão de amnistias e de perdões genéricos (como é o caso vertente) é da competência da AR, nos temos da alínea f) do artigo 161.º da Constituição.

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A proposta de lei, a apresentar pelo Governo à AR, vem ao encontro do desejo da Obra Vicentina de Auxílio ao Recluso (OVAR), conhecido a 9 de abril, aduzindo que, nos últimos dois anos, em Portugal, a população prisional aumentou em “cerca de mil reclusos”.

Manuel Almeida Santos, presidente da OVAR, defendendo uma amnistia para reclusos, por ocasião JMJ e da visita do Papa Francisco, em agosto, dizia à Rádio Renascença  que “muitos dos novos reclusos são jovens” e lembrava “a sensibilidade do Papa Francisco para com os presos”, para pedir à AR uma iniciativa legislativa. “Exortamos os nossos deputados a que façam aprovar uma amnistia ou um perdão de penas, aquando da próxima visita do Papa”, clamava.

O presidente da OVAR sustentava que “é preciso ter em conta que a população prisional, depois do perdão de penas concedido no âmbito da covid-19, nos últimos dois anos, aumentou cerca de mil reclusos e muitos deles são jovens”. “E a JMJ é destinada aos jovens, incluindo aqueles que por circunstâncias da vida acabaram por cair nas malhas das prisões”, acrescentava.

Para Manuel Almeida Santos, “esta visita do Papa Francisco pode ser uma oportunidade para a concessão dessa amnistia e [desse] perdão de penas, tendo em conta a sensibilidade que Francisco tem manifestado para com os reclusos”.

Para o presidente da OVAR, instituição vencedora do prémio de direitos humanos da Assembleia da República em 2018, a JMJ é “uma boa oportunidade para se lembrar os jovens reclusos”, pelo que pedia que se fizesse pressão e se tentasse sensibilizar os políticos. “Nós, como membros da Igreja, temos que fazer pressão junto do poder político, para que os jovens reclusos também sejam lembrados nesta visita do Papa, no âmbito da JMJ”, reforçava, temendo que, se essa pressão não fosse mantida, o poder político não fizesse nada, “porque há sempre, aqui, aspetos polémicos que qualquer medida que beneficie a população prisional possa ter”.

Das últimas visitas papais a Portugal resultaram três amnistias: em 1967, com São Paulo VI, no cinquentenário das aparições de Fátima, em 1982 e em1991, com São João Paulo II. Em 2000, já não houve amnistia, assim como em 2010, aquando da visita de Bento XVI, pelo centenário da República, e em 2017, já com o Papa Francisco, no centenário das aparições de Fátima.

Conhecida a deliberação do Governo, o presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), Pedro Vaz Patto, disse à Rádio Renascença que se trata de “ir ao encontro das preocupações” do Santo Padre. “O Papa Francisco tem sido muito insistente nos apelos à reinserção social dos delinquentes, de modo particular dos jovens”, afirmou o juiz, explicando que este tipo de medidas já foi aplicado noutras visitas papais.

O presidente da CNJP entende que “este gesto não deve ser visto como uma forma de laxismo, de permissividade”. “Não é essa a perspetiva do Papa, nem é essa também a perspetiva do legislador nestes casos. É um ato de clemência, sim, mas é também um ato de confiança na vontade de reconciliação”, sublinhou.

Entretanto, a Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR) alertou, a 20 de junho, para uma eventual inconstitucionalidade na amnistia de crimes e infrações por jovens entre os 16 e 30 anos, aprovada pelo Governo, no âmbito da JMJ.

Em comunicado enviado às redações, a APAR saudou a proposta de lei aprovada, no dia 19, em Conselho de Ministros, mas manifestou o desagrado por nenhuma organização de defesa dos reclusos ter sido ouvida sobre esta matéria e pela restrição etária (16 a 30 anos) determinada para os presos que possam ser alvo do perdão de penas, observando que tal pode ofender o princípio da igualdade dos cidadãos. “A proposta aprovada contém normas que estabelecem distinções que não respeitam os limites constitucionais da igualdade de todos perante a lei e, por isso mesmo, não podem ser aplicadas pelos tribunais”, observou a organização, reforçando a sua discordância face a “uma proposta que não contemple todos os cidadãos reclusos”.

Segundo a APAR, a aprovação do diploma na sua atual redação poderá levar a “interpretações díspares e com graves e irreparáveis consequências para os cidadãos”.

Por sua vez, a advogada Leonor Caldeira, em sua crónica na revista Sábado, de 22 de junho, revela que foi rápida a comunicar aos clientes o teor da medida do governo, logo que dela teve conhecimento. Porém, diz-se admirada pelo silêncio social, comparativamente com o que se passou na pandemia, em que muitas vozes, não olhando às razões de saúde pública, clamavam que iam colocar presos na rua, representando um grave perigo para a sociedade.

Por outro lado, a advogada estranha este silêncio num Estado laico, mas sublinha que Portugal é um dos países europeus de condenações a penas de prisão mais dilatadas no tempo, sendo evitadas as medidas de trabalho comunitário e de inserção social.

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Creio que a contestação, a surgir (no tempo da pandemia, era o medo, o nervosismo, o cansaço), virá aquando do debate na AR. Alguns observadores até dizem que a medida faz pressão no sistema de justiça.  

É certo que estamos num Estado aconfessional, mas a dimensão da JMJ ultrapassa os limites do nosso legítimo e querido republicanismo. Também não somos uma monarquia, mas a sociedade portuguesa deixa-se prender pelo aparato da monarquia britânica e trata bem o atual candidato a um trono português que não existe. Por mim, sem desprimor pela nobilíssima preocupação de Francisco pelos reclusos, nomeadamente jovens, preferiria ver a medida de perdão e de amnistia mais ligada à JMJ, que a figura do Papa enriquece, mas em que não devia ser o móbil quase indispensável.

Não creio que a medida seja ferida de inconstitucionalidade, como receia a APAR, porquanto, já em tempos, o Tribunal Constitucional, em sede de recurso, reconheceu que toda a amnistia delimita o seu âmbito a nível temporal, a nível da abrangência de crimes e a nível do universo de beneficiários (ver Acórdão n.º 444/97, de 25 de junho).

Não obstante, atendendo à dimensão universal da JMJ (não se cingindo a crentes, nem a um continente), vendo a abrangente dimensão humana da estrutura logística e o empenho coletivo mostrado na peregrinação dos seus símbolos, por todo o país, salientando que alguns trabalhos importantes são obra de reclusos, entendo que só haveria vantagens em alargar o universo etário a todos os reclusos. Isto, para lá do efeito simbólico.

Por fim, uma nota sobre a hipótese, que os últimos acontecimentos praticamente afastaram, de o Papa Francisco não poder vir a Portugal, para presidir in loco à JMJ, e o facto de se dizer que não há um plano B – o Papa já mandou elaborar o programa pormenorizado da visita e garantiu, em videomensagem, a sua presença. É evidente que toda a programação se deve manter, bem como as medidas a ela atinentes.  

As JMJ são uma iniciativa do Papa. Os jovens reúnem sob a égide papal que preside, em princípio, in loco. Todavia, a presença física do Papa não é essencial, nem indispensável. Recordo que o Congresso Eucarístico Internacional de Lourdes, em 1981, não pôde ter a presença de João Paulo II, por internamento do mesmo, em virtude do atentado que tinha sofrido. Porém, não deixou de ser presidido pelo Papa, através do Enviado Especial, o cardeal Gantin.

Por isso, do meu ponto de vista, a promoção da JMJ foi demasiado centrada na pessoa do Papa Francisco, quando devia ter sido propalada como iniciativa eclesial sub Petro et cum Petro (com e sob o sucessor de Pedro), deixando tresler a ideia de que, sem Francisco, a JMJ perderia sentido.

A voz do Papa é muito importante na Igreja, mas não é a única. Aliás, é conhecido o aforismo de Santo Inácio de Antioquia “Ubi episcopus ibi Ecclesia” (onde está o bispo, aí está a Igreja).

Se o evento fosse mais eclesial e menos papal, não teria havido polémica com palco e com altar.

2023.06.22 – Louro de Carvalho

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