segunda-feira, 19 de junho de 2023

Os crentes são discípulos que estão em missão permanente

 

No 11.º domingo do Tempo Comum, do Ano A, a Liturgia da Palavra evidencia a presença constante de Deus no Mundo e a vontade que Ele tem de oferecer aos homens, a cada passo, a sua vida. Porém, a intervenção de Deus na História humana concretiza-se através dos que chama e que envia como sinais vivos do seu amor e testemunhas intrépidas da sua bondade.

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1.ª leitura (Ex 19,2-6a) transporta-nos para o deserto do Sinai, onde aos pés de um monte, Deus realiza a Aliança (“berit”) com o Povo. Este pacto, de iniciativa de Deus, implica, juridicamente, direitos e deveres a observar pelas partes envolvidas; e, do ponto de vista religioso, é um compromisso sagrado que inclui juramento solene, oblações e sacrifícios.

Como acontece em toda História da salvação, a iniciativa da Aliança é de Deus. De entre todos os povos da terra, o Senhor escolhe Israel para laços de comunhão e de familiaridade. O povo eleito recebe a missão de se tornar nação sacerdotal que será sinal do amor e da santidade de Deus para todas as nações. Este compromisso assumido por Deus será uma indicação do que Ele deseja realizar com toda a Humanidade.

O trecho em apreço faz parte das tradições sobre a aliança do Sinai, um conjunto de tradições cujo denominador comum é a reflexão sobre o compromisso que Israel assumiu com Javé.

No texto bíblico, não há indicações geográficas suficientes para identificar o monte da aliança. O nome “Sinai” não designa um monte, mas uma enorme península triangular, com cerca de 420 quilómetros de extensão norte/sul, que se estende entre o mar Mediterrâneo e o mar Vermelho (no sentido norte/sul) e o golfo do Suez e o golfo da Áqaba (no sentido oeste/este). É um deserto árido, escassamente povoado, de terreno acidentado e com várias montanhas que chegam a atingir 2400 metros de altura. Todavia, uma tradição cristã do século IV d.C. identifica o monte da aliança com o “Gebel Musah” (o monte de Moisés), de 2244 metros de altitude, situado a sul da península sinaítica, ainda hoje, lugar de peregrinação para judeus e para cristãos.

O termo hebraico “berit” define um pacto entre duas partes, que implica direitos e obrigações recíprocos. A “berit” raramente era escrita, mas tinha sempre valor jurídico. Era selada por ritual consagrado pelo uso, que incluía o juramento e a imolação de animais em sacrifício.

É de anotar que a iniciativa da aliança é de Deus: Javé convoca Moisés – o intermediário entre Deus e o Povo – para a montanha e propõe uma aliança à casa de Jacob. A iniciativa de estabelecer laços de comunhão e de familiaridade com o seu Povo é sempre de Deus.

A aliança que Deus propõe é realidade que envolve toda a História do Povo. As palavras de proposição da aliança desenvolvem-se em três estrofes, uma para cada tempo – passado, presente e futuro – a apontar à totalidade da caminhada do Povo de Deus. A primeira, referente ao passado, evoca a libertação da escravidão do Egipto, a presença e assistência amorosa de Deus ao longo da marcha pelo deserto e o chamamento à comunhão com o próprio Deus (“e vos trouxe até Mim”). Tudo isso resulta do compromisso que Deus assumiu com Israel, ainda antes da aliança do Sinai. A segunda visa o presente. Javé convida Israel estabelecer com Deus laços privilegiados de comunhão e de familiaridade. Para tanto, Deus pede a Israel que escute a sua voz e guarde a aliança: os preceitos de Deus são as exigências com que o Povo se deve comprometer. E a terceira refere-se ao futuro. Se Israel se comprometer com Deus numa aliança, Deus oferecer-lhe-á uma relação especial, que o tornará Povo eleito de Deus, reino de sacerdotes e nação santa.

A aliança aparece como parte integrante do desígnio de salvação que Deus tem para os homens. Israel é convidado por Deus a desempenhar um papel primordial nesse processo: se fizer parte da comunidade de Deus e percorrer o caminho dos mandamentos, será o Povo escolhido por Deus para o seu serviço e para ser um sinal de Javé diante de todos os outros povos. Esta eleição não é privilégio, mas serviço, que se concretiza em missão profética: ser sinal vivo de Deus no Mundo. Com efeito, a libertação do Egito não se resume em fazer sair o povo da escravidão para a liberdade. A caminhada que Javé começou com o Povo no Egito postula o compromisso com Deus e com os homens: edifica-se um Povo que ganha a sua liberdade e se torna testemunha de Deus, sinal de Deus, sacerdote de Deus no Mundo.

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O Evangelho (Mt 9,36-10,1-8) é encimado por esta pertinente verificação: “Ao ver as multidões, Jesus encheu-se de compaixão por elas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor (Mt 9,36).

Após ter apresentado Jesus a anunciar a chegada do Reino em palavras, obras, vida e verdade, e ter mostrado a vocação de Mateus como modelo de chamamento ao discipulado, a liturgia leva-nos ao “discurso da missão”. Quem foi chamado e respondeu, antes de anunciar, deve aprender com Jesus Cristo, Aquele que é o Reino em pessoa, pois, só pode ser verdadeiro discípulo quem caminhou com Jesus, escutou o seu ensinamento, testemunhou os sinais operados pela sua graça e deixou os valores do Reino adentrar no coração e criar raízes perenes em sua vida. Aqueles Doze, que representam a totalidade de Israel e da Humanidade, serão os continuadores da missão de Jesus e deverão anunciar a salvação e libertação que Deus fez a toda a criação.

Mateus introduz a pessoa e as ações de Jesus Cristo imbuído dos mesmos sentimentos que os profetas manifestaram nos oráculos divinos no Antigo Testamento (AT). Como sucedeu outrora com Israel, abandonado pelos reis e pelos sacerdotes à própria sorte, Jesus encontra o povo desnorteado. Por isso, aconselha e exorta a clamar ao Pai pedindo, através da oração, zelosos pastores. Deus escuta os nossos clamores, pois a vinda do Filho é a manifestação desta escuta divina. E o Filho escolhe discípulos conforme o seu coração. Pecando, a Humanidade inteira perdeu-se, mas Deus, no seu amor, escolheu Israel para resgatar a todos os povos. Do mesmo modo, Jesus escolhe os discípulos para que, pelo anúncio do evangelho, levem a Humanidade a ter conhecimento de que a salvação se aproxima. Essa missão – que é o prolongamento da própria missão de Jesus – consiste em anunciar o Reino e em pôr-se, decididamente, contra tudo o que escraviza o homem, ferindo a sua dignidade: “Deu-lhes poder para expulsarem os espíritos maus e curarem todo tipo de doença e enfermidade” (Mt 6,7). A missão acontece, primeiramente, na proclamação jubilosa de que o alvorecer da salvação se aproxima, pois “o Reino dos céus está próximo!” (Mt 10,7) Todavia, como a missão não é apenas teoria, não são suficientes os discursos e as pregações: o Reino precisa ser comunicado também em atos – devem curar, ressuscitar, purificar e expulsar o mal (Mt 10,8). Os discípulos recebem instruções sobre a concretização da missão. Jesus convida-os viver na pobreza, na simplicidade, ao despojamento dos bens materiais, fugindo do desejo de poder e de dominação que, muitas vezes, leva a buscar o próprio interesse. E o Reino é também fraternidade, pelo que um discípulo deve apoiar o outro, sem rivalidade ou divisão, e devem comprometer-se, fielmente, com o anúncio da mensagem de Jesus.

O envio e as instruções do Evangelho permanecem válidos, pois a verdade não depende do tempo. As condições e os contextos da missão variam a cada era e a cada cultura onde o evangelho é semeado. Todavia, a recomendação de que da Palavra de Deus permaneça como centro da missão e de que as nossas atitudes sejam reflexos da pregação são e permanecem condições essenciais para todas as atividades missionárias frutificarem em sinais concretos do Reino de Céus.

Às vezes, imaginamos a missão apenas como um tempo (uma semana missionária, por exemplo), viagem para visitas e partilha da Palavra de Deus. No entanto, a missão não é momento esporádico na vida cristã, mas constitui a nossa essência. Não é à toa que o Documento de Aparecida se refere aos cristãos de todos os tempos como “Discípulos Missionários”. Assim sendo, um monge ou uma religiosa que vivam enclausurados em oração são tão missionários como o leigo ou como o sacerdote que ajuda num país distante. Todos os discípulos são convidados a assumir a vida quotidiana como missão, pois trata-se da realidade na qual devemos servir a Deus em cada pessoa com quem nos encontramos. Assim compreendemos que não realizamos uma missão, mas que a nossa vida é missão.

Vejamos, mais em pormenor, o teor do trecho em apreço, que inclui uma introdução e uma parte da descrição do chamamento e do envio dos discípulos.

Na introdução (cf Mt 9,36-38), Mateus explica que a missão a que Deus chama os discípulos é expressão da solicitude de Deus, que oferece ao seu Povo a salvação. Mateus – que escreve para uma comunidade onde havia significativo número de crentes de origem judaica – usa, para transmitir esta mensagem, imagens retiradas do AT e muito familiares para os judeus.

Para Jesus, Israel é a comunidade abatida e desnorteada, cujos pastores (os líderes religiosos) se demitiram das suas responsabilidades. São os maus pastores de que falam os profetas. Porém, o coração de Deus está cheio de compaixão pelo rebanho abatido, pelo que vai assumir as suas responsabilidades, no sentido de conduzir o seu Povo para as pastagens onde há vida.

A referência à messe indica que a missão é urgente e que não há muito tempo para a levar a cabo (nos profetas, a messe vem ligada à imagem do juízo iminente de Deus; a referência ao pedido a fazer ao Senhor da messe é o apelo a que a comunidade contemple a missão como obra de Deus, a levar a cabo com os critérios de Deus, pelo que a comunidade deve rezar, a fim de se aperceber do projeto, da perspetiva e dos critérios de Deus, – antes de empreender o anúncio do Evangelho.

Vem, depois, o chamamento dos discípulos (cf Mt 10,1-4). Mateus deixa claro que a iniciativa é de Jesus: “chamou-os”. Não há explicação sobre os critérios da escolha: falar de vocação e de eleição é falar de mistério insondável, que depende de Deus e que o homem nem sempre consegue compreender e explicar. E Mateus aponta o número “doze”, número simbólico, que lembra as doze tribos do antigo Povo de Deus. Estes “doze” discípulos representam simbolicamente a totalidade do Povo de Deus, do novo Povo de Deus.

E Mateus define a missão que Jesus lhes confiou (“deu-lhes poder de expulsar os espíritos impuros e de curar todas as doenças e enfermidades”). Os espíritos impuros, as doenças e as enfermidades representam o que escraviza o homem e o impede de chegar à vida em plenitude. A missão dos discípulos é, pois, lutar contra tudo aquilo – de caráter físico ou de caráter espiritual – que destrói a vida e a felicidade do homem (a missão dos discípulos é lutar contra o pecado).

Depois, Mateus aponta os nomes dos “Doze” (Simão Pedro, André, Tiago filho de Zebedeu, João, Filipe, Bartolomeu, Tomé, Mateus, Tiago filho de Alfeu, Tadeu, Simão o cananeu e Judas Iscariotes). Pedro encabeça a lista e Judas Iscariotes fecha-a. Estes dois são talvez as duas personagens mais fortes e que, ao longo da caminhada com Jesus, devem ter assumido algum protagonismo no grupo dos discípulos.

O último passo é o envio dos discípulos – antecedido de um conjunto de instruções para a missão (cf Mt 10,5-8). Jesus define os destinatários da missão: na primeira fase, são “as ovelhas perdidas da casa de Israel”. Esta interpretação “restritiva” da missão explica-se a partir da forma como o cristianismo se expandiu em termos geográficos: primeiro, pela Palestina; e, depois fora das fronteiras da Palestina. Também terá a ver com as tensões existentes na comunidade de Mateus, onde alguns judeo-cristãos tinham dificuldade em aceitar que o Evangelho fosse anunciado aos pagãos. Mais tarde, Mateus deixará claro que, na segunda fase, o anúncio se destina também aos pagãos, porque a “casa de Israel” rejeitou Jesus e o “Reino.

Depois, Mateus aponta os sinais que acompanham o anúncio do Reino: a cura dos doentes, a ressurreição dos mortos, a expulsão dos demónios. O anúncio não deve constar só de palavras, mas também de gestos concretos que sejam sinal vivo da libertação que o “Reino” traz.

Por fim, surge apelo à gratuidade: os discípulos não partem em missão a pensar em dividendos pessoais ou em satisfazer interesses egoístas. A expressão “recebestes de graça, dai de graça” convida a fazer da própria vida um dom gratuito ao Reino, sem esperar qualquer paga.

Em todo o discurso, a missão dos discípulos aparece como o prolongamento da missão de Jesus. O anúncio confiado aos discípulos é o anúncio que Jesus fazia (o Reino); os gestos que os discípulos são convidados a fazer para anunciar o Reino são os que Jesus fez; os destinatários da mensagem de Jesus são os da mensagem dos discípulos. Ora, ao apresentar a missão dos discípulos em paralelo e em absoluta continuidade com a missão de Jesus, Jesus convida a Igreja (os discípulos) a continuar, na História, a obra libertadora que Ele iniciou em prol do homem.

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Na 2.ª leitura (Rm. 5,6-11), o Apóstolo Paulo, na maturidade dos seus anos de missão, apresenta à comunidade cristã de Roma a síntese da sua Teologia. Aquela comunidade possuía certas divisões por ser constituída de cristãos vindos tanto do judaísmo como do paganismo e que possuíam visões diferentes sobre a lei de Moisés e sobre a salvação. O Apóstolo recorda-lhes que o essencial da fé e da salvação é a pessoa de Jesus Cristo. Toda a humanidade pecou e foi destituída da graça, mas Deus, em sua benevolência, dignou-Se resgatar-nos através do seu Filho. Cabe à humanidade aceitar a oferta de Jesus através da vivência eclesial da fé.

Para Paulo, a comunidade dos discípulos é o sinal inegável do amor de Deus. E este amor jamais deverá parar de causar encanto e espanto no coração humano. Deus aceitou morrer por nós, quando ainda estávamos mergulhados nas mazelas do mal e do pecado. É um amor inigualável que subverte os princípios da racionalidade.

A missão da comunidade cristã não é discutir quem deve ser salvo ou como deve ser salvo, mas dar testemunho deste amor incomensurável cujo ápice é apresentado na loucura da Cruz.

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Estamos permanentemente em missão – na praça pública ou na discrição das nossas vidas apagadas, numa condição hierárquica ou na condição de Povo de Deus, mas sempre em condição discipular, profética, sacerdotal, apostólica, missionária e peregrina.

2023.06.19 – Louro de Carvalho

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