quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Culpa morre solteira, viúva ou divorciada?

Um carvalho, considerado plátano até à hora da sua morte (não é a mesma árvore), caiu a 15 de agosto, por volta das 12 horas, no Largo da Fonte, no centro da freguesia do Monte, durante a festa popular e as celebrações religiosas em honra da padroeira do arquipélago, Nossa Senhora do Monte – evento que significa a maior romaria da Madeira (dois dias: 14 e 15 de agosto), este ano engrossada com a leva de emigrados na Venezuela acabados de regressar. O seu Governo apresentou condolências à Madeira e ao povo português por este acontecimento trágico.
O facto tão evidente suscita um conjunto de contradições em torno do que se pode chamar temeridade popular, burocracia excessiva na administração e alijamento de responsabilidades.
Um ano depois dos incêndios que afetaram a Ilha da Madeira e que ditaram a supressão da festa, a cidade do Funchal voltou a ser palco de tragédia. Com efeito, perto do meio-dia do feriado e dia santo, pouco antes de começar a procissão em honra da padroeira da ilha, uma árvore de grandes dimensões caiu em cima dum aglomerado de pessoas, o que provocou a morte de 13 pessoas (a 10 delas no local) e ferimentos a outras 49.
É a principal festa cristã e o maior arraial da Madeira, ao qual se deslocam todos os anos milhares de pessoas, entre locais, emigrantes e turistas. Estima-se que se encontrava no local, quando decorreu o acidente, uma centena de pessoas.
A árvore caiu justamente no local onde usualmente as pessoas compram velas para cumprir promessas ou fazer pedidos. Vários vendedores viram o desastre do interior das suas barracas, descrevendo os minutos de pânico como “o fim do mundo”. No momento em que a árvore caiu, a festa estava a ser transmitida pelo Facebook e o vídeo passou a circular na Internet.
O Conselho do Governo Regional decretou três dias de luto regional (a 16, 17 e 18), anunciando que “a bandeira da região deve ser colocada a meia haste em todos os serviços públicos regionais e nas entidades do setor público empresarial da Região Autónoma da Madeira”.
O Presidente da República voou até à Madeira num Falcon da Gorça Aérea, partindo de Faro, em cuja zona estava de férias, e chegou ao Funchal pouco depois das 19 horas para dar “um abraço muito grande, muito amigo, de conforto pessoal e comunitário”, repetindo o que fizera há um ano, na altura dos grandes fogos, em que foi “dar um abraço de Portugal à Madeira”.
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O número oficial é de 13 mortos e 49 feridos. Mas o número certo pode ser diferente, dadas as dúvidas suscitadas ao longo da tarde do dia 15. O primeiro doente chegou ao hospital às 12,19 horas. Os feridos deram entrada até às 13, 08 horas, uma hora depois de terem sido acionados os meios para o Largo da Fonte.
Cerca das 16,30 horas, o Secretário Regional da Saúde com a tutela da Proteção Civil, apontara dois números: 12 mortos e 50 feridos. Três horas depois, o Governo Regional, após a reunião extraordinária do Conselho do Governo, anunciou o aumento do número de mortos para 13, sendo 49 o de feridos. Destes, há 12 pessoas em estado considerado grave: 4 crianças e 8 adultos. Um dos feridos graves foi levado para o bloco operatório, às 14,30 horas com traumatismo cranioencefálico. E dois foram submetidos a uma cirurgia mais tarde. Um homem e uma mulher morreram nas urgências e uma criança chegara já cadáver ao hospital Dr. Nélio de Mendonça, no Funchal, devido à gravidade dos ferimentos. Entre as vítimas, há duas mulheres estrangeiras. A divulgação do número de mortes vinha acompanhada de informação incerta de que havia estrangeiros entre as vítimas, o que não era de estranhar, pois o Monte é um local turístico, conhecido como “a Sintra madeirense”.
Às primeiras horas, não estava confirmado o número de estrangeiros entre as vítimas. A confirmação chegou ao início da manhã do dia 16: “entre as vítimas mortais estão duas mulheres estrangeiras, de nacionalidades húngara e francesa”. A confirmação dos feridos entrados no hospital veio no dia seguinte, tendo o porta-voz do hospital dito que das 52 vítimas que deram entrada, 5 eram de nacionalidade estrangeira, estando 4 em estado grave.
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Perante os factos, a que se acrescentam informações contraditórias sobre os antecedentes, o Ministério Público (MP) decidiu instaurar inquérito para apuramento da verdade dos factos e as responsabilidades, que Marcelo se recusou a comentar, aduzindo ser este o momento de dor e de tratamento das vítimas e acompanhamento dos familiares.
Sobre o móbil da tragédia, surgiu a maior confusão do dia: De que árvore se estava afinal a falar? As informações iniciais referiam um plátano “de grande porte” com cerca de 200 anos. Porém, nas suas primeiras declarações à comunicação social depois do acidente, o Presidente da Câmara do Funchal desfez o equívoco: era um carvalho, com cerca de 200 anos e que caiu pela raiz. Segundo o autarca, a árvore “tinha a copa verde e saudável, não apresentando qualquer anomalia”. Paulo Cafôfo garantia que nunca tinha dado entrada nos serviços do município qualquer queixa com vista limpeza ou abate daquela árvore. E aqui se evidenciam as divergências. A Junta de Freguesia do Monte garante que sim. E alguns particulares também afirmam ter alertado a Junta e a Câmara para a iminência de perigo.
Segundo alguns observadores, apesar de as informações serem contraditórias, tanto a Câmara como a Junta podem ter razão, estando a referir-se a coisas diferentes. Na verdade, a Junta de Freguesia tem insistido com a Câmara para que resolva o problema dos plátanos no Largo da Fonte que, segundo a Presidente, não são desbastados “há muito tempo”. E isso consta dum ofício de 5 de julho deste ano, o que já fora advertido em janeiro de 2014 e em março de 2016.
Mas a Câmara insiste em que o historial problemático dos plátanos não tem nada a ver com o carvalho que estava “aparentemente saudável”. No ofício de 5 de julho pp., a Presidente da Junta manifestava preocupação com os “munícipes e com o elevado número de turistas que diariamente nos visitam” e com isso solicitava “uma vez mais (…) o corte/poda, dos plátanos existentes, desde o Largo da Fonte até ao Largo das Babosas”. Maria Idalina Fernandes da Silva lembra que já referira este assunto a 31 de janeiro de 2014 e a 17 de março de 2016, aí partilhando a preocupação com o facto de em agosto se iniciarem as festas de Nossa Senhora do Monte, “período no qual se concentram centenas de pessoas, na área em referência”. A isto a Câmara respondeu, por ofício chegado à Junta de Freguesia a 31 de julho pp:
“Referente ao assunto em epígrafe, informo V. Exa. que os plátanos no Largo da Fonte, caso se justifique, irão ser intervencionados oportunamente”.
Mais tarde, Paulo Cafôfo viria a dizer que não tem faltado fiscalização, peritagem e equipas de limpeza no local.
Mas as queixas vêm de trás. Segundo António Mendonça, morador do Largo da Fonte, “houve uma comunicação à vereação anterior [de Miguel Albuquerque], à atual [de Paulo Cafôfo] e notificação judicial”. Diz este morador que “foram notificados para virem proceder ao corte desta árvore e da outra que estava atrás”, mas “nada fizeram enquanto estiveram no pelouro”. Os avisos vêm de “há 14 anos” e este munícipe insistira por duas vezes este ano. Segundo ele, as respostas da autarquia do Funchal não foram satisfatórias. De Albuquerque, autarca entre 1994 e 2013, a resposta terá sido que “é natural que caiam coisas das árvores”. E de Cafôfo, eleito em 2013, terá sido dito que “as árvores estavam de boa saúde”.
Segundo o Presidente da Câmara, é preciso fazer a distinção entre uma coisa e outra: a queda do carvalho no Largo da Fonte “não teve nada a ver com as queixas dos plátanos”.
Os argumentos de Cafôfo, que não apareceu na 1.ª conferência de imprensa ao lado do Presidente do Governo Regional e do responsável pela Proteção Civil, mas que viria depois a falar três vezes à comunicação social durante a noite do dia 15, são:
O carvalho nunca esteve sinalizado como estando em perigo de queda e nunca deu entrada qualquer queixa com vista à sua limpeza ou abate. A “copa era verde e aparentava ser saudável”. Não estava no largo da Fonte, mas numa encosta sobranceira, em terreno privado, pertencente à paróquia da Nossa Senhora do Monte.
Nos últimos anos, a Câmara procedeu à limpeza de todos os plátanos que existem naquela zona: “Em fevereiro de 2016 levamos a cabo uma grande intervenção de limpeza nos plátanos daquele largo e este ano, em março, voltamos a fazer uma extensa operação de limpeza de galhos de árvores. Desde 2014 a autarquia procedeu ao abate de 11 árvores na freguesia do Monte que apresentavam problemas estruturais”.
O “carvalho não estava amarrado por cabos”, como testemunhas descreveram. O autarca explicou que a árvore que estava amarrada com cabos de aço era, sim, um plátano que, em 2007, abriu uma fissura. “Para evitar que fosse abatida, foi amarrada a outras árvores, mas não ao carvalho que caiu esta tarde”.
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A situação não é inédita ali. Há 5 meses houve um caso semelhante, mas sem vítimas mortais ou feridos. A 13 de março deste ano, dia de ventos fortes na Madeira, caiu naquele largo um galho de grande porte, que teria 12 metros de comprimento e 30 centímetros de diâmetro. Há uns 30 anos, caiu uma árvore no Café do Parque e, há cerca de 14, caiu um galho que destruiu parte da varanda. Em agosto passado, caiu outro galho dentro de casa. E António Mendonça, que insistiu nas queixas, ironizava amargamente:
“O cúmulo dos cúmulos é que há aqui uma árvore, que estava na iminência de cair, mas que foi presa por dois cabos de aço, que correm o risco de rebentar e, então sim, se isso acontecer, poderá resultar numa tragédia se apanhar alguém”.
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Após as exéquias (e luto) pelas vítimas e cura de feridos, devem-se os esclarecimentos dos factos e o apuramento de responsabilidades. A autarquia diz que empresa especializada fará a peritagem para esclarecer o que originou a queda da árvore a partir já do dia 16, em parceria com o Instituto Superior de Agronomia. Entretanto, o MP instaurou um inquérito para averiguar as causas e as responsabilidades, algo a que está obrigado por se tratar de acidente com vítimas mortais. Até agora, ninguém assume responsabilidades. O Presidente do Governo Regional da Madeira, Miguel Albuquerque, do PSD, atira parte das culpas para a autarquia, liderada por Paulo Cafôfo, eleito numa coligação apoiada pelo PS, alegando: 
“Eu, como presidente do governo, assumo as minhas responsabilidades. Quem tem outras de jurisdição tem as suas.”.
E, esquecido das responsabilidades do tempo de autarca, acrescentou que agora “temos de nos concentrar em apoiar os familiares das vítimas”. Neste aspeto, alinhou-se com o Presidente da República, que referiu, ao ser questionado sobre a abertura do inquérito pelo MP:
“É tempo de dor e de olhar pelos que ficaram. […] Chegará depois o momento das responsabilidades. […] O Presidente da República está a traduzir a solidariedade clara, total e incondicional dos portugueses. Essa questão tem o seu momento e tem as entidades competentes para o efeito. Este ainda não é o momento. Agora estão a ser atendidos os feridos e a ser consoladas as famílias do que nos deixaram.”.
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Pelos vistos, a confusão da natureza das árvores – a caída e a amarrada – dá jeito para o alijamento das responsabilidades. E uma boa ajuda provém do facto de a árvore estar num terreno da paróquia. É certo que é privado, mas é de acesso ao público e de utilização coletiva, não podendo as autoridades políticas pôr-se de fora. A este respeito, recordo-me de que as autoridades quiseram, em tempos, pedir-me responsabilidades por alegadamente ter mandado abater umas árvores que estavam em terreno duma Fábrica de Igreja Paroquial.  
E Miguel Albuquerque não pode esquecer-se de que o problema das árvores lhe fora colocado quando ainda era autarca. E Cafôfo – o professor – não pode baralhar-se tanto em gestão autárquica. Será o MP capaz de deslindar as responsabilidades no meio destas confusões ou a culpa – que habitualmente morre solteira – vai aqui ficar órfã, viúva, desconhecida, ignorada, incógnita ou divorciada (neste caso, por mútuo consentimento)? E que dizer da burocracia que se perde em ofícios e em fazer que se faz obra?! E vigiam-se os plátanos ignorando a saúde das árvores vizinhas…
Finalmente, pergunto-me se não estaremos perante encapotada temeridade popular de quem não quer em caso algum o abate de árvores centenárias ou de certa afeição coletiva? Lembro-me da carvalha do Mosteiro, de Castro Daire, que caiu por si; da população de Moncorvo, que não deixava mexer na parede da igreja matriz a ameaçar ruína por mor de se lá ter alojado uma figueira; da população de Vila Cova à Coelheira, Vila Nova de Paiva, que reagiu muito mal contra o pároco de então por haver mandado diminuir as dimensões do pendão do Senhor do Calvário, cujo motivo de veneração era apenas a sigla SPQR (Senatus Populusque Romanus – o Senado e o Povo Romano. Que tem a ver com o Senhor do Calvário?); e, agora, a 13 de agosto, em Lousada, andor de mais de 22 metros, caído quase no início da procissão, ferindo 7 pessoas?
Porquê estas temeridades? De quem a culpa? Da caturrice? De se ter o maior objeto do mundo desta ou daquela espécie? Onde está o poder pedagógico e/ou moderador das autoridades? Onde está o princípio, Primeiro as pessoas ou a lei da prioridade da salvação das almas?

2017.08.16 – Louro de Carvalho        

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