quarta-feira, 9 de agosto de 2017

O Senhor Bom Jesus Milagroso no Pico

No passado dia 4 de agosto, a agência Ecclesia, citando o portal diocesano ‘Igreja Açores’, dava a notícia de que Dom António Francisco dos Santos, Bispo do Porto, chegara aos Açores para presidir à festa do Senhor Bom Jesus Milagroso, na ilha do Pico, e que o prelado iria proferir duas homilias, no sábado (dia 5) e no domingo (dia 6). Mais referia que “esta é a segunda vez que o Bispo de Porto celebra num santuário da Diocese de Angra, depois de já ter presidido às festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres, em Ponta Delgada.
O mesmo portal diocesano estabelecia a íntima ligação, este ano, das festas do Senhor Bom Jesus Milagroso ao Centenário das Aparições de Nossa Senhora em Fátima, sendo, por isso, que a imagem de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, padroeira da comunidade das Pontas Negras, na paróquia de Santa Cruz das Ribeiras, concelho das Lajes do Pico, foi emprestada ao Santuário e sairá com a imagem do Senhor Bom Jesus na procissão solene de domingo, dia 6.
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A curiosidade em torno da notícia levou-me a tentar perceber o que se passa com esta invocação do Senhor Jesus Cristo.
Segundo o que transpira na imprensa regional, as Festas do Senhor Bom Jesus Milagroso no Pico remontam ao ano de 1862 (há 155 anos), quando Francisco Ferreira Goulart trouxe do Brasil uma imagem do Senhor Bom Jesus, cópia fiel das que lá se veneram. Esta devoção a Jesus Cristo já existia nos Açores e mesmo no Pico, venerando-se imagens do Senhor Crucificado, como ainda se pode ver nos inventários das Igrejas Paroquiais. Porém, foi a partir da chegada da imagem a São Mateus do Pico que mais se intensificou a devoção ao Ecce Homo.    
A imagem do Bom Jesus é a figuração iconográfica no quadro da Paixão em que o Senhor – desnudado, flagelado, semicoberto com um manto (um farrapo de púrpura), de coroa de espinhos na cabeça e de cana na mão a servir de cetro – foi exposto, para comoção do povo, na varanda de Pilatos pelo próprio procurador romano. Imagem recorrente no norte do País, quando ligada à tradicional procissão da noite de quinta-feira santa, designa-se pelo Senhor Ecce-Homo; quando não, pelo Senhor da Cana Verde, por ser a cana o cetro de achincalhamento numa das suas mãos armadas e por quase sempre ser uma peça artesanal da cor verde. Não se denomina simplesmente de Bom Jesus, por esta invocação nas ditas regiões nortenhas geralmente se manter vinculada à imagem de Cristo crucificado como sucede com o Bom Jesus de Braga.
A representação do Cristo doloroso (Senhor Ecce-Homo ou Senhor da Cana Verde) foi levada pelos emigrantes nortenhos para o Brasil, onde se difundiu e encontrou extraordinária veneração, mas assumindo outro título: o de Senhor Bom Jesus. Por ela se viu tão especial e profundamente tocado, na vila costeira de Iguape, Estado de São Paulo, há mais de 150 anos, um emigrante natural da freguesia de São Mateus do Pico, Francisco Ferreira Goulart, que, ao regressar, adquiriu e trouxe consigo a maravilhosa escultura do Senhor Bom Jesus para a sua igreja batismal, a igreja da freguesia onde nascera e se criara.
Assim, a devoção do Senhor Bom Jesus, que seguiu em diáspora coletiva do norte de Portugal para o Brasil, viria, em retorno individual, do Brasil para esta ilha dos Açores. E a devoção veio aportar ao Pico “para se radicar e atingir enorme vigor, mas igualmente para acompanhar outra diáspora que ocorria de muitos deste povo, agora para os Estados Unidos da América. Na primeira igreja que os açorianos ergueram no destino, a de São João Batista, em New Bedford, logo se entronizou no altar-mor, à direita do orago, a imagem do Senhor Bom Jesus, como se pode verificar numa fotografia aproximadamente de 1875. Também, na Inglaterra, se dedicou ao Senhor Bom Jesus a igreja portuguesa de Newport e um altar na igreja de Nossa Senhora de Lurdes de Taunton. E, na Califórnia, com mais presença de imigrantes açorianos oriundos do grupo central e ocidental do arquipélago, é maior o número de sítios onde se estabeleceu a devoção e o culto do Senhor Bom Jesus – pelo menos estes: San Diego (igreja de Santa Inês); Hanford (igreja de Santa Brígida); Rivardale (igreja de Santa Ana); Justine (igreja do Divino Espírito Santo); Turlock (igreja do Sagrado Coração de Jesus); São José (igreja das Cinco Chagas); e Novato (capela do salão da irmandade do Divino Espírito Santo). No Canadá, na zona de Ontário, existe um centro do culto ao Senhor Bom Jesus: em Oakville (igreja de São José).
É ainda de referir que este culto e devoção ao Senhor Bom Jesus, sempre com réplicas da sua imagem, aliás como em todos os casos anteriores, se difundiram nos Açores para 2 paróquias do Pico (Calheta de Nesquim e Criação Velha); 2 do Faial (Angústias e Cedros); 3 de São Jorge (Urzelina, Calheta e Santo Antão); uma da Terceira (São Mateus); e uma de São Miguel (Pedreira do Nordeste). Por outro lado, abundantes e variados testemunhos vivos vêm no Livro do Tombo da paróquia de São Mateus e dos irmãos emigrantes (a traduzir e a documentar o que é para eles o Senhor Bom Jesus). A título de exemplo, se evoca o do jornalista e escritor João Brum, vulto prestigioso da imprensa luso-americana na Califórnia, que interpreta fielmente o pensar e sentir da memória de muitos outros:
“Por toda a ilha e ao redor da terra picoense (ou picaroto) tem o céu, a religião e a oração sintetizados na imagem, na figura soleníssima, sofredora e máscula do Senhor Bom Jesus do Pico... Todos um dia passaram por São Mateus em caminhadas de penitência e de gratidão. O Bom Jesus os levou por terra dentro e pelo mar fora e por sua vez eles O trazem para as terras de emigração e assim a sua imagem reflete (apenas por coincidência?) a estatura do homem do Pico, da sua verticalidade no gesto e na palavra, no sucesso e na adversidade, na dor, no passo, no ato de viver e na própria morte. O homem do Pico que se preza de o ser onde quer que esteja tem, na súmula de todos estes aspetos, o ar imponente e esbelto que o Rei da sua ilha – o Bom Jesus – apresenta... Assim mesmo: com espinhos e a corda e cetro e as vestes do escárnio. Mas de cara alevantada para a terra e para o mar – para a vida.”.
Há, pois, uma estreita correlação entre romeiro e emigrante: ambos fazem a sua romagem peregrina e ambos carregam com seus espinhos. Bom Jesus do Pico, inteiro e pujante, com o peso de tudo, mas direito. Deus e Homem, irmão bom de quantos o trouxeram para as Américas... (cf PUBLIÇOR (1.ª Edição 2000), “A Devoção ao Senhor Bom Jesus Milagroso nos Vaivéns da Emigração”, Concelho da Madalena; e http://www.jfsmateus.com/sr-bom-jesus-milagroso/).
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A ilha do Pico marcou, no passado domingo, dia 6, o ponto alto da celebração das festas em honra do Senhor Bom Jesus Milagroso Foram, nesse dia, celebradas três Eucaristias, sendo a Missa Solene, das 16 horas, presidida por Dom António Francisco dos Santos, Bispo do Porto.
São as maiores festas religiosas da ilha. Todos os anos, centenas e mesmo milhares de peregrinos fazem a caminhada até ao Santuário, na freguesia de São Mateus, pois o aparecimento da imagem do Senhor Bom Jesus Milagroso, na igreja paroquial de São Mateus do concelho da Madalena, pela década de 60 do século XIX, desencadeou uma invulgar atração e uma forte piedade que contagiava as almas.
O templo converteu-se num polo para onde convergia e donde irradiava uma religiosidade popular sem paralelo não só na ilha como nas circunvizinhanças e que viria a determinar a sua elevação à categoria de Santuário Diocesano. Dele se diz e escreve: o Bom Jesus do Pico, mas também, a partir daquela manifestação do sobrenatural, um Pico do Bom Jesus: um Pico novo e diverso para tantos da sua gente, na linha dos valores humanos, cristãos e eclesiais dos mais altos. Será talvez a devoção que mais andou nos vaivéns da emigração portuguesa. E, de há um século a esta parte, a devoção vem atraindo àquele já célebre santuário açoriano multidão sempre crescente de incontáveis milhares de fiéis, sobretudo do arquipélago e da América, que ali vêm edificando imortal monumento de fé sincera de ação de graças e de piedade penitente.
E os cronistas advertem para o facto de os modernos meios de transporte não terem sido um obstáculo ao dado sacrificial, à manifestação de ação de graças, ao arrependimento pelos erros cometidos ou à apresentação da súplica pelos favores necessários a conceder do alto.  
O espetáculo cultual e devocional é, por norma, tão imponente, respeitável e impressionante, que se não pode ver sem lágrimas nos olhos e sem abalos do coração. O povo prestou sempre homenagem a esta sincera piedade. Na memória dos mais velhos está bem viva a expressão da caridade fraterna em que os autóctones envolviam os romeiros de longe, postando-se à beira das estradas por onde eles passavam, com as familiares talhas de água e o tradicional púcaro de barro, para dar de beber a quem tem sede. Outra caraterística desta devoção é a constância, que mostra bem o fundamento em que se apoia: há promessas por toda a vida, de herança de antepassados, de legados para os vindouros. É a consistente atitude humana a corresponder à contínua ação divina. Com efeito, as graças extraordinárias recebidas ali ou à distância (é o mesmo) são a mais concludente prova da constância do amoroso diálogo humano-divino que se estende de geração em geração, de século em século, como um eco de monte a monte, de serra a serra, vale a vale, de monte ao vale e do vale ao monte.
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As festas do Bom Jesus Milagroso iniciaram-se no dia 27 de julho e prolongaram-se até ao dia 7 de agosto. A transladação da Imagem pelo exterior da Igreja, para o trono do Santuário, marcou o arranque das festas seguida de Eucaristia Solene de abertura do novenário cuja ação cultual se realizou às 19,30 horas e se replicou diariamente ao dia 4. Durante o novenário o Santuário esteve aberto até à meia-noite.
O tema das festas “Fazei o que Ele vos disser” corresponde ao pedido da Mãe de Jesus aos serventes nas bodas de Caná, quando deu conta da falta de vinho e avisou Jesus (vd Jo 2,1-11).
Além do que já foi referido, o programa incluiu: no dia 1, pelas 20,30 horas, a abertura da Exposição fotográfica de etnografia “Passado – lição do futuro”, organizada pelo Jardim de Infância de São Caetano/São Mateus no Salão Paroquial; no dia 2, pelas 21,30 horas, “Folga de Chamarritas”, abrilhantada pelo Grupo Folclórico e Etnográfico Ilha Morena da Casa do Povo de São Mateus, no Largo do Passo; no dia 3, Noite de fados, na casa do povo de são Mateus; no dia 4, pelas 21 horas, desfile de filarmónicas, com a Lira de São Mateus e Madalense, e, às 24 horas, atuação do grupo Ronda das Nove; no dia 5, pelas 10 horas, a IX Regata de Botes BaleeirosTerra do Bom Jesus Milagroso”, no Porto de São Mateus, às 18 horas, vigília, seguida de arrematação de gado, desfile de Filarmónicas, com a Recreio Santamarense e União e Progresso Madalense, e, às 24 horas, orquestra da Filarmónica Lira Madalense; no dia 6, domingo e dia da Transfiguração do Senhor, celebração solene da Eucaristia, pelas 16 horas, e desfile de filarmónicas e solene Procissão, às 18 horas; e, no dia 7, o dia do encerramento, realizou-se, às 19,30 horas, a celebração da Eucaristia, com a Transladação da Imagem do Senhor Bom Jesus Milagroso para a Sua Capela e, à noite, foi a atuação da Filarmónica Lira Fraternal Calhetense e desfile da Marcha Oficial das Festas de Santa Maria Madalena de 2017, organizada pela Casa do Povo de São Mateus acompanhada pela Filarmónica Lira de São Mateus.
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Mais do que os “milagres” (entendida aqui a palavra “milagre” no sentido, recomendado pelos cronistas eclesiásticos, de graça ou favor do Alto) – muitos, como atestava já o Livro do Tombo da paróquia de São Mateus, organizado pelo Padre Joaquim Vieira da Rosa e de que hoje continuam a dar testemunho muitos e muitas dos(as) agraciados(as) – são de sublinhar dois aspetos importantes: o sentido de união e acolhimento da família açoriana, que labuta ali ou na diáspora; e a atenção prestada ao dado psicossocial do sofrimento de Jesus – porque se afirmou rei, embora não deste mundo, os algozes chacotearam-no com os simulacros grosseiros das insígnias reais e, por escárnio, ajoelhavam e chamam-lhe rei, em alternativa às bofetadas e aos insultos. Era um rei escarnecido e que deu o título-pretexto para a crucifixão: Jesus Nazareno Rei dos Judeus (letreiro escrito no topo da cruz em hebraico, grego e latim).
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“Pilatos entrou de novo no edifício da sede, chamou Jesus e perguntou-lhe: ‘Tu és rei dos judeus?’. Respondeu-lhe Jesus: ‘Tu perguntas isso por ti mesmo, ou porque outros to disseram de mim?’. Pilatos replicou: ‘Serei eu, porventura, judeu? A tua gente e os sumos sacerdotes é que te entregaram a mim! Que fizeste?’. Jesus respondeu: ‘A minha realeza não é deste mundo; se a minha realeza fosse deste mundo, os meus guardas teriam lutado para que Eu não fosse entregue às autoridades judaicas; portanto, o meu reino não é de cá’. Disse-lhe Pilatos: ‘Logo, Tu és rei!’. Respondeu-lhe Jesus: ‘É como dizes: Eu sou rei! Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz.’. Pilatos replicou-lhe: ‘Que é a verdade?’. Dito isto, foi ter de novo com os judeus e disse-lhes: ‘Não vejo nele nenhum crime. Mas é costume eu libertar-vos um preso na Páscoa. Quereis que vos solte o rei dos judeus?’. Eles puseram-se de novo a gritar, dizendo: ‘Esse não, mas sim Barrabás!’. Então, Pilatos mandou levar Jesus e flagelá-lo.
Depois, os soldados entrelaçaram uma coroa de espinhos, cravaram-lha na cabeça e cobriram-no com um manto de púrpura; e, aproximando-se dele, diziam-lhe: ‘Salve! Ó Rei dos judeus!’. E davam-lhe bofetadas. Pilatos saiu de novo e disse-lhes: ‘Vou trazê-lo cá fora para saberdes que eu não vejo nele nenhuma causa de condenação.’. Então, saiu Jesus com a coroa de espinhos e o manto de púrpura. Disse-lhes Pilatos: ‘Eis o Homem!’. (Jo 18,33-40; 19,1).
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“Os soldados do governador conduziram Jesus para o pretório e reuniram toda a coorte à volta dele. Despiram-no e envolveram-no com um manto escarlate. Tecendo uma coroa de espinhos, puseram-lha na cabeça, e uma cana na mão direita. Dobrando o joelho diante dele, escarneciam-no, dizendo: ‘Salve! Rei dos Judeus!’. E, cuspindo-lhe no rosto, agarravam na cana e batiam-lhe na cabeça. Depois de o terem escarnecido, tiraram-lhe o manto, vestiram-lhe as suas roupas e levaram-no para ser crucificado.” (Mt 27,27-31).
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É importante celebrar as festas populares tendo em mente a mensagem evangélica e proclamando-a para reflexão e mudança de vida, como é imperioso ler a Bíblia com vista ao crescimento da fé viva das pessoas e dos povos. É urgente respirar evangelho e respirar povo!

2017.08.09 – Louro de Carvalho

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