Sempre se ensinou e aprendeu que Deus é a fonte da vida, dos
milagres e do perdão. Por consequência é Ele o alvo do culto dos crentes, o
objeto da nossa adoração. Entretanto, também sabemos que, pelo mistério da
Encarnação, Deus invisível se tornou visível em Jesus Cristo, Deus e Homem. Por
isso, Ele, que em Deus se tornou fonte de vida para todos os que nele creem,
operou e opera os prodígios que julga necessários ou convenientes para a
salvação dos homens, e também assume, qual rosto misericordioso do Pai, o poder
de perdoar. Sendo assim, torna-se, com e como o Pai no Espírito Santo, para a
Igreja, sua esposa, o objeto do culto em espírito e verdade, o alvo do culto
público e o móbil da adoração (latria) pessoal e
coletiva.
Não podemos também esquecer que a economia da Salvação se
estabelece e desenvolve no dinamismo da comunicação e da comunhão e que,
segundo o ensino da Escolástica, Deus costuma agir através das causas segundas
– o mesmo é dizer que entre Deus e os homens se interpõem inúmeras mediações,
apesar de que o único que merece o nome de verdadeiro mediador é Jesus Cristo.
Por outro lado, a Igreja, assente fundamentalmente em Cristo e visivelmente in Petro, que tem a missão de confirmar
os irmãos na fé, firma-se na comunhão dos homens – de cada um consigo próprio,
com Deus, com a Natureza e com os demais semelhantes seus – o que os leva a ser
o povo de crentes a penetrar, na unidade e na diversidade, na comunhão
intratrinitária, ensaiada e experienciada aqui e agora, mas realizada
plenamente nos últimos tempos. É até por isso que Deus faz tantos milagres
através dos seus santos.
***
Ora, se a Igreja se estabelece no mistério da comunhão dos
santos, é certo que entre estes – vivos e defuntos – há permeabilidade de bens
espirituais, sentido de pertença, diálogo, “oração”, caridade e, no caso dos
vivos, ajuda, partilha de bens materiais, solidariedade, confraternização.
Por isso, embora saiba que Maria não é deusa e que não se lhe
pode prestar o culto de latria (adoração) nem ela
pretende substituir o papel essencial de Cristo, não percebo por que se frisa
que não se reza à Virgem Maria, mas apenas por Maria, com Maria e como Maria.
A reflexão em contrário resulta da peça explicativa que os
Dehonianos prepararam para comentário às leituras da Solenidade da Assunção da
Virgem Santa Maria.
Na sua peça bíblico-litúrgica, referem que, “frequentemente, ouvimos
a expressão ‘rezar à Virgem Maria’”,
assegurando que “esta maneira de falar não é absolutamente exata, porque a
oração cristã dirige-se a Deus, ao Pai, ao Filho e ao Espírito: só Deus atende
a oração”.
E abonam em favor da sua tese que “os nossos irmãos
protestantes que, contrariamente ao que se pretende, por vezes, têm a mesma fé
que os católicos e os ortodoxos na Virgem Maria Mãe de Deus, recordam-nos que
Maria é e se diz ela própria a Serva do Senhor”.
É óbvio que rezar se sintetiza em “falar com Deus”. Porém, as
sínteses, embora elucidativas e verdadeiras, tornam-se pobres se forem
excludentes. Eu explico-me:
Se rezo, falo; mas, se falo, tenho que estar disponível para
ouvir. Caso contrário, enveredo por um aborrecido e improfícuo monólogo. Com
efeito, nem sempre sabemos o que havemos de pedir, pelo que tantas vezes tem o
Espírito Santo de vir em auxílio da nossa fraqueza e insciência e pôr-nos no
coração e na boca o que dizer. Por outro lado, como dizia Sólon, temos uma só
boca, mas dois ouvidos. E os padres espirituais, bem como os liturgistas,
dispõem-se a ensinar-nos a utilizar a Palavra de Deus para rezarmos. Por isso,
a escuta é exercício pertinente.
Então, temos de alargar o conceito de oração. Com efeito,
“orar” vem do verbo latino “orare”, derivado do nome “os, oris”, que significa
“boca” e que, por sua vez, deu origem ao nome “oratio, onis”, que significa
“oração, discurso”. Assim, “oratio” acaba por ser o exercício da boca. E rezar
passa por ser falar, mas, para apurar a fala, temos de ouvir e escutar, sendo
que a oração passa a diálogo. Mas com a boca também se beija, se come e bebe,
se suspira e respira, com o que pela boca entra para o coração e dele sai ou
entra para os pulmões e deles sai. Enfim, orar é fazer todo o exercício de boca
perante Deus. Fala-se-lhe, ouve-se para que Ele entre, beija-se Deus,
suspira-se por Ele e diante d’ Ele.
Bento XVI dizia aos jovens a 21 de agosto de 2005:
“A palavra latina para ‘adoração’ é ad-oratio contacto
boca a boca, beijo, abraço e, por conseguinte, fundamentalmente amor”.
Porém, no âmbito da ação de Deus através das causas segundas
e no quadro do mistério e do dinamismo da comunhão dos santos, este exercício
orante da boca implica falar com os outros – os vivos, mas também os santos que,
declarada ou presumivelmente, estão no céu, entre os quais tem preponderante
lugar a Virgem Santa Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, mãe de cada um e da
Igreja, de que é protótipo e membro exemplar. Nestes termos, orar implica o
compromisso de falar aos irmãos e ouvi-los; beijá-los, suspirar e respirar com
eles e por eles; receber os seus beijos; sentir os suspiros e respiração;
partilhar das suas angústias e alegrias e partilhar com eles as nossas; aceitar
comer e beber com eles à mesa dos lares, dos convívios e da Eucaristia.
Aliás, os padres espirituais ensinaram, por analogia, a
profundidade da oração mental, até como mais perfeita que a oração bocal.
Porque é que nós havemos de restringir o conceito de oração e não alargá-lo a
todo o modo ortodoxo de expressão e alimentação da fé? Só temos um Deus, mas
temos muitos irmãos e irmãs que merecem o nosso louvor, dedicação e
compromisso. Ora só se pode comprometer quem sabe pedir, comunicar, partilhar,
falar e ouvir. Seria ridículo que nos dispuséssemos a falar de tudo com os
vizinhos, mas, quanto a coisas espirituais, desviar-nos para falar só com Deus!
Por isso, rezo a Maria com toda a legitimidade, sabendo,
porém que não é Ela a entidade única, nem a principal, a quem me devo dirigir
em oração, mas, sim, Deus e o seu Cristo. Aliás, a piedade católica e a
liturgia ensinam-nos que nada para em Maria e nada vem de Maria como fonte,
mas, por meio dela, tudo podemos encaminhar para Jesus (Per Mariam ad Iesum) e, por Ela, tudo podemos receber.
Basta que foi Ela que, por vontade divina, deu à luz o Autor da Vida, é Ela que
nos mostra Jesus e nos dá os principais recados: Fazei o que Ele vos disser.
Mas é preciso que nos habituemos a rezar por Maria, ou melhor através
de Maria, pois Ela é sobretudo intercessora, medianeira e mensageira. Por
isso, fica bem que rezemos para que Ela reze por nós – “Rogai por nós pecadores agora e na hora da nossa morte!” – tal como
pedimos aos outros que rezem por nós. Ela é nossa “advogada” e diz-nos: “Fazei o que Ele vos disser!”. E é
testemunha dos nossos dramas e alegrias junto de Deus e profeta de Deus junto
de nós.
Também é necessário rezar
com Maria. Ela permaneceu com os apóstolos no cenáculo em oração esperando
o Pentecostes. Em Lourdes, Ela rezava o rosário com Bernardette Soubirous,
escutando a Ave Maria, sem mexer os lábios, mas proferindo as palavras do Pai Nosso e do Gloria ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo. É que Ela é Mãe e
companheira. Ela está ao nosso lado para nos levar na oração como a mãe que sustenta
a palavra balbuciante do seu filho. Na glória de Deus, ela prossegue a missão
que Jesus lhe confiou sobre a Cruz: “Eis
o teu Filho!” Rezar com Maria
postula que, mais do que ajoelhar diante dela, ajoelhemos ao seu lado para nos
juntarmos à sua oração. Ela acompanha-nos e guia-nos na nossa caminhada junto
de Deus.
Por outro lado, temos de aprender a rezar como Maria e exercitar junto de Maria os caminhos da oração.
Matriculados na escola daquela que acreditou que havia de cumprir-se quanto lhe
foi dito da parte do Senhor e “guardava e
meditava no seu coração” os mistérios do nascimento e da infância de Jesus,
meditamos o Evangelho e, à luz do Espírito Santo, avançamos nos caminhos da vida
e da verdade. A nossa oração, que somos tentados em fazer quase só na
modalidade de prece, torna-se ação de graças na ressonância do Magnificat. Com razão, ela é considerada
a mestra da aprendizagem, a primeira dos discípulos e a Rainha dos Apóstolos, a
Senhora e Mestra da Oração. Pondo os nossos passos ao ritmo dos passos de Maria,
diremos com Ela e como Ela na confiança: “Que
tudo seja feito segundo a tua Palavra, Senhor!”.
***
Em abono da oração a Maria, apraz-me referir:
- O facto de Maria se considerar a serva do Senhor não postula, por si, que tenhamos de a considerar
apenas como serva. Também os apóstolos eram discípulos e servos, mas o Senhor
passou a chamá-los “amigos”. Depois, Ela não é o caminho – o caminho é Jesus Cristo
– mas Ela aponta o caminho. Não é a vida, mas traz-nos a Vida. Não é a Verdade,
mas é verdadeira e traz-nos a autêntica Verdade. Ela é serva, porque
disponível, mas é inteiramente livre.
- Isabel, quando ouviu a saudação de Maria, não se pôs a
rezar a Deus, mas a Maria, embora sem esquecer o fundamental: “Bendita é tu entre as mulheres e bendito é o
fruto do teu ventre!”.
- O cântico de Maria não
foi dirigido a Deus, mas proclamado perante quem estava presente. É que a
comunhão no invisível faz-se entre visíveis. E Maria descreve o programa que
Deus tinha começado a realizar desde o princípio, que prosseguiu nela e que se
cumpre agora na Igreja, pelos tempos fora. Pela sua visita na Judeia, Maria levava
Jesus pelos caminhos da terra. Pela Dormição e Assunção, Jesus que leva a Mãe,
pelos caminhos celestes, para o templo eterno. Com Maria, proclamamos a grandiosa
obra de Deus, que convoca toda a humanidade a juntar-se a Ele pelo caminho da
ressurreição. Em Maria, Ele consumou a sua obra. Por isso, com Ela, por Ela e
como Ela, proclamamos: “dispersou os
soberbos, exaltou os humildes”. E os humildes creem no cumprimento da
Palavra de Deus e põem-se a caminho, acolhem até ao mais íntimo do seu ser a Cristo,
a Vida nova, para o levarem ao nosso mundo, e Deus debruça-se sobre eles e
realiza neles as maiores maravilhas.
- Só não chamamos adoração (latria) ao culto a Maria (mas veneração especial ou hiperdulia) porque o culto não se esgota nela, como a santos (não proeminentes como Ela) rendemos a veneração (dulia).
***
É necessário que os exercícios de piedade com que
os fiéis exprimem a sua veneração para com a Mãe do Senhor, manifestem de modo
mais claro o lugar que ela ocupa na Igreja: depois de Cristo, o mais alto e o
mais perto de nós; um lugar que nos edifícios cultuais do Rito bizantino tem
sido expresso plasticamente de tal modo que, na própria disposição das
estruturas arquitetónicas e dos elementos iconográficos, na porta central da
iconóstase (biombo que separa a nave e o santuário), a
representação da Anunciação a Maria, e na abside, e da ‘Theotocos’ gloriosa,
resulta manifesto que, a partir do ‘fiat’ da humilde Serva do Senhor, a
humanidade inicia o retorno a Deus e que na glória da Toda-santa vê a meta da
sua caminhada. Assim, o simbolismo com que o edifício da igreja exprime o lugar
de Maria no mistério da Igreja encerra uma indicação fecunda e constitui um
auspício para que, por toda a parte, as várias formas de veneração à
bem-aventurada Virgem Maria se abram para perspetivas eclesiais. (Paulo VI, n.º
28 da exortação apostólica Marialis
Cultus, 2 de fevereiro de 1974).
2017.08.17
– Louro de Carvalho
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