A 1.ª página do Expresso do
dia 12 de agosto anuncia que “IGAI vai
deixar de investigar casos de racismo na polícia” e remete o
desenvolvimento do enunciado para a página 22. Nesta, Anabela Natário procede
ao desenvolvimento a que dá o título “Os
casos de discriminação na polícia”, precedido dum antetítulo:
“Queixas. Oito casos de
discriminação que foram, ou ainda estão a ser, investigados pela Inspeção-Geral
da Administração Interna”.
E, referindo que aqueles são os últimos que a IGAI está a
investigar “do princípio ao fim”, atesta que a nova lei, que estabelece o
“regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate a qualquer forma de
discriminação em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade,
ascendência e território de origem”, atribui a competência de instruir e
decidir processos ao Alto comissariado para s Migrações (ACM) e à Comissão para a
Igualdade e Contra a discriminação Racial (CICCD).
Entretanto, o MAI vem esclarecer, no Expresso on line, que a IGAI mantém competências no que toca a
processos disciplinares, através de nota do seguinte teor:
“A notícia hoje divulgada não
corresponde à verdade e induz o público em erro, na medida em que a Lei agora
promulgada em nada interfere com as competências da IGAI (Inspeção-Geral da
Administração Interna) em sede disciplinar das polícias sob tutela do MAI, nem
transfere para o ACM (Alto-Comissariado para as Migrações) qualquer competência
neste domínio.
O ACM continua a ter a competência em
sede de contraordenação relativamente aos ilícitos previstos naquela Lei, assim
como a IGAI continua a ter competência em sede disciplinar relativamente a
ilícitos dessa natureza.
O processo disciplinar é sempre
autónomo de procedimentos de outra natureza, sejam eles de natureza penal ou de
natureza contraordenacional.”.
Em resposta à posição do MAI, a jornalista Anabela Natário, presta
o seguinte esclarecimento:
“Os processos de contraordenação resultantes de queixas de
discriminação que antes eram instruídos pela IGAI passam a ser instruídos pelo
Alto-Comissariado para as Migrações que também irá decidir e avaliar a pena.
A nova lei, já promulgada pelo Presidência da República, determina,
no artigo 16.º, que ‘qualquer prática discriminatória por pessoa singular, nos
termos do artigo 4.º, constitui contraordenação punível com coima graduada
entre uma e dez vezes o valor do indexante dos apoios sociais, sem prejuízo da
eventual responsabilidade civil ou da aplicação de outra sanção que ao caso
couber.
No artigo 18.º, estabelece que “a abertura do processo de
contraordenação compete ao presidente da Comissão; a instrução do processo
compete ao ACM; e a decisão do processo, incluindo a aplicação das coimas e
sanções acessórias, compete à comissão permanente”.
Todos estes processos e seu desenrolar eram, até agora, da
competência da IGAI. Tal como se informa no artigo, no qual, inclusive se
mostra de que tipo de processos se está a falar, esta recebia a queixa vinda do
ACM ou recebida diretamente, instruía o processo, investigava e propunha uma
pena.
Outro tipo de queixas como, por exemplo, de agressões praticadas
pela polícia, continua a ser competência, obviamente, da IGAI. Aliás, isso é
dito no texto. À IGAI ficam reservados os casos considerados de grave violação
de direitos que podem ser considerados crime. A discriminação é apenas punida
com coimas.”.
***
Parece-me
que não faz sentido nem as afirmações da jornalista publicadas na edição
impressa no atinente à nova lei em si (o mesmo não digo em relação aos casos que desenvolve) nem a pressa com que o MAI veio
prestar o seu esclarecimento, aliás pouco esclarecedor. Obviamente que, desde
que haja novo ordenamento legal, a
fortiori com a criação duma comissão para tratamento dos casos contemplados
pela nova lei, há inexoravelmente alteração na atribuição de competências.
Por outro lado, no seu contraesclarecimento,
Anabela Natário refere que, no seu artigo, não ficaram negadas as competências
disciplinares da IGAI. Até diz que os casos em que haja “violação grave dos
deveres funcionais” por elementos das forças de segurança (e apenas esses) ficam para a IGAI. Porém,
convenhamos, o que salta à vista é a transferência de competências.
Depois,
a jornalista refere que a discriminação é apenas punida com coimas (mas isso seria no regime das
contraordenações),
quando um dos artigos que cita (artigo 16.º) prevê,
no seu n.º 7, a aplicação em simultâneo de penas acessórias:
“Em
função da gravidade da prática discriminatória e da culpa do arguido, podem ser
aplicadas, simultaneamente com as coimas, sanções acessórias nos termos do
regime geral do ilícito de mera ordenação social”, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, alterado pelos Decretos-Leis
n.ºs 356/89, de 17 de outubro, 244/95, de 14 de setembro, e 323/2001, de
17 de dezembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro”.
E o
artigo 15.º prevê, no seu n.º 1, que “a prática discriminatória, por ação ou
omissão, confere ao lesado o direito a
uma indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, a título de
responsabilidade civil extracontratual, nos termos gerais”, vindo os
números seguintes a clarificar os procedimentos.
***
A lei
ora promulgada tem por base uma proposta de lei do Governo, a “Proposta de Lei
n.º 61/XIII”, datada de 9 de fevereiro, que estava previsto entrar em vigor a 1
de julho pp. Porém, a AR só a aprovou em definitivo no dia 7 de julho (decreto 142/XIII, da AR) e a remeteu ao Presidente a 3 de
agosto, que de imediato a promulgou. Assim, entra em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao da sua
publicação.
Na exposição
de motivos da proposta, o Governo escora-se no art.º 13.º da CRP, que reconhece
o direito à igualdade perante a lei e estabelece a proteção contra a
discriminação, e, no âmbito da ONU, no disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (10 de dezembro de 1948), no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (16 de dezembro de 1966), e no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais
(16 de dezembro de 1966), que entendem “a igualdade perante
a lei e a proteção contra a discriminação” como direitos universais”. Menciona
ainda a Convenção Internacional sobre a
Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (21 de dezembro de 1965); a Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial
(20 de novembro de 1963); a Declaração e o Programa de Ação da Conferência Mundial
contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância (Durban, em 2001)
Ao
nível do Conselho da Europa, refere o artigo 14.º da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades
Fundamentais (4 de
novembro de 1950), segundo
o qual “o gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção deve ser
assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor,
língua, religião, opiniões políticas ou outras, origem nacional ou social,
pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento ou qualquer outra situação”.
E, ao nível da UE, o atual artigo 2.º do Tratado
da União Europeia (TUE) estabelece que esta “se funda nos
valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da
igualdade, do Estado de Direito e do respeito pelos direitos do Homem,
incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias e que estes são
valores comuns aos Estados-membros, numa sociedade que é caraterizada pelo
pluralismo, a não discriminação, a tolerância, entre outros”. E o n.º 3 do
atual artigo 3.º do TUE estipula explicitamente que “a União combate, entre
outros, a exclusão social e as discriminações e promove a justiça e a proteção
sociais”.
Ademais,
a Carta dos Direitos Fundamentais da UE
consagra expressamente “a proibição de discriminação em razão, designadamente,
do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas,
língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma
minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual,
bem como em razão da nacionalidade, no âmbito de aplicação dos tratados”.
Por
fim, vem o programa do XXI Governo Constitucional, que assume “o compromisso de
combate à pobreza, à exclusão social e às desigualdades, não só por razões de
equidade e de justiça social, mas também por razões de eficiência e coesão
social, tomando em consideração as diferentes formas como as várias pessoas
sofrem as discriminações, designadamente em função da origem racial ou étnica e
religião”.
A
Nova Lei tem, ainda, em vista “contrariar a dispersão legislativa que se tem
vindo a acentuar neste contexto e ajustar o regime às orientações mais recentes
de política pública nacional, europeia e internacional, de forma a permitir um
combate mais eficiente e efetivo ao fenómeno da discriminação”. E aplica-se às
pessoas singulares e coletivas, públicas e privadas, no que respeita: à
proteção social, incluindo a segurança social e os cuidados de saúde; aos
benefícios sociais; à educação; ao acesso a bens e serviços e seu fornecimento,
colocados à disposição do público, incluindo a habitação; e à cultura. Todavia, não prejudica o disposto no Código do
Trabalho, na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e na Lei n.º 3/2011, de
15 de fevereiro, no que concerne à proteção contra a discriminação na área do
trabalho e do emprego, e do trabalho independente, nem prejudica a adoção de
medidas de ação positiva destinadas a compensar desvantagens relacionadas com
os fatores indicados no objeto da lei.
O artigo
4.º proíbe qualquer discriminação tal como definida lei. E considera discriminatórias
as seguintes práticas: recusa de fornecimento ou impedimento de fruição de bens
ou serviços, colocados à disposição do público; impedimento ou limitação ao
acesso e exercício normal duma atividade económica; recusa ou condicionamento
de venda, arrendamento ou subarrendamento de imóveis; recusa ou limitação de
acesso a locais públicos ou abertos ao público; recusa ou limitação de acesso
aos cuidados de saúde prestados em estabelecimentos de saúde públicos ou
privados; recusa ou limitação de acesso a estabelecimento de educação ou ensino
público ou privado; constituição de turmas ou a adoção de outras medidas de
organização interna nos estabelecimentos de educação ou ensino, públicos ou
privados, segundo critérios discriminatórios; recusa ou a limitação de acesso à
fruição cultural; adoção de prática ou medida por parte de qualquer órgão,
serviço, entidade, empresa ou trabalhador da administração direta ou indireta
do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias locais, que condicione ou
limite a prática do exercício de qualquer direito; a adoção de ato em que,
publicamente ou com a intenção de ampla divulgação, seja emitida declaração ou
transmitida informação em virtude da qual pessoa ou grupo de pessoas seja
ameaçado, insultado ou aviltado em razão de qualquer um dos fatores indicados
no objeto da lei.
O artigo
6.º cria a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (abreviadamente designada por “Comissão), a funcionar junto do Alto-Comissariado
para as Migrações, I P (ACM,
I P), que acompanha a
aplicação da Lei. E, segundo o artigo 8.º, compete-lhe, no quadro da promoção da
igualdade e a não discriminação: aprovar o seu regulamento interno (a homologar pelo competente membro do Governo); recolher a informação relativa a
práticas discriminatórias e à aplicação das respetivas sanções; tornar públicos
os casos de efetiva violação da presente lei e nos termos nela definidos; recomendar
a adoção das medidas legislativas, regulamentares e administrativas que
considere adequadas para prevenir, proibir e combater a discriminação, e
formular recomendações ao Governo sobre qualquer questão relacionada; propor
medidas de supressão de disposições legislativas, regulamentares e
administrativas contrárias ao princípio da igualdade e não discriminação; promover
a realização de estudos e trabalhos de investigação sobre a discriminação; prestar
às vítimas de discriminação a informação necessária para a defesa dos seus
direitos; encaminhar as partes, prestado o respetivo consentimento, para
processos de mediação, sem prejuízo de meios extrajudiciais de resolução de
conflitos que sejam obrigatórios nos termos da lei; receber denúncias e abrir
os respetivos processos de contraordenação; solicitar informações e pareceres,
bem como a realização das diligências probatórias que considere necessárias às
autoridades policiais ou a outros órgãos ou serviços da administração direta ou
indireta do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias locais, para
efeitos de instrução dos processos de contraordenação; decidir e aplicar as
coimas e sanções acessórias no âmbito dos processos de contraordenação; articular
com os órgãos competentes na área da não discriminação em razão de outros
fatores, em casos de discriminação múltipla; elaborar informação estatística de
caráter periódico; promover a educação, formação e sensibilização sobre
direitos humanos e a prevenção e combate à discriminação; promover a criação de
códigos de boas práticas na luta contra a discriminação; e elaborar um
relatório anual sobre a situação da igualdade e não discriminação, incluindo
informação sobre práticas discriminatórias e sanções aplicadas, bem como a
avaliação do impacto de medidas tomadas, para este efeito articulando com a
Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género e a Comissão para a Igualdade
no Trabalho e no Emprego – relatório a remeter à AR e ao competente membro do
Governo e a publicar no sítio web do
ACM, I P.
A Comissão, nos termos do artigo
7.º, tem formação alargada e formação restrita. Na formação estrita, dispõe de
uma comissão permanente, composta pelo presidente, e por 2 membros eleitos pela
Comissão alargada. Na formação alargada, a Comissão é composta por: Alto-Comissário
para as Migrações, que preside; 2 representantes eleitos pela AR; representante
a designar pelo membro do Governo que tutela a administração interna;
representante a designar pelo membro do Governo que tutela a justiça;
representante a designar pelo membro do Governo que tutela a cidadania e da
igualdade; representante a designar pelo membro do Governo que tutela a
educação; representante a designar pelo membro do Governo que tutela a ciência,
tecnologia e ensino superior; representante a designar pelo membro do Governo que
tutela o trabalho, solidariedade e segurança social; representante a designar
pelo membro do Governo que tutela a saúde; representante a designar pelo membro
do Governo que tutela a cultura; representante do Governo Regional dos Açores; representante
do Governo Regional da Madeira; 2 representantes das associações de imigrantes;
2 representantes das associações antirracistas; 2 representantes das
associações de defesa dos direitos humanos; representante das comunidades
ciganas (Porquê só deles?); 2 representantes das centrais sindicais; 2 representantes de
associações patronais; 3 personalidades de reconhecido mérito, cooptadas pelos
restantes membros.
A Comissão (permanente) tem
funções processuais na contraordenação, deixando as disciplinares para as
estruturas de que dependem os respetivos funcionários; propõe a mediação, sem
excluir o recurso ao tribunal; presume a veridicidade da infração a elidir aquando
da prova em contrário; e pressupõe a cooperação de todas as entidades públicas
e privadas.
2017.08.12
– Louro de Carvalho
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