domingo, 13 de agosto de 2017

A má explicação sobre a inexistência da guerra de competências

A 1.ª página do Expresso do dia 12 de agosto anuncia que “IGAI vai deixar de investigar casos de racismo na polícia” e remete o desenvolvimento do enunciado para a página 22. Nesta, Anabela Natário procede ao desenvolvimento a que dá o título “Os casos de discriminação na polícia”, precedido dum antetítulo:
Queixas. Oito casos de discriminação que foram, ou ainda estão a ser, investigados pela Inspeção-Geral da Administração Interna”.
E, referindo que aqueles são os últimos que a IGAI está a investigar “do princípio ao fim”, atesta que a nova lei, que estabelece o “regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate a qualquer forma de discriminação em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem”, atribui a competência de instruir e decidir processos ao Alto comissariado para s Migrações (ACM) e à Comissão para a Igualdade e Contra a discriminação Racial (CICCD).
Entretanto, o MAI vem esclarecer, no Expresso on line, que a IGAI mantém competências no que toca a processos disciplinares, através de nota do seguinte teor:
“A notícia hoje divulgada não corresponde à verdade e induz o público em erro, na medida em que a Lei agora promulgada em nada interfere com as competências da IGAI (Inspeção-Geral da Administração Interna) em sede disciplinar das polícias sob tutela do MAI, nem transfere para o ACM (Alto-Comissariado para as Migrações) qualquer competência neste domínio.
O ACM continua a ter a competência em sede de contraordenação relativamente aos ilícitos previstos naquela Lei, assim como a IGAI continua a ter competência em sede disciplinar relativamente a ilícitos dessa natureza.
O processo disciplinar é sempre autónomo de procedimentos de outra natureza, sejam eles de natureza penal ou de natureza contraordenacional.”.
Em resposta à posição do MAI, a jornalista Anabela Natário, presta o seguinte esclarecimento:
“Os processos de contraordenação resultantes de queixas de discriminação que antes eram instruídos pela IGAI passam a ser instruídos pelo Alto-Comissariado para as Migrações que também irá decidir e avaliar a pena.
A nova lei, já promulgada pelo Presidência da República, determina, no artigo 16.º, que ‘qualquer prática discriminatória por pessoa singular, nos termos do artigo 4.º, constitui contraordenação punível com coima graduada entre uma e dez vezes o valor do indexante dos apoios sociais, sem prejuízo da eventual responsabilidade civil ou da aplicação de outra sanção que ao caso couber.
No artigo 18.º, estabelece que “a abertura do processo de contraordenação compete ao presidente da Comissão; a instrução do processo compete ao ACM; e a decisão do processo, incluindo a aplicação das coimas e sanções acessórias, compete à comissão permanente”.
Todos estes processos e seu desenrolar eram, até agora, da competência da IGAI. Tal como se informa no artigo, no qual, inclusive se mostra de que tipo de processos se está a falar, esta recebia a queixa vinda do ACM ou recebida diretamente, instruía o processo, investigava e propunha uma pena.
Outro tipo de queixas como, por exemplo, de agressões praticadas pela polícia, continua a ser competência, obviamente, da IGAI. Aliás, isso é dito no texto. À IGAI ficam reservados os casos considerados de grave violação de direitos que podem ser considerados crime. A discriminação é apenas punida com coimas.”.
***
Parece-me que não faz sentido nem as afirmações da jornalista publicadas na edição impressa no atinente à nova lei em si (o mesmo não digo em relação aos casos que desenvolve) nem a pressa com que o MAI veio prestar o seu esclarecimento, aliás pouco esclarecedor. Obviamente que, desde que haja novo ordenamento legal, a fortiori com a criação duma comissão para tratamento dos casos contemplados pela nova lei, há inexoravelmente alteração na atribuição de competências.
 Por outro lado, no seu contraesclarecimento, Anabela Natário refere que, no seu artigo, não ficaram negadas as competências disciplinares da IGAI. Até diz que os casos em que haja “violação grave dos deveres funcionais” por elementos das forças de segurança (e apenas esses) ficam para a IGAI. Porém, convenhamos, o que salta à vista é a transferência de competências.
Depois, a jornalista refere que a discriminação é apenas punida com coimas (mas isso seria no regime das contraordenações), quando um dos artigos que cita (artigo 16.º) prevê, no seu n.º 7, a aplicação em simultâneo de penas acessórias:
“Em função da gravidade da prática discriminatória e da culpa do arguido, podem ser aplicadas, simultaneamente com as coimas, sanções acessórias nos termos do regime geral do ilícito de mera ordenação social”, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 356/89, de 17 de outubro, 244/95, de 14 de setembro, e 323/2001, de 17 de dezembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro”.
E o artigo 15.º prevê, no seu n.º 1, que “a prática discriminatória, por ação ou omissão, confere ao lesado o direito a uma indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, a título de responsabilidade civil extracontratual, nos termos gerais”, vindo os números seguintes a clarificar os procedimentos.
***
A lei ora promulgada tem por base uma proposta de lei do Governo, a “Proposta de Lei n.º 61/XIII”, datada de 9 de fevereiro, que estava previsto entrar em vigor a 1 de julho pp. Porém, a AR só a aprovou em definitivo no dia 7 de julho (decreto 142/XIII, da AR) e a remeteu ao Presidente a 3 de agosto, que de imediato a promulgou. Assim, entra em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao da sua publicação.
Na exposição de motivos da proposta, o Governo escora-se no art.º 13.º da CRP, que reconhece o direito à igualdade perante a lei e estabelece a proteção contra a discriminação, e, no âmbito da ONU, no disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (10 de dezembro de 1948), no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (16 de dezembro de 1966), e no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (16 de dezembro de 1966), que entendem “a igualdade perante a lei e a proteção contra a discriminação” como direitos universais”. Menciona ainda a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (21 de dezembro de 1965); a Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (20 de novembro de 1963); a Declaração e o Programa de Ação da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância (Durban, em 2001)
Ao nível do Conselho da Europa, refere o artigo 14.º da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (4 de novembro de 1950), segundo o qual “o gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, origem nacional ou social, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento ou qualquer outra situação”. E, ao nível da UE, o atual artigo 2.º do Tratado da União Europeia (TUE) estabelece que esta “se funda nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de Direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias e que estes são valores comuns aos Estados-membros, numa sociedade que é caraterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, entre outros”. E o n.º 3 do atual artigo 3.º do TUE estipula explicitamente que “a União combate, entre outros, a exclusão social e as discriminações e promove a justiça e a proteção sociais”.
Ademais, a Carta dos Direitos Fundamentais da UE consagra expressamente “a proibição de discriminação em razão, designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual, bem como em razão da nacionalidade, no âmbito de aplicação dos tratados”.
Por fim, vem o programa do XXI Governo Constitucional, que assume “o compromisso de combate à pobreza, à exclusão social e às desigualdades, não só por razões de equidade e de justiça social, mas também por razões de eficiência e coesão social, tomando em consideração as diferentes formas como as várias pessoas sofrem as discriminações, designadamente em função da origem racial ou étnica e religião”.
A Nova Lei tem, ainda, em vista “contrariar a dispersão legislativa que se tem vindo a acentuar neste contexto e ajustar o regime às orientações mais recentes de política pública nacional, europeia e internacional, de forma a permitir um combate mais eficiente e efetivo ao fenómeno da discriminação”. E aplica-se às pessoas singulares e coletivas, públicas e privadas, no que respeita: à proteção social, incluindo a segurança social e os cuidados de saúde; aos benefícios sociais; à educação; ao acesso a bens e serviços e seu fornecimento, colocados à disposição do público, incluindo a habitação; e à cultura. Todavia, não prejudica o disposto no Código do Trabalho, na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e na Lei n.º 3/2011, de 15 de fevereiro, no que concerne à proteção contra a discriminação na área do trabalho e do emprego, e do trabalho independente, nem prejudica a adoção de medidas de ação positiva destinadas a compensar desvantagens relacionadas com os fatores indicados no objeto da lei.
O artigo 4.º proíbe qualquer discriminação tal como definida lei. E considera discriminatórias as seguintes práticas: recusa de fornecimento ou impedimento de fruição de bens ou serviços, colocados à disposição do público; impedimento ou limitação ao acesso e exercício normal duma atividade económica; recusa ou condicionamento de venda, arrendamento ou subarrendamento de imóveis; recusa ou limitação de acesso a locais públicos ou abertos ao público; recusa ou limitação de acesso aos cuidados de saúde prestados em estabelecimentos de saúde públicos ou privados; recusa ou limitação de acesso a estabelecimento de educação ou ensino público ou privado; constituição de turmas ou a adoção de outras medidas de organização interna nos estabelecimentos de educação ou ensino, públicos ou privados, segundo critérios discriminatórios; recusa ou a limitação de acesso à fruição cultural; adoção de prática ou medida por parte de qualquer órgão, serviço, entidade, empresa ou trabalhador da administração direta ou indireta do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias locais, que condicione ou limite a prática do exercício de qualquer direito; a adoção de ato em que, publicamente ou com a intenção de ampla divulgação, seja emitida declaração ou transmitida informação em virtude da qual pessoa ou grupo de pessoas seja ameaçado, insultado ou aviltado em razão de qualquer um dos fatores indicados no objeto da lei.
O artigo 6.º cria a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (abreviadamente designada por “Comissão), a funcionar junto do Alto-Comissariado para as Migrações, I P (ACM, I P), que acompanha a aplicação da Lei. E, segundo o artigo 8.º, compete-lhe, no quadro da promoção da igualdade e a não discriminação: aprovar o seu regulamento interno (a homologar pelo competente membro do Governo); recolher a informação relativa a práticas discriminatórias e à aplicação das respetivas sanções; tornar públicos os casos de efetiva violação da presente lei e nos termos nela definidos; recomendar a adoção das medidas legislativas, regulamentares e administrativas que considere adequadas para prevenir, proibir e combater a discriminação, e formular recomendações ao Governo sobre qualquer questão relacionada; propor medidas de supressão de disposições legislativas, regulamentares e administrativas contrárias ao princípio da igualdade e não discriminação; promover a realização de estudos e trabalhos de investigação sobre a discriminação; prestar às vítimas de discriminação a informação necessária para a defesa dos seus direitos; encaminhar as partes, prestado o respetivo consentimento, para processos de mediação, sem prejuízo de meios extrajudiciais de resolução de conflitos que sejam obrigatórios nos termos da lei; receber denúncias e abrir os respetivos processos de contraordenação; solicitar informações e pareceres, bem como a realização das diligências probatórias que considere necessárias às autoridades policiais ou a outros órgãos ou serviços da administração direta ou indireta do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias locais, para efeitos de instrução dos processos de contraordenação; decidir e aplicar as coimas e sanções acessórias no âmbito dos processos de contraordenação; articular com os órgãos competentes na área da não discriminação em razão de outros fatores, em casos de discriminação múltipla; elaborar informação estatística de caráter periódico; promover a educação, formação e sensibilização sobre direitos humanos e a prevenção e combate à discriminação; promover a criação de códigos de boas práticas na luta contra a discriminação; e elaborar um relatório anual sobre a situação da igualdade e não discriminação, incluindo informação sobre práticas discriminatórias e sanções aplicadas, bem como a avaliação do impacto de medidas tomadas, para este efeito articulando com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género e a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego – relatório a remeter à AR e ao competente membro do Governo e a publicar no sítio web do ACM, I P.
A Comissão, nos termos do artigo 7.º, tem formação alargada e formação restrita. Na formação estrita, dispõe de uma comissão permanente, composta pelo presidente, e por 2 membros eleitos pela Comissão alargada. Na formação alargada, a Comissão é composta por: Alto-Comissário para as Migrações, que preside; 2 representantes eleitos pela AR; representante a designar pelo membro do Governo que tutela a administração interna; representante a designar pelo membro do Governo que tutela a justiça; representante a designar pelo membro do Governo que tutela a cidadania e da igualdade; representante a designar pelo membro do Governo que tutela a educação; representante a designar pelo membro do Governo que tutela a ciência, tecnologia e ensino superior; representante a designar pelo membro do Governo que tutela o trabalho, solidariedade e segurança social; representante a designar pelo membro do Governo que tutela a saúde; representante a designar pelo membro do Governo que tutela a cultura; representante do Governo Regional dos Açores; representante do Governo Regional da Madeira; 2 representantes das associações de imigrantes; 2 representantes das associações antirracistas; 2 representantes das associações de defesa dos direitos humanos; representante das comunidades ciganas (Porquê só deles?); 2 representantes das centrais sindicais; 2 representantes de associações patronais; 3 personalidades de reconhecido mérito, cooptadas pelos restantes membros.
A Comissão (permanente) tem funções processuais na contraordenação, deixando as disciplinares para as estruturas de que dependem os respetivos funcionários; propõe a mediação, sem excluir o recurso ao tribunal; presume a veridicidade da infração a elidir aquando da prova em contrário; e pressupõe a cooperação de todas as entidades públicas e privadas.

2017.08.12 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário