quinta-feira, 31 de agosto de 2017

“A palavra presidencial deve ser rara”

Cavaco Silva levou muito tempo a aceitar o convite da JSD para intervir na Universidade de Verão do partido, em Castelo de Vide, mas ouvi-lo deu para inferir que o silêncio a que formalmente se remeteu no período pós-presidencial só estava a encobrir a vontade de intervir.
Informal, o ex-Presidente da República arrasou a maioria parlamentar que viabiliza a governação do PS, solução que anatematizou, mas que entendeu não ter por onde fugir dela. E agora aproveitou o ensejo para colar António Costa a François Hollande e a Alexis Tsipras – que, segundo o professor, “acabam por perder o pio ou fingem apenas que piam” ou, por outras palavras, “podem começar com devaneios, mas acabam por conformar-se”. E, como era seu timbre presidencial, fez um aviso: “Com tantos impostos Portugal não vai crescer”.
Porém, defendeu o Presidente francês Emmanuel Macron, contra Marcelo, sentenciando: “A palavra presidencial deve ser rara”. Dita por Cavaco, a frase parece esquisita!
Obviamente, sempre sustentei o teor desse enunciado de Cavaco, mas não esqueço que o antigo Primeiro-Ministro (durante 10 anos) e ex-Presidente da República (também por 10 anos) não seguiu esse ditame no exercício presidencial. Pelo contrário, opinou publicamente vezes a mais, dirigiu-se aos portugueses frequentemente via facebook, caiu em banalidades verbais e agora revela-se hipercrítico do sucessor.
Ainda cheguei a pensar – quando vi o excessivo protagonismo de Marcelo, de comentário em comentário, de intervenção a propósito de tudo e de todos, com justificações sobre justificações, condicionamentos prévios do teor e do timing dos normativos e a usar as estrelas de professor de direito público, mormente no âmbito do direito constitucional – disse que ainda iríamos ter saudades do exercício presidencial de Cavaco Silva.
Porém, vindas a lume as memórias presidenciais e, após esta magistral lição “universitária”, em que Passos Coelho fez questão de comparecer para o ouvir e o ex-PR apelou claramente ao voto no PSD, desisto de tal vã esperança. Com efeito, os tempos mudaram e Marcelo (embora de forma excessiva, mas sem deixar de ser quem era) mostra saber estar com as pessoas quando elas mais precisam e puxar pela governação tendo em conta o interesse do país, embora se admita que, lá no seu íntimo, a solução que lhe agradaria não tenha sido aquela com que tem de lidar, ao menos por enquanto. Por outro lado, se “a palavra presidencial deve ser rara”, também tem de ser convincente a ponto de persuadir e dissuadir, conforme os casos e, sobretudo, deve inspirar confiança para fazer reganhar a esperança em tempo de crise – longe dos avisos só para ficar de consciência tranquila e abstendo-se do enegrecimento da realidade ou do apelo ao sobressalto.
Além disso, fica mal a um ex-Presidente no conforto do pós-exercício presidencial proceder a putativos ajustes de contas com ex-colaboradores e pares na condução dos negócios do Estado ou imprudentemente lançar juízos de valor sobre o exercício do sucessor imediato ou sobre o dum Governo que nomeou e empossou a contragosto, esquecido do esforço de cooperação que o mesmo Governo evidenciou com o antigo Presidente, tendo-o convidado para presidir a um Conselho de Ministros onde foi abordado um tema considerado extremamente caro para o então Presidente da República – “o mar”.        
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O tema era “Os jovens e a política: quando a realidade tira o tapete à ideologia”. E o ex-PR aproveitou para tirar o tapete ao Governo semiesquerdo. A este respeito, não deixou dúvidas:
“De facto, caros jovens, na zona euro a realidade acaba sempre por derrotar a ideologia e os Governos podem começar com alguns devaneios revolucionários, mas acabam sempre por se conformar com as regras da disciplina orçamental”.
No alinhamento ideológico com Passos Coelho, o ex-líder do PSD só não anteviu a vinda do Diabo, mas corroborou o essencial do que Passos tem contraposto à governação de Costa: não é “com cativações e consequente degradação dos serviços públicos, cortes no investimento, medidas extraordinárias e engenharia orçamental criativa” que se põe o país a crescer.
O insigne economista mostrou-se, por outro lado, preocupado com o rumo da carga fiscal, afirmando que “o nosso sistema fiscal perdeu lógica e é fruto do improviso”. E advertiu que “a realidade da concorrência fiscal também tende a impor-se às preferências ideológicas, os investidores tendem a evitar países com carga fiscal muito elevadas”, pelo que Portugal se arrisca “a ser remetido para a cauda da UE” no atinente ao crescimento.
É pena, do meu ponto de vista, que a ideologia, enquanto sistema coerente de ideias-força (a adotar e alimentar pelos partidos e a escolher pelos eleitores), se vergue a uma realidade, tantas vezes artificiosa e construída ao serviço de poderosos interesses, nem sempre confessados, e a que se apõe a perniciosa chancela da inevitabilidade ou a marca insultuosa de que “vivem acima das suas possibilidades”. É caso para questionar o aforismo da modernidade que diz caber aos filósofos a compreensão do mundo e aos políticos a sua transformação. Mas, se a filosofia hoje é colocada na prateleira e a política é abominada por feia, corrupta e corrosiva, é óbvio que o poder financeiro comandado pelo capitalismo selvagem e sem rosto ocupa o espaço que a política devia ter enquanto expressão do cidadão e dos grupos de cidadãos e como esforço coletivo da promoção do bem-estar público e da procura do bem comum.
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Ora, Cavaco Silva não foi avaro nas indiretas à conjunção das esquerdas, quer pela forma como mantém Portugal “5 pontos acima da carga fiscal média dos países do sul e do leste da UE”, impedindo que o país “seja competitivo”, quer pela dimensão que defendem para o Estado. Assim, disse que “a nossa despesa pública está 4 pontos percentuais acima da de Espanha e existe um limite a partir do qual a relação custo/eficácia fica em causa”. Por outro lado, acusa a forma como tentaram condicionar a escolha dos novos membros do Conselho de Finanças Públicas, aduzindo que a qualidade da democracia “depende muito da independência destes órgãos” e a defesa feita por alguns parceiros de Costa da nossa saída do euro, insinuando que, “se lhes perguntarem para que galáxia seríamos remetidos”, talvez a resposta aponte para “a galáxia onde se encontra agora a Venezuela”.
Cáustico com os responsáveis políticos que tentaram, em vão, pôr em causa as regras do euro, Cavaco acusou Alexis Tsipras de ter acabado “por mandar a ideologia para o lixo” e aceitar um 3.º resgate com medidas mais duras do que as rejeitadas pelos gregos em referendo. Apelando ao voto no PSD, o ex-PR diz crer que “os portugueses ainda preferem a verdade, a honestidade, o trabalho sério, a dedicação e a competência”. E, sem nunca referir diretamente o atual Presidente da República, o seu antecessor recorreu à análise do estilo de Macron para deixar perceber o que pensa de Marcelo.
Criticando “a verborreia frenética dos políticos” que “não dizem nada de relevante”, sustentou, como se disse, que “a palavra presidencial deve ser rara” considerando que “não passa pela cabeça de ninguém que ele (Macron) telefone a um jornalista para lhe passar uma informação”.
Contra “a promiscuidade com jornalistas”, Cavaco não desdisse da sua histórica aversão a comentadores (a quem chamava “profetas da desgraça”; agora disse que “os que valem a pena não enchem os dedos de uma mão”) e mesmo a alguns jornalistas. E sublinhou:
“As informações políticas falsas não são só na América de Trump. Também há notícias falsas, efémeras, absurdas, e estúpidas, em Portugal.”.
Sobre a classe política, mantém a cartilha: “É muito importante que se esteja na política sem que dela se dependa para ganhar a vida”. Por isso, aconselha os jovens da Jota a não desistirem de estudar, considerando “um erro um jovem abrandar os estudos a troco de um lugar político”. Nisto, vem tentar contrariar uma tentação de décadas. De si, não falou, apenas exprimindo a amarga ideia de que “ninguém deve esperar da política gratidão ou reconhecimento”.

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Como era de esperar, algumas vozes do PS reagiram. Em curto post no Facebook, Porfírio Silva, deputado por Aveiro, não poupa na crítica às declarações do antigo Presidente, dizendo que as “reacionarices” proferidas não têm nada de novo, “são o habitual num político que passou décadas na política sempre a fazer de conta que não era político” e bendizendo “esta democracia em que as pessoas podem dizer aquelas coisas sem serem perseguidas”.
Também Susana Amador, dirigente do PS, acusou o ex-PR, de falta de sentido de Estado e de ter proferido afirmações graves, que não correspondem à realidade, e lamentou que, enquanto estava em Belém, não tenha “piado mais” na defesa dos portugueses.
Para o PS, a ‘aula’ de Cavaco demonstra “desconforto com a política de devolver rendimentos e repor às pessoas mais qualidade de vida, bem-estar e coesão social” do atual executivo. Com efeito, o professor, ao longo das políticas do Governo PSD/CDS, que foram de retirada de direitos, de compressão das garantias, fez a gestão de silêncios, contra o que valeu a intervenção do Tribunal Constitucional na defesa da Lei Fundamental e dos direitos dos portugueses. Por outro lado, Susana Amador defendeu que, na mesma intervenção do ex-PR, “falar de censura, quando ela tem uma grande carga histórica tão negativa para tantos portugueses, e no contexto atual, que é um contexto de democracia, de liberdades e de defesa da Constituição”, é “posição que surpreende pela falta de sentido, pela gravidade”.
Cavaco afirmou que “é corrente apresentarem-se três casos” de países onde a realidade tirou o tapete à ideologia (apontando França e Grécia, mas sem referir explicitamente Portugal). Aliando esta questão com o ataque a comentadores e a alguns jornalistas, bem como a políticos que tentem seguir uma linha diferente da zona Euro, Susana Amador questionou:
“Não terá sido uma forma de censura o empobrecimento a que foram votados os portugueses, mais de 30% de crianças em pobreza infantil? Não foi uma forma de censura retirar direitos, liberdades e garantias? Não foi uma forma de censura acabar com o ensino de adultos?”.
E sustentou que “o empobrecimento, como dizem muitos estudiosos, é uma forma de censura”.
Mas Susana Amador chegou a afirmar que Cavaco “regressou à vida político-partidária com a mesma posição crítica de sempre em relação aos políticos, como se não tivesse sido um dos políticos com mais tempo de funções no período da democracia, e aos jornalistas”. E disse:
“Julgo que não é a forma melhor e mais adequada de falar aos jovens porque precisamos de uma comunicação social livre e isenta e de jornalistas atentos para aprofundarmos a qualidade da nossa democracia. […].Nós não estamos na vida política para a nossa realização individual ou vaidade pessoal, estamos na vida política para a realização das pessoas.”.
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Quem usa da palavra em contexto político e formativo tem de ponderar mais e melhor. E Cavaco podia, neste caso, ter sido um bom professor!

2017.08.30 – Louro de Carvalho

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