O Evangelho de Marcos (8,11-13;
cf Mt 16,1-4; Lc 12,54-57) destaca o segmento “Porque busca esta gente um
sinal do céu? Eu vos asseguro que não lhe será dado nenhum sinal”.
Está Jesus, no exercício da sua missão pública, a pregar
ao povo. Os fariseus e os doutores da Lei observam-no e questionam-no com o
pedido de um sinal. Porém, Jesus não é um mágico, que faz o que o pedem
exigindo, mas é o Messias e, como tal, pretende mostrar o dinamismo e as
virtudes do Reino de Deus. Segundo Mateus, dará o sinal de Jonas. No entanto,
já muitos sinais tinham sido dados, que eles não perceberam ou não quiseram
perceber, tal como hoje, não nos dando nós conta dos sinais que Deus nos
fornece, ficamos “à espera de sinais”.
Ora, a “Tradição” é mais que um sinal, uma coluna de
sinais, pois é um dos pilares da Igreja Católica, a par da “Escritura” e do
“Magistério” – três pilares, que se entrelaçam, dando solidez ao discurso e à
práxis da fé. Podemos dizer, que a “Tradição”, enquanto realiza a transmissão
oral, escrita e reoralizada da doutrina revelada por Deus através dos tempos é
um tesouro inestimável. Com efeito, alguns estudiosos, iluminados por Deus, com
inteligência intuitiva e reflexiva, foram tecendo ou costurando a doutrina e,
no combate às heresias, levaram-nos aos dogmas da fé, sendo que, no atinente a
Maria, se formularam quatro dogmas marianos. Desta forma, a Tradição confirma a
fé da Igreja ou, melhor, a Tradição é a fé da Igreja. Homens estudiosos, alguns
dos quais sofreram o martírio na defesa da ortodoxia da fé, legaram-nos um
património espiritual portentoso. Hoje, colhemos os frutos dessa azáfama
ardorosa. Assim, na Carta Encíclica Redemptoris Mater, n.º 31, São João Paulo II,
diz:
“Os Padres
gregos e a tradição bizantina, contemplando a Virgem Santíssima à luz do Verbo
feito homem, procuram penetrar a profundidade daquele vínculo que une Maria,
enquanto Mãe de Deus, a Cristo e à Igreja: ela é uma presença permanente em
toda a amplidão do mistério salvífico”.
***
Atentemos no destaque dado aos “padres gregos” e de “Bizâncio”
que olham para Maria à Luz de Cristo e atestam a unidade de Maria, Cristo e
Igreja. Na verdade, o que une é o Espírito de Deus, promovendo o amor entre as
partes, o respeito, a obediência. É o Reino de Deus in fieri, a acontecer. Contudo, a Mariologia (o saber sobre Maria) não é tema central da teologia dos
Padres da Igreja, mas vem sempre indexada à Cristologia (o saber sobre Cristo) e à Soteriologia (o saber sobre a salvação da humanidade em Cristo). E é neste contexto que
a Mariologia enfrenta problemas, logo com as primeiras heresias, que são
cristológicas, mas tocam indiretamente a Mariologia. Podem mencionar-se as
principais heresias que mais diretamente afetam maternidade de Maria:
- Os docetas (do grego δοκέω [dokeō],
“parecer”).
Crendo que o corpo de Cristo era ilusório e que a sua crucifixão
teria sido apenas aparente, entendiam a afirmação da Maternidade de Maria como
ficção. Os docetas não existiam como seita ou religião específica, mas
como corrente de pensamento doutrinal que atravessou diversos estratos da
Igreja, mas que foi refutada com base no Evangelho de João, que afirma no
capítulo I: “o Verbo se fez carne” (Jo 1,14).
- Os ebionitas (do hebraico אביונים, Evyonim,
“pobres”).
Negando a divindade de Jesus, aceitavam o Antigo Testamento, mas rejeitavam o
Novo e substituíam-no por outro, o chamado Evangelho dos ebionitas; aceitavam
Jesus como o Cristo, mas não como o filho de Deus, no sentido trinitário; e não
aceitavam a Anunciação do anjo a Maria.
- Os gnósticos/valentinianos, grego Γνωστικισμóς – gnostikismós, de Γνωσις – gnosis: conhecimento. Assim, “gnosticos” é o que tem o conhecimento.
Valentim ou Valentino (latim: Valentinus; c. 100
– c. 160) foi
por algum tempo o teólogo gnóstico do período
do cristianismo primitivo de maior sucesso. Candidato ao
episcopado, iniciou o grupo quando outro candidato foi eleito. Dizia ele:
“O corpo de Jesus é espiritual e celeste, formado pelo
demiurgo no seio da virgem, o qual passou por Maria como água por um cano”.
- Os marcionitas (de Marcião, †160). Marcião foi um dos mais
proeminentes heresiarcas durante o cristianismo primitivo. O marcionismo,
que propunha dois deuses distintos, um no Antigo Testamento e
outro no Novo Testamento, foi denunciado pelos Padres da
Igreja e Marcião foi excomungado. Afirma que Jesus não tem
origem humana, não nasceu da Virgem Maria e apareceu no mundo durante o reinado
de Tibério César. Todas estas heresias se prolongam ainda por dois séculos,
após o que são refutadas.
- Surge ainda um herege famoso, Celso,
filósofo grego do século II, lembrado como opositor
do Cristianismo. A sua obra “A
Verdadeira Palavra” foi contestada por Orígenes, numa polémica
famosa, na sua obra “Contra Celsum”.
Para Celso, Cristo teria
nascido duma união adúltera, pois Maria, apesar de casada com José, uniu-se a
um soldado romano chamado Panthera. Jesus era chamado Ben-Panthera, ‘filho de
Panthera’.
***
Porém, graças à fé ortodoxa e ao labor de grandes
homens, a Tradição foi-se formando e, nela, se alimenta o Magistério da Igreja, que atualiza e
proclama a fé da Igreja, ancorada na Sagrada Escritura. Todos os documentos da Igreja citam estes
homens. Não há o que inventar, mas o voltar às fontes ou fazer a
refontalização, a exemplo do Concílio Vaticano II, dos documentos
pós-conciliares e, sobretudo, os do Papa Francisco. Nesta árdua defesa da Fé,
são de salientar:
- Santo Inácio de Antioquia (Síria – †107), um dos Padres Apostólicos, discípulo de João.
Conheceu São Paulo, foi sucessor de Pedro na Igreja de Antioquia e foi
condenado à morte no Coliseu, martirizado pelos leões. Dizia na sua Carta aos
Efésios:
"A
verdade é que o nosso Deus, Jesus, o Ungido, foi concebido de Maria
segundo a economia divina; nasceu da estirpe de David, mas também do Espírito
Santo”.
- Tertuliano (†220), nascido em Cartago (África), foi notável apologeta
cristão. Foi um dos primeiros a utilizar o termo ‘Trindade’ e legou-nos a mais
antiga exposição formal ainda existente sobre a teologia trinitária. Em fim
de vida, tornou-se montanista (os montanistas diziam-se
profetas e que falavam pelo Espírito Santo). Tertuliano acentua que Maria deu
realmente à luz o Verbo Encarnado. Reconhece que ela
era virgem quando concebeu, mas nega a virgindade de Maria no parto e
após o parto, pelo que entende que os “irmãos
de Jesus” são filhos de Maria.
- Santo Ambrósio de Milão (†397). Tornou-se um dos mais influentes membros do clero
no século IV. Feito bispo de Milão por aclamação popular, era
fervoroso adversário do arianismo (esta
heresia afirmava ser Cristo a essência intermediária entre a divindade e a
humanidade, negava-lhe o caráter divino e descria da Santíssima Trindade). A sua mariologia,
focada na virgindade de Maria e no seu papel como Mãe de Deus, influenciou os
Papas da época e posteriormente São Leão Magno.
- Santo Agostinho de Hipona (†430). Foi um dos mais importantes teólogos e filósofos
dos primeiros séculos do cristianismo, cujas obras foram muito influentes no
desenvolvimento do cristianismo e da filosofia ocidental. Embora Agostinho não
tenha desenvolvido uma mariologia independente, as suas afirmações sobre Maria
ultrapassam, em número e em quantidade, as dos autores anteriores. Mesmo antes
do Concílio de Éfeso, defendeu a sempre Virgem Maria como a “Mãe de Deus” e que, pela
sua virgindade, é cheia de graça. E afirmou que a Virgem Maria “concebeu virgem, deu à luz virgem e
permaneceu virgem para sempre”.
- São Justino (†165), filósofo, apologeta, teólogo e mártir. O ponto
central da sua apologética consiste em demonstrar que Jesus Cristo é o Logos do
qual todos os filósofos falaram. Foi o primeiro a defender que Jesus
nasceu duma virgem (Maria) e que descende
do rei David.
- Santo Irineu de Lyon (†202). Foi bispo grego, teólogo e escritor cristão, lutou
ferozmente contra a gnose valentiana. Desenvolveu a teoria da
recapitulação:
“Mesmo Eva tendo Adão como marido, ela ainda era
virgem ... Ao desobedecer, Eva tornou-se a causa da morte para si e para toda a
raça humana. Da mesma forma que Maria, embora tivesse um marido, ainda era
virgem, e obedecendo, ela tornou-se causa de salvação para si e para toda a
raça humana.” (Adversushaereses 3,22).
- Orígenes de Alexandria (†254), um teólogo, filósofo neoplatónico e
um dos Padres gregos. O seu pensamento é relevante no que diz respeito à
virgindade de Maria e ressalta aos olhos a naturalidade com que afirma
a Imaculada Conceição de Maria:
"Desposada com José, mas não carnalmente
unida. A Mãe deste foi Mãe imaculada, Mãe incorrupta, Mãe intacta. A Mãe deste,
de qual Este? A Mãe do Senhor, Unigénito de Deus, do Rei universal, do
Salvador e Redentor de todos". (Homilia inter collectas
ex variis locis).
- Santo Efrém, o Sírio (†373). Foi declarado doutor da
Igreja por Bento XV em 1920. Compôs e entoou belos hinos marianos e
fez entrar no CREDO, Símbolo dos Apóstolos: Que
foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria...
- As Odes de Salomão, uma coleção de
42 odes atribuídas a Salomão. Crê-se que a língua original tenha
sido o grego ou o siríaco. Este hinário cristão do início século
II diz-nos de Maria: “O seio da Virgem concebeu e deu à luz...”.
- Os Apócrifos, com destaque para o Protoevangelho
de Tiago, que conta a história da vida de Maria, filha dum
homem rico chamado Joaquim, casado há muitos anos com Ana. O casal
era infeliz por não conseguir ter filhos – facto entendido na cultura
judaica como castigo de Deus. Joaquim jejuou no deserto 40
dias e 40 noites, implorando a intervenção divina. Pouco depois, apareceu a Ana
um anjo, que lhe e disse:
“Conceberás
e darás à luz e de tua prole se falará em todo o mundo”.
- Santo Hilário de Poitier (†367). Viveu na Gália, é doutor da Igreja e estudioso da
Trindade. Defendeu a fórmula Jesus “consubstancial” ao Pai, contida no Credo.
De Maria, atesta a virgindade pós-parto, sem a qual não poderia justificar a
Trindade.
- São Jerónimo de Stridon (†420).
Teólogo, historiador, confessor e doutor da Igreja. É
mais conhecido por sua tradução da Bíblia para o latim (Vulgata). Defende a virgindade de Maria no parto. Homem de
ideias determinantes, que provoca espanto nos dias de hoje, ao comparar a
virgindade de Maria como figura da Igreja:
“A Igreja, imitando
a Mãe de Cristo, sendo virgem, a cada dia gera novos membros de Cristo”.
Tais afirmações igualam-se às da maternidade divina. ntes
do século V raramente se encontra no Ocidente com o título de ‘Mãe de Deus’, aplicado a Maria. Pois o primeiro
Padre a usar o título ‘Theotókos’, foi o Patriarca do Concílio de Niceia
(325), Alexandre
de Alexandria (†326). Depois,
dir-nos-á São Vicente de Lerins (†445):
“Maria é Theotókos porque
em seu seio cumpriu-se o mistério, por uma especial unidade de pessoa, em modo
único: É carne e é Deus.”.
Nestas citações, fica bem a célebre a comparação
Eva/Maria por Santo Agostinho:
“Adão dorme
para que nasça Eva; Cristo morre para que nasça a Igreja. Eva nasce da costela
de Adão adormecido, a Igreja do lado de Cristo morto, traspassado para que
brotassem os sacramentos”.
Tema latente neste período será também o da Santidade
de Maria. Antes do século IV nada se conhecia sobre o tema, pois o
dogma de “Maria, Mãe de Deus” não estava definido. Só o foi em 431, no
Concílio de Éfeso. Com efeito, antes, a prioridade era o combate às heresias
cristológicas. Ao dizemos que Maria é Santa, recordamos que foi a sua
consagração a Deus e a adesão total à Aliança na Plenitude dos Tempos, que a
fez grávida de Cristo, que se gerou n’Ela, a partir da eleição para uma missão
específica (separação). Santo é aquele que
está “separado”, porque vocacionado para missão especial. Vemos no modo de agir
de Maria e seu silêncio uma dádiva da opção de estar grávida de Deus e a
escolhida para nossa evangelizadora.
Cabe lembrar como ícone da Tradição o Akathistos
(significa “estando de pé”, porque se canta nesta
posição). É o
hino mariano mais famoso do Oriente cristão – à maneira do Oficio ocidental de
Nossa Senhora – que celebra o Mistério da Mãe de Deus e, possivelmente, o de
toda a Igreja.
***
Como se viu, surgem dois dogmas nos primeiros séculos
da Igreja: o de Maria, Mãe de
Deus – Theotókos – proclamada no Concílio de Éfeso (431); e o da Virgindade
de Maria, em 451, no Concílio de Calcedónia, onde foi declarado que
Jesus é nascido da Virgem Maria. Depois, em 553, o Concílio de Constantinopla
II confirmou: “Encarnou-se da gloriosa Mãe de Deus e sempre Virgem Maria”.
Foi também atestado pelo Concílio de Latrão, no ano de 649, e referendado pela
Bula “Cum quorumdam hominum”, de 1555, do Papa Paulo IV, afirmando que “Maria
é sempre Virgem, antes do parto, no parto e depois do parto”.
Dois dogmas vieram mais tarde: o da Imaculada Conceição, que nos aponta
Maria toda santa, toda de Deus, protótipo do que somos chamados a ser. Foi
proclamado pela Bula “Ineffabilis Deus”, do Papa Pio IX, em 1854; e o de
Maria, Assunta aos céus, pela
Constituição Apostólica “Munificentissimus Deus”, proclamado pelo Papa
Pio XII, em 1950.
***
João Paulo II, na Carta Encíclica Redemptoris
Mater, n.º 41, presenteia-nos com a afirmação, “Maria, a Plenitude redimida”,
onde
“No mistério da Assunção, exprime-se a fé da
Igreja, segundo a qual Maria está ‘unida por um vínculo estreito e
indiscutível’ a Cristo, pois, se já como Mãe Virgem estava a ele singularmente
unida na sua primeira vinda, pela sua contínua cooperação com Ele o estará
também na expectativa da segunda: ‘Remida de um modo mais sublime, em atenção
aos méritos de seu Filho’, ela tem o papel próprio da Mãe, de medianeira de
clemência na vinda definitiva”.
Há, de facto, unidade entre a “primeira vinda” e a
“segunda”, não por mérito de Maria, mas pelo de Cristo, pois todos os dogmas
marianos são méritos de Cristo, fazendo de Maria a intercessora pela
omnipotência suplicante e medianeira de todas as graças. Trata-se de tema
intenso que merece ser aprofundado e faz parte duma trilogia dos estudos
marianos, em regime de complementaridade: Maria na Escritura, Maria na Tradição
(Padres, Doutores e Magistério); e Maria na Devoção
Popular – pois o cristão deve pautar a vida pela de Maria, já que a Ela se
consagra, e crescer com Maria, buscando a santidade.
Cf Eduardo Lopes Caridade
– http://cncmb.org.br/maria-na-tradicao.html.
***
A verdade da tradição marial sobre Deus, a Igreja e nós,
excede a informação histórica que temos. Esta devoção
tornou-se fundamental para a espiritualidade da Igreja. Figura
proeminente na iconografia e arquitetura,
desperta nobres emoções de amor e veneração. Passou para a história e a sua
memória perdurará. O seu culto acalenta a imaginação dos cristãos, que a
invocam para cumprirem as exigências do discipulado. A teologia reflete sobre a
sua cooperação com o plano da salvação, a vocação à vida de compromisso
consumado na oferenda sacrifical de Si em união com o Filho junto à cruz (Jo 19,25-28). Com desabrochar do desafio do discipulado e as exigências da
radicalidade do Evangelho, Maria torna-se o modelo para reencarnar o amor e a justiça de Deus através
dos tempos. – Cf Coyle,
K., Maria tão plena de Deus e tão nossa,
Paulus,2012.
2017. 08.30 – Louro de
Carvalho
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