domingo, 6 de agosto de 2017

Orar exige o compromisso com aquele a quem se ora e com o que se ora

Vem o enunciado vertido em epígrafe a propósito do comentário que, a Igreja dos Passionistas de Santa Maria da Feira, o celebrante da Missa das 12 horas de hoje, 6 de agosto e festa da Transfiguração do Senhor, fez antes da conclusão da Oração dos Fiéis.   
Alternadamente com o estribilho “Senhor, iluminai, as nossas trevas!”, pedia aquela santa Assembleia que Deus transfigurasse “a santa Igreja, peregrina nos quatro cantos da terra”, e a fizesse “brilhar de santidade”; transfigurasse “os homens públicos” e os ensinasse “a trabalhar para o bem comum e a promover a paz e a justiça”; transfigurasse “aqueles que sofrem” e os ajudasse “a levar a sua cruz e a seguir os passos do seu Filho”; transfigurasse “o nosso olhar” e nos ensinasse “a descobrir, dia após dia, a sua presença na pessoa dos que sofrem”; “nos transfigure inteiramente e nos faça ver, como aos Apóstolos, a glória de Jesus no monte santo”; e “transfigure os moribundos e os leve a contemplar, na eternidade, o rosto de Jesus, o Redentor. Ora, o Padre Caridade Pires advertia: “Deus deve estar a rir-se de nós da nossa ingenuidade”. E provocatoriamente dizia que estávamos a rezar por um livro litúrgico, que não foi ele quem o fez, caso contrário ele não sairia assim, chegando mesmo a dizer que estávamos a rezar autênticas barbaridades. Com efeito, o que estamos a pedir depende fundamentalmente de nós e não deveríamos estar à espera de que Deus faça aquilo que nós somos obrigados a fazer. Deveríamos antes pedir ao Senhor que nos abra o coração para esta obrigação de construirmos a nossa transfiguração e nos dê a todos a sua ajuda para isso. Não obstante, rematou o elenco das preces com a súplica a Deus para que aceitasse estes nossos “inocentes” pedidos:
“Ouvi, Senhor, as nossas súplicas [inocentes] e envolvei-nos com a luz santíssima que aos Apóstolos foi dado ver brilhar, para escutarmos a voz do vosso Filho, imagem e esplendor da vossa glória. Por Cristo Senhor nosso.”
Porém, na introdução à recitação do Pai Nosso, talvez porque já não podia criticar a fórmula desta oração, que não decorre da organização de um qualquer livro litúrgico, mas do terno e lúcido ensinamento do Salvador, resolveu de forma sábia chamar a atenção de todos para a desatenção com que tantas vezes rezamos esta oração e para a necessidade de assumirmos, não só a confiança total no Pai comum de todos nós, mas também o indispensável compromisso de vida para com as exigências decorrentes daquilo que estamos a pedir e a nossa responsabilidade pessoal e comunitária pela construção e crescimento luzido da fraternidade universal.
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Aliás, todas estas advertências do Padre Caridade Pires estão consequentes com a homilia que proferiu a seguir à proclamação do Evangelho, para a qual habitualmente lhe falta o tempo de que supõe precisar.
Começou por referir que o profeta Daniel (Dn 7, 9-10.13-14) nos antecipa a visão celeste em que estaremos na contemplação da glória do Messias – o Filho do Homem, revestido de poder e majestade e cercado de luz – que reunirá toda a humanidade numa só família e triunfará para todo o sempre. Depois, sublinhando que Pedro foi um dos componentes do grupo restrito de três discípulos que presenciaram a Transfiguração, o Apóstolo serve-se do facto de a ter testemunhado para alicerçar a autenticidade da sua pregação – uma pregação da fé que não se apoia em lendas ou fábulas, mas na pessoa de Jesus, o Cristo, que viveu no meio dos apóstolos e de todas as demais pessoas. Não obstante alguns factos excecionais, Ele foi percepcionado apenas como um homem, quando afinal um grupo de apóstolos pôde aceder ao privilégio de presenciar a Transfiguração (cf 2Pe 1,16-19).
E, passando ao comentário do Evangelho atinente à Transfiguração (Mt 17,1-9), o homiliante acentuou que Jesus entrou no mundo e nele viveu permanentemente enrolado no tapete do seu corpo humano que escondia a profundidade do seu infinito ser divino. Apenas se manifestava naquilo que todos deveríamos ser capazes de praticar: o conhecimento dos mandamentos, a atenção às pessoas, a não discriminação; a compaixão, ternura e misericórdia; o cuidado com os doentes e os pobres; a priorização do Reino de Deus e da sua justiça; e até algumas formas de milagres, sobretudo na parte em que Jesus exigia a colaboração humana, sobretudo pelo lado da fé. Na verdade, Jesus é a imagem do coração misericordioso do Pai e a manifestação do seu infinito amor por todos os seres humanos independente da condição de cada um.
Ora, a Transfiguração vem revelar-nos a identidade de Jesus escondida na roupagem dum corpo humano – a Sua divindade. Ele é efetivamente Deus. Para caraterizar a sua divindade, o evangelista utiliza a linguagem apocalíptica (cf Dn 7,9-10), a linguagem utilizada para descrever o rosto dos justos (cf Ap 1,16; Jb 25,5), que resplandecem com o brilho do sol, da lua, das estrelas e dos relâmpagos: “o seu rosto resplandeceu como o Sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz” (Mt 17,2). Marcos (9,3) até diz:
“As suas vestes tornaram-se resplandecentes, de tal brancura que lavadeira alguma da terra as poderia branquear assim”.
Era necessário que entre os discípulos houvesse um núcleo duro que estivesse preparado para estabelecer a ligação do Cristo que ia padecer, ser morto e ressuscitar com a personagem dada a conhecer no monte da Transfiguração. Dizem os evangelistas sinóticos que Lhe apareceram simultaneamente Moisés e Elias e com igual resplendor – o que significa simplesmente que Jesus reúne em Si mesmo a totalidade da força da economia da Salvação, constituída pela Lei, simbolizada na figura de Moisés ali presente, e pela profecia, simbolizada na figura de Elias ali também presente. Entretanto, estas duas personalidades que falavam com Jesus (segundo Lucas 9,31, o tema da conversação era a morte de Jesus que ia suceder em Jerusalém) desapareceram, o que mostra que a economia da antiga Lei e da antiga Profecia cessou e que, a partir de Jesus e com Jesus, se inaugura uma nova era.
A teofania do monte envolve uma singularidade circunstancial e uma mensagem inequívoca. Ainda Pedro estava a falar com Jesus a propor ali (ingenuamente como se a era da glória messiânica estivesse já em marcha) a implantação de três tendas – uma para Jesus, outra para Moisés e outra para Elias – uma nuvem luminosa (símbolo da presença de Deus que tem um desafio a fazer aos homens que envia – vd Ex 24,16) os cobriu com a sua sombra, e uma voz dizia da nuvem: “Este é o meu Filho muito amado, no qual pus todo o meu agrado. Escutai-o.”. Esta é a mesma voz do Pai que se ouviu aquando do Batismo de Jesus no Jordão (cf Mt 3,17). Jesus é o novo Moisés e o novo Elias, encarregado de levar a nova Lei e a nova profecia, vivificadoras. Por isso, a Ele e só a Ele se deve a obediência da fé (cf Rm 1,5). Então, o ato transfigurador de Cristo revela-nos a nossa condição: na roupagem exterior do nosso corpo esconde-se a realidade de quem transporta consigo uma alma imortal ansiando pela consumação da felicidade a que todos somos chamados. Os que escutam o Filho muito amado do Pai transformam-se por graça divina em filhos com o Filho, santos com o Santo, divinos com o Divino por excelência.
O grande medo que os três apóstolos sentiram é a reação provocada no homem quando repentinamente se lhe manifesta o mundo celeste. E é então necessário que venha uma voz autorizada a apelar: “Não tenhais medo, levantai-vos”.
Entretanto, é necessário ao dinamismo da pregação do Reino de Deus – o centro da pregação de Jesus – que se mantenha o segredo messiânico “até que o Filho do Homem ressuscite dos mortos”. Mas a evocação da ressurreição por parte de Cristo, neste contexto, mostra que a divina manifestação no monte se acha na mesma linha das manifestações de Jesus após a ressurreição: os discípulos darão testemunho da transfiguração quando forem enviados a Israel e ao mundo atestando a sua ressurreição (cf Lc 24,46-48).
Com efeito, disse-lhes que fossem pelo mundo inteiro, proclamando o Evangelho a toda a criatura, pois “quem acreditar e for batizado será salvo, mas quem não acreditar será condenado”. Estes sinais acompanharão os que acreditarem: em nome do Messias “expulsarão demónios, falarão línguas novas, apanharão serpentes com as mãos e, se beberem algum veneno mortal, não sofrerão nenhum mal. Hão de impor as mãos aos doentes e eles ficarão curados. E “eles, partindo, foram pregar por toda a parte; o Senhor cooperava com eles, confirmando a Palavra com os sinais que a acompanhavam” (cf Mc 24,15-18.20).
E Paulo conclui que a transfiguração se estende a todos. Com efeito, diz-nos:
“Semeado corrutível, o corpo é ressuscitado incorrutível; semeado na desonra, é ressuscitado na glória; semeado na fraqueza, é ressuscitado cheio de força; semeado corpo terreno, é ressuscitado corpo espiritual. Se há um corpo terreno, também há um corpo espiritual. Assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito um ser vivente e o último Adão, um espírito que vivifica. Mas o primeiro não foi o espiritual, mas o terreno; o espiritual vem depois. O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo vem do céu. Tal como era o terrestre, assim são também os terrestres; tal como era o celeste, assim são os celestes. E assim como trouxemos a imagem do homem da terra, assim levaremos a imagem do homem celeste. Digo-vos, irmãos: o homem terreno não pode herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herdará a incorruptibilidade. Vou revelar-vos um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados; num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final – pois a trombeta soará – os mortos ressuscitarão incorruptíveis e nós seremos transformados.” (1Cor 15,46-52).
Em suma, pela Transfiguração, sabemos quem é Jesus (o homem que usualmente esconde na roupagem corpora humana a condição de Deus e que, sem deixar de ser Deus, Se fez verdadeiro homem); quem somos nós enquanto ouvintes da palavra do Filho amado do Pai e apóstolos desta palavra; e quem seremos nós agora e depois de inteiramente transfigurados, pois, “agora já somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser”, e “o que sabemos é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é” (cf 1Jo 3,2).
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E, se o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, porque não sabemos o que havemos de pedir, e, se, para rezarmos como deve ser, o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis (Rm 8,26), também é certo que a oração, enquanto resultado da fé e norma da fé, nos impõe a autorresponsabilização em coerência com o que pedimos. Não podemos comportar-nos com Deus como autónomos ou eivados de psitacismo. A oração tem de ser um ato pessoal e comunitário e um guia pedagógico da vida do homem e da comunidade onde está inserido ou da que pretende constituir.
Enfim, oração é fé e missão, confiança e apostolado, caridade e propósito de luta pela justiça; um compromisso com Cristo, por quem chegam ao Pai as orações dos crentes, e com o que Ele ensina e nós prometemos cumprir e ensinar a cumprir.

2017.08.06 – Louro de Carvalho

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