E
se em vez dos 230 deputados o Parlamento português passasse a ter apenas sete?!
A
questão prende-se com uma peça jornalística do JN (Jornal
de Notícias) de
hoje, dia 23 de agosto, que dá conta das consequências duma alteração ao artigo
41.º do Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de novembro, introduzida pela Lei n.º 11/2014, de 6 de
março, Decreto-lei que já tinha sido alterado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro,
e pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro. E é de recordar que o Decreto-lei em
causa “estabelece o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças
profissionais ocorridos ao serviço de entidades empregadoras públicas”
e que, por sua
vez, a Lei n.º 11/2014, de 6 de março, “estabelece mecanismos de convergência do regime de proteção
social da função pública com o regime geral da segurança social, procedendo à 4.ª alteração à Lei n.º 60/2005, de 29 de
dezembro, à 3.ª alteração ao Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de novembro, e à alteração
do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-lei n.º 498/72, de 9 de
dezembro, e revogando normas que estabelecem acréscimos de tempo de serviço
para efeitos de aposentação no âmbito da Caixa Geral de Aposentações”.
***
O JN dá-nos conta dos casos de uma professora de Inglês e Alemão (3.º ciclo e ensino secundário) e de um professor de Educação Física (3.º ciclo e ensino secundário), que sofreram acidente nas escolas onde prestam serviço docente, pelo
que a Caixa Geral de Aposentações (CGA) lhes atribuiu uma pensão pela
incapacidade com que ficaram – a primeira com incapacidade de 3% e o segundo,
de 4,5%. Porém, o pagamento está suspenso até à aposentação. Agora, não podem
acumular vencimento e pensão; e, aquando da aposentação, pode a perceção da
pensão sofrer limites. É que se trata de incapacidade parcial, que fica sob o
estipulado na alínea b) do n.º do art.º 41.º do Decreto-lei n.º 503/99, de 20
de novembro, acrescentada pelo art.º 6.º da Lei n.º
11/2014, de 6 de março, como se pode ler:
“As prestações periódicas por incapacidade permanente
não são acumuláveis: a) […]; b) com a
parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução permanente da
capacidade geral de ganho do trabalhador, em caso de incapacidade permanente
parcial resultante de acidente ou doença profissional.”.
Por outro lado, mantém-se o estipulado na
alínea c), que antes era a alínea b):
“Com
remuneração correspondente a atividade exercida em condições de exposição ao
mesmo risco, sempre que esta possa contribuir para o aumento de incapacidade já
adquirida”.
E acrescenta o JN:
“Quando se aposentarem, se as duas pensões ultrapassarem um limite [não o
especifica], ser-lhes-á descontado um valor mensalmente [não o especifica]. Ou
seja, não serão ressarcidos.”.
Com efeito, o predito artigo 41.º estipula no
seu n.º 3, na redação atual:
“São acumuláveis, sem prejuízo das regras de acumulação próprias dos
respetivos regimes de proteção social obrigatórios, as prestações periódicas
por incapacidade permanente com a pensão de aposentação ou de reforma e a
pensão por morte com a pensão de sobrevivência, na parte em que estas excedam
aquelas”.
E o seu n.º 4,na redação atual, estipula:
“O disposto nos números anteriores aplica-se, com as necessárias
adaptações, às indemnizações em capital, cujo valor fica limitado à parcela da
prestação periódica a remir que houvesse de ser paga de acordo com as regras de
acumulação do presente artigo”.
Ora, dantes, em matéria de
acumulações, vinha estipulado doutro modo (que fazia toda a diferença):
“São acumuláveis, sem prejuízo das regras de acumulação próprias dos
respetivos regimes de proteção social obrigatórios: a) as pensões por incapacidade permanente com as atribuídas por invalidez
ou velhice; b) a pensão por morte com a pensão de sobrevivência,
na parte em que esta exceda aquela.”.
***
Tendo recebido o pedido de ajuda da parte dos docentes vítimas da Lei, a
Fenprof (Federação Nacional de Professores) apresentou queixa ao Provedor de Justiça, que acabou por concluir que a
Lei aprovada na anterior legislatura “viola
o direito fundamental dos trabalhadores à justa reparação, quando vítimas de acidente
de trabalho ou doença profissional”, bem como o princípio da igualdade
consagrado na Constituição (vd art.º 13.º) e no art.º 6.º do Código do Procedimento
Administrativo (CPA). Por isso, o Provedor, a 21 de dezembro de 2016, solicitou ao Tribunal
Constitucional (TC) a fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade destas normas,
no pressuposto de que, além do que ficou referido, “o legislador desconsidera, em absoluto, que em causa estão prestações
pecuniárias que têm um escopo indemnizatório específico”. Mas o TC ainda
não se pronunciou, talvez por demasiado ocupado!
A justa reparação pelos danos causados é uma das imposições da nossa lei
civil, acima da qual ninguém se pode arrogar o direito de estar. Põe-se, além
disso, em causa o princípio da equidade subjacente a quaisquer Constituições
vigentes nos Estados civilizados, princípio perfeitamente compatível com o
princípio da igualdade. Ademais, o CPA consagra mais princípios invocáveis
neste caso: os princípios da justiça e da
razoabilidade (art.º 8.º), pelos quais “a Administração Pública
deve tratar de forma justa todos aqueles que com ela entrem em relação, e
rejeitar as soluções manifestamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia
de Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das normas jurídicas e das
valorações próprias do exercício da função administrativa”; e o princípio da responsabilidade (art.º 16.º) pelo qual “a Administração Pública responde,
nos termos da lei, pelos danos causados no exercício da sua atividade”.
Ora, um trabalhador ao serviço duma entidade privada está a coberto de um
seguro de acidentes de trabalho e de doença profissional. Assim, nos termos da
nossa lei civil, em caso de acidente de trabalho – o equivalente ao acidente de
serviço na administração pública – o trabalhador receberia uma indemnização e
seria ressarcido das despesas que teve de fazer.
Os professores em causa, à semelhança de outros que se resignaram,
queixam-se de não terem sido ressarcidos pelas despesas que tiveram com
consultas e tratamentos feitos em virtude dos acidentes. Parece estranho, não
?! Mas aqui entra-se no cruzamento com outras insuficiências sistémicas. Como
respondem os hospitais públicos a estes casos? E podem os funcionários públicos
contar com a ADSE em acidente de serviço e recorrer ao serviço convencionado ou
ao do regime livre? Parece que não. Pelo menos, a prática tem revelado a
dificuldade ou a impossibilidade prática. E acenam com a igualdade!
Ora, ao menos neste aspeto, a Lei n.º 11/2014, de 6 de março, é imoral e
absurda, pois estabelece a convergência do regime de proteção social da função pública
com o regime geral da segurança social apenas no que interessa ao Estado, esquecendo-se de
acionar os outros mecanismos de igualdade para satisfazer os princípios da
equidade e da justiça. É uma lei ainda mais coxa do que aquelas que pretendeu
“melhorar” ou endireitar. Certo. Os nossos deputados não têm vocação para
endireitas! Terão jeito para o quê?
***
Há ainda outro aspeto grave a
considerar. Após a queixa feita ao Provedor de Justiça, Mário Nogueira (aquele que as más línguas dizem que
manda no Governo), secretário-geral da Fenprof,
pediu audiências aos partidos. E o resultado é brilhante:
“Todos os deputados se
mostraram surpreendidos, nenhum se lembrava da aprovação das normas,
concordaram que era um absurdo, mas nenhum apresentou uma proposta de alteração”.
Das duas, uma: ou Mário Nogueira
teve muito pouca sorte em consultar apenas deputados que não estavam na
Assembleia da República (AR) na anterior legislatura ou, o que é mais
provável, os nossos deputados sofrem de “bavismo”, um mal que acossou a antiga
PT. Por outro lado, os deputados da área da coligação pós-eleitoral de 2011
alinhavam quase automaticamente com o Governo, em que Paulo Portas em 2013/2014
estava mais preocupado com a gestão da área económica e sem tanta preocupação
com as linhas vermelhas, ao passo que o PS estava com a crise interna das eleições
primárias para o cargo de candidato a Primeiro-Ministro.
Também se ficou a saber que, após
as reuniões com a Direção da Fenprof, só o grupo parlamentar do PEV (Partido Ecologista “Os Verdes”) terá questionado o Ministro do Trabalho e Segurança Social sobre a
eventual ponderação de rever a Lei e sobre quantos trabalhadores viram suspenso
o pagamento de pensão por incapacidade permanente após a aprovação da Lei de 6
de março de 2016.
Quem tem experiência política ou
administrativa sabe que há debates que nunca esquecem. Se no caso da Lei n.º
11/2014, de 6 de março – cuja iniciativa surgiu de proposta do Governo, que até
resultou do desconforto sentido pelo Governo com as deliberações do TC
relativamente a normas aprovadas pela maioria parlamentar de então – os
deputados não sabem o que votaram, dão um brilhante exemplo da sua (ir)responsabilidade
ante o povo eleitor e o povo contribuinte. E, se isto acontece com outras leis
importantes, saiam de cena!
Era fácil e mais barato. O povo
elegeria 230 deputados, que iriam às sessões de abertura e encerramento de cada
sessão legislativa, às sessões de debate e votação do Orçamento do Estado e às do
relatório da Conta do Estado. Bastavam cinco vezes por ano, como nas
assembleias municipais. Receberiam gratificação por senha de presença, 2% do
vencimento do Presidente da República, e manteriam a sua atividade
profissional. Deixem ficar na AR um representante permanente de cada partido
com voto de peso proporcional ao da representação eleitoral: PS, 5/7; PSD, 6/7;
CDS, 4/7; BE, 3/7; PCP, 2/7; PEV, 2/7; e PAN, 1/7. Estes aprovem as leis, aliás
como acontece com as leis não de valor reforçado, em regime de acordo de
cavalheiros. Sendo poucos, saberão o que aprovam. Caso contrário, sobrepõe-se a
disciplina partidária e a orientação do líder partidário. E os deputados estão lá
porque estão. Nem as comissões de inquérito parlamentar têm produzido
relatórios finais inequívocos do ponto de vista da consecução da verdade dos
factos e do apuramento real das responsabilidades e muito menos do lado da
eficácia.
Pelos vistos, também este Governo
resolve marcar passo e meter-se em copas. O JN
quis saber junto do Ministério da Educação, do Ministério das Finanças e do
Ministério do Trabalho e Segurança Social quantos docentes viram suspensas “as
pensões por incapacidade após a alteração legislativa de 2014 e se o Governo
pondera alterar as normas” em causa, mas não obteve resposta.
***
O que vale é que “são muitos os acidentes nas escolas,” –
diz o próprio Mário Nogueira – “mas
felizmente são poucos, espero, o que resultam em incapacidade”. Mas os
funcionários públicos ficam em desvantagem: com incapacidade, são tratados com
total desrespeito.
Mário Nogueira acredita que a lei
mudará. E eu digo: Mude-se a lei ou o
legislador!
2017.08.23
– Louro de Carvalho
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