quarta-feira, 23 de agosto de 2017

O inefável princípio da igualdade e a inanidade dos deputados

E se em vez dos 230 deputados o Parlamento português passasse a ter apenas sete?!
A questão prende-se com uma peça jornalística do JN (Jornal de Notícias) de hoje, dia 23 de agosto, que dá conta das consequências duma alteração ao artigo 41.º do Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de novembro, introduzida pela Lei n.º 11/2014, de 6 de março, Decreto-lei que já tinha sido alterado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, e pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro. E é de recordar que o Decreto-lei em causa “estabelece o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais ocorridos ao serviço de entidades empregadoras públicas” e que, por sua vez, a Lei n.º 11/2014, de 6 de março, “estabelece mecanismos de convergência do regime de proteção social da função pública com o regime geral da segurança social, procedendo à 4.ª alteração à Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro, à 3.ª alteração ao Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de novembro, e à alteração do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, e revogando normas que estabelecem acréscimos de tempo de serviço para efeitos de aposentação no âmbito da Caixa Geral de Aposentações”.
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O JN dá-nos conta dos casos de uma professora de Inglês e Alemão (3.º ciclo e ensino secundário) e de um professor de Educação Física (3.º ciclo e ensino secundário), que sofreram acidente nas escolas onde prestam serviço docente, pelo que a Caixa Geral de Aposentações (CGA) lhes atribuiu uma pensão pela incapacidade com que ficaram – a primeira com incapacidade de 3% e o segundo, de 4,5%. Porém, o pagamento está suspenso até à aposentação. Agora, não podem acumular vencimento e pensão; e, aquando da aposentação, pode a perceção da pensão sofrer limites. É que se trata de incapacidade parcial, que fica sob o estipulado na alínea b) do n.º do art.º 41.º do Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de novembro, acrescentada pelo art.º 6.º da Lei n.º 11/2014, de 6 de março, como se pode ler:
As prestações periódicas por incapacidade permanente não são acumuláveis: a) […]; b) com a parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução permanente da capacidade geral de ganho do trabalhador, em caso de incapacidade permanente parcial resultante de acidente ou doença profissional.”.
Por outro lado, mantém-se o estipulado na alínea c), que antes era a alínea b):
Com remuneração correspondente a atividade exercida em condições de exposição ao mesmo risco, sempre que esta possa contribuir para o aumento de incapacidade já adquirida”.
E acrescenta o JN:
“Quando se aposentarem, se as duas pensões ultrapassarem um limite [não o especifica], ser-lhes-á descontado um valor mensalmente [não o especifica]. Ou seja, não serão ressarcidos.”.
 Com efeito, o predito artigo 41.º estipula no seu n.º 3, na redação atual:
“São acumuláveis, sem prejuízo das regras de acumulação próprias dos respetivos regimes de proteção social obrigatórios, as prestações periódicas por incapacidade permanente com a pensão de aposentação ou de reforma e a pensão por morte com a pensão de sobrevivência, na parte em que estas excedam aquelas”.
E o seu n.º 4,na redação atual, estipula:
“O disposto nos números anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações, às indemnizações em capital, cujo valor fica limitado à parcela da prestação periódica a remir que houvesse de ser paga de acordo com as regras de acumulação do presente artigo”.
Ora, dantes, em matéria de acumulações, vinha estipulado doutro modo (que fazia toda a diferença): 
“São acumuláveis, sem prejuízo das regras de acumulação próprias dos respetivos regimes de proteção social obrigatórios: a) as pensões por incapacidade permanente com as atribuídas por invalidez ou velhice; b) a pensão por morte com a pensão de sobrevivência, na parte em que esta exceda aquela.”.
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Tendo recebido o pedido de ajuda da parte dos docentes vítimas da Lei, a Fenprof (Federação Nacional de Professores) apresentou queixa ao Provedor de Justiça, que acabou por concluir que a Lei aprovada na anterior legislatura “viola o direito fundamental dos trabalhadores à justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou doença profissional”, bem como o princípio da igualdade consagrado na Constituição (vd art.º 13.º) e no art.º 6.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA). Por isso, o Provedor, a 21 de dezembro de 2016, solicitou ao Tribunal Constitucional (TC) a fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade destas normas, no pressuposto de que, além do que ficou referido, “o legislador desconsidera, em absoluto, que em causa estão prestações pecuniárias que têm um escopo indemnizatório específico”. Mas o TC ainda não se pronunciou, talvez por demasiado ocupado!
A justa reparação pelos danos causados é uma das imposições da nossa lei civil, acima da qual ninguém se pode arrogar o direito de estar. Põe-se, além disso, em causa o princípio da equidade subjacente a quaisquer Constituições vigentes nos Estados civilizados, princípio perfeitamente compatível com o princípio da igualdade. Ademais, o CPA consagra mais princípios invocáveis neste caso: os princípios da justiça e da razoabilidade (art.º 8.º), pelos quais “a Administração Pública deve tratar de forma justa todos aqueles que com ela entrem em relação, e rejeitar as soluções manifestamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das normas jurídicas e das valorações próprias do exercício da função administrativa”; e o princípio da responsabilidade (art.º 16.º) pelo qual “a Administração Pública responde, nos termos da lei, pelos danos causados no exercício da sua atividade”.
Ora, um trabalhador ao serviço duma entidade privada está a coberto de um seguro de acidentes de trabalho e de doença profissional. Assim, nos termos da nossa lei civil, em caso de acidente de trabalho – o equivalente ao acidente de serviço na administração pública – o trabalhador receberia uma indemnização e seria ressarcido das despesas que teve de fazer.
Os professores em causa, à semelhança de outros que se resignaram, queixam-se de não terem sido ressarcidos pelas despesas que tiveram com consultas e tratamentos feitos em virtude dos acidentes. Parece estranho, não ?! Mas aqui entra-se no cruzamento com outras insuficiências sistémicas. Como respondem os hospitais públicos a estes casos? E podem os funcionários públicos contar com a ADSE em acidente de serviço e recorrer ao serviço convencionado ou ao do regime livre? Parece que não. Pelo menos, a prática tem revelado a dificuldade ou a impossibilidade prática. E acenam com a igualdade!
Ora, ao menos neste aspeto, a Lei n.º 11/2014, de 6 de março, é imoral e absurda, pois estabelece a convergência do regime de proteção social da função pública com o regime geral da segurança social apenas no que interessa ao Estado, esquecendo-se de acionar os outros mecanismos de igualdade para satisfazer os princípios da equidade e da justiça. É uma lei ainda mais coxa do que aquelas que pretendeu “melhorar” ou endireitar. Certo. Os nossos deputados não têm vocação para endireitas! Terão jeito para o quê?
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Há ainda outro aspeto grave a considerar. Após a queixa feita ao Provedor de Justiça, Mário Nogueira (aquele que as más línguas dizem que manda no Governo), secretário-geral da Fenprof, pediu audiências aos partidos. E o resultado é brilhante:
Todos os deputados se mostraram surpreendidos, nenhum se lembrava da aprovação das normas, concordaram que era um absurdo, mas nenhum apresentou uma proposta de alteração”.
Das duas, uma: ou Mário Nogueira teve muito pouca sorte em consultar apenas deputados que não estavam na Assembleia da República (AR) na anterior legislatura ou, o que é mais provável, os nossos deputados sofrem de “bavismo”, um mal que acossou a antiga PT. Por outro lado, os deputados da área da coligação pós-eleitoral de 2011 alinhavam quase automaticamente com o Governo, em que Paulo Portas em 2013/2014 estava mais preocupado com a gestão da área económica e sem tanta preocupação com as linhas vermelhas, ao passo que o PS estava com a crise interna das eleições primárias para o cargo de candidato a Primeiro-Ministro.
Também se ficou a saber que, após as reuniões com a Direção da Fenprof, só o grupo parlamentar do PEV (Partido Ecologista “Os Verdes”) terá questionado o Ministro do Trabalho e Segurança Social sobre a eventual ponderação de rever a Lei e sobre quantos trabalhadores viram suspenso o pagamento de pensão por incapacidade permanente após a aprovação da Lei de 6 de março de 2016.
Quem tem experiência política ou administrativa sabe que há debates que nunca esquecem. Se no caso da Lei n.º 11/2014, de 6 de março – cuja iniciativa surgiu de proposta do Governo, que até resultou do desconforto sentido pelo Governo com as deliberações do TC relativamente a normas aprovadas pela maioria parlamentar de então – os deputados não sabem o que votaram, dão um brilhante exemplo da sua (ir)responsabilidade ante o povo eleitor e o povo contribuinte. E, se isto acontece com outras leis importantes, saiam de cena!
Era fácil e mais barato. O povo elegeria 230 deputados, que iriam às sessões de abertura e encerramento de cada sessão legislativa, às sessões de debate e votação do Orçamento do Estado e às do relatório da Conta do Estado. Bastavam cinco vezes por ano, como nas assembleias municipais. Receberiam gratificação por senha de presença, 2% do vencimento do Presidente da República, e manteriam a sua atividade profissional. Deixem ficar na AR um representante permanente de cada partido com voto de peso proporcional ao da representação eleitoral: PS, 5/7; PSD, 6/7; CDS, 4/7; BE, 3/7; PCP, 2/7; PEV, 2/7; e PAN, 1/7. Estes aprovem as leis, aliás como acontece com as leis não de valor reforçado, em regime de acordo de cavalheiros. Sendo poucos, saberão o que aprovam. Caso contrário, sobrepõe-se a disciplina partidária e a orientação do líder partidário. E os deputados estão lá porque estão. Nem as comissões de inquérito parlamentar têm produzido relatórios finais inequívocos do ponto de vista da consecução da verdade dos factos e do apuramento real das responsabilidades e muito menos do lado da eficácia.
Pelos vistos, também este Governo resolve marcar passo e meter-se em copas. O JN quis saber junto do Ministério da Educação, do Ministério das Finanças e do Ministério do Trabalho e Segurança Social quantos docentes viram suspensas “as pensões por incapacidade após a alteração legislativa de 2014 e se o Governo pondera alterar as normas” em causa, mas não obteve resposta.
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O que vale é que “são muitos os acidentes nas escolas,” – diz o próprio Mário Nogueira – “mas felizmente são poucos, espero, o que resultam em incapacidade”. Mas os funcionários públicos ficam em desvantagem: com incapacidade, são tratados com total desrespeito.
Mário Nogueira acredita que a lei mudará. E eu digo: Mude-se a lei ou o legislador!
2017.08.23 – Louro de Carvalho


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