Cavaco Silva
terminou a sua aula na Universidade de Verão do PSD, em Castelo de Vide, a aconselhar
aos jovens a leitura dum artigo da jornalista Maria João Avillez no jornal
online “Observador”, intitulado “O meu mundo não é deste reino”.
Não
sou um jovem da JSD nem me revejo no discurso do professor. No entanto, por
curiosidade fui no seguimento de tal referência sitográfica e li o artigo.
Começo
por dizer que a jornalista faz a inversão da frase sentenciosa de Jesus ante
Pilatos “O meu Reino não é deste mundo”
(Jo
18,36) para “O meu mundo não é deste reino”, tal como
Sophia de Mello Breyner Andresen o faz, no poema “As pessoas sensíveis”, da prece de Cristo na cruz, “Pai, perdoai-lhes porque eles não sabem o
que fazem” (Lc 23,34), para “Perdoai-lhes,
Senhor / Porque eles sabem o que fazem”.
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uma nova forma de vida”; do outro
lado, “não há voz nem vontade” a ponto de se
questionar se “o comprometimento deixou de ter significado e perdeu poder de
convocatória”.
E acusa os novos proprietários do poder de nunca se cansarem
na sua ferocidade vigilante, na implacabilidade persecutória ou na sonoridade
da censura. Aponta, por consequência, a inflexibilidade da “nova cartilha” dos
“seus mandamentos” que não inclui
“desvios” e, em regime de “subversão civilizacional em curso”, veta “a nobre
arte de debater, a esgrima dos argumentos, a relevância da dúvida, o valor da
discordância”.
Do
lado contrário ao dos novos proprietários, estamos alegadamente nós, os que
eles querem “fora de pé, ao largo de nós próprios, cortados pela raiz do que
somos e representamos” ou transformados “noutros, atraiçoando o nosso ‘nós’ individual
e anestesiando o ‘nós’ coletivo”.
O castigo
feroz, sem contemplação, conhece apenas “o limite da sua própria obscenidade”,
pois, a análise psicológica a que a jornalista procede determina que “a
intimidação, a denúncia, a manipulação, a mentira, o escárnio público,
abater-se-ão sobre os prevaricadores, qual raio ou trovão”. E, na sua ótica,
apenas se vislumbra uma solução: a obtenção de “licença prévia para pensar e
depois dizer alto o que se pensou”. Com efeito – indigna-se –, “qualquer ‘forma
mentis’ que não encaixe no novo código de conduta está automaticamente
banida do seu direito de cidade, privada do oxigénio da liberdade e da
vitamínica possibilidade da interrogação e debate”. E classifica a
situação com outro rótulo: “Há uma guerra cultural em curso”.
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Tenho
de estar de acordo com a descrição psicossocial feita dos donos da verdade, mas
não creio que se trate de subversão civilizacional nem que tal descrição quadre
exclusivamente à esquerda ou à extrema-esquerda. Qualquer censor político, a
não ser que seja estúpido, manipula com mestria e habilidade os instrumentos de
que dispõe. É efetivamente uma guerra cultural putativamente presente em todas
as civilizações em que os decisores sintam que a manutenção do poder está em
risco. Passeie-se a jornalista por essas autarquias fora e diga se não encontra
multiformes casos de escola de pensamento único, mecanismos de dependência
quase institucionalizados. Olhe, ao mesmo tempo, se puder, para o espectro da
comunicação social e veja se encontra raras exceções de independência face ao
espartilho da inevitabilidade, ao amordaçamento do poder económico ou ao
capricho da ferocidade do poder financeiro.
Também
eu lamento os casos de espartilho criados pela CIG (comissão
para a cidadania e identidade de género)
ou pela ARL (associação república e laicidade), mas também me entedia a
limitação do debate político ou os comentadores monocórdicos ao serviço da
perspetiva económica reinante – e também eu digo, talvez por outras razões, que
não admito que o meu mundo seja desse reino – ou dos programas, notícias, edições
novelísticas em que tudo é preparado para engrossamento de audiência, venda de
papel ou subversão do debate das grandes questões científicas, éticas e
políticas no que elas têm de fraturante e/ou de legitimação de práticas não
consentâneas com as leis ou com os costumes. Porém, nem uma letra se vê ou um
ai se ouve da parte dos ditos jornalistas sensatos ou formadores de opinião
isentos!
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Apesar
de tudo, ainda se pode respirar na sociedade a aura da pluralidade de
pensamento, de opinião e de ciência, embora tema que as academias e as ordens
profissionais, que deviam ser os baluartes, respetivamente, da ciência
independente e da autonomia profissional, enveredem com facilidade pela bitola
do politicamente correto. E, se a eminente colunista do Observador viu a leitura do seu texto recomendada por Cavaco Silva,
é porque este se reviu no seu teor, que afinal em muito se assemelha às tiradas
premonitórias e/ou pressagiantes do exercício presidencial do cidadão de
Boliqueime e mesmo ao texto pré-presidencial da má moeda a eliminar a boa
moeda, bem como ao discurso do apelo ao sobressalto democrático lançado a 9 de
março de 2011 (dia da segunda tomada de posse do Presidente Cavaco).
Ora,
é caso para a pertinente interrogação: Se “os novos proprietários das mentes e costumes não valem grande coisa
eleitoralmente, nunca governarão sozinhos, o seu número no país é inversamente
proporcional ao eco mediático que os propaga”, porquê tão grande
verborreia?
E a
jornalista tem a resposta. Não sei se a profere no mesmo sentido em que eu a
leio:
“Para quem não estiver distraído nada
disso tem, porém, grande importância”. Efetivamente, “eles valem pelo que os
deixamos conseguir valer”.
Pois bem. Se
a resposta induz o combate primário e exclusivo a um determinado setor por ser
de esquerda ou de direita, recuso-a; se ela vale como combate a todas as formas
de amordaçamento do pensamento, da opinião, da ação e da ciência – venham elas
donde vierem – aceito e sigo. Foi censório e promotor do pensamento único o
Estado Novo (com a
censura ou com o exame prévio e com o livro único na escola), foi-o a Junta de Salvação Nacional
(com as comissões ad hoc junto de órgãos da comunicação
social), foi-o o PREC (com o COPCON, a 5.ª Divisão do EMGFA,
o controlo da comunicação social através dos diretores, o fecho do “República”…). E foi-o a democracia estabelecida.
Quem não se lembra do desdém de Cavaco pelos jornais, que não lia, ou do cerco
proposto por Pacheco aos jornalistas no Parlamento ou da afirmação de Mário
Soares, que veio mais tarde a confessar publicamente a tentação de controlo da
comunicação social? Quem não topou que uma forma de limitação do pensamento e
da expressão é a concentração da Comunicação Social nas mãos de poucos, mas
poderosos, grupos económicos? Aliás, como era a liberdade da 1.ª República? Que
liberdade denota a liberalíssima portaria que determinou o encerramento das Conferências do Casino (Também seria de extrema-esquerda?)? E em que reinado de esquerda foi
criada a Real Mesa Censória?
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Os doutrinadores
do pensamento único valem “pelo êxito aparente com que esfarelam as fundações do
berço civilizacional de onde somos”? Não, de todo. A civilização conquistada só
se perde se quisermos. Valem pelo modo como calcinam o nosso mundo? Talvez, mas
importa que nos assumamos como deste mundo e deste reino. Valem por exibirem o
fôlego e a mestria da “demencial empreitada” de formatação das nossas mentes, anestesia
das reações, domesticação do instinto, inculcação do receio de destoar, do
risco de expulsão do coro uníssono? Sim, é um risco, uma tentação. Mas há um antídoto
poderoso: a formação das consciências, a formação política, a determinação em
intervir propondo e divulgando os nossos pensamentos e criando as nossas
estruturas associativas de reflexão, debate e ação; e não nos refugiando na
função de produtivas carpideiras ou na circunscrição da nossa intervenção ao
nível da eufemística expressão da cidadania descafeinada.
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Diz Avillez
que nos separamos do movimento democrático europeu numa linha de fratura que
agrava a vulnerabilidade da nossa condição face à catástrofe. Lamenta que não
haja quem reclame o espaço de metade do país que se encontra à direita do PS ou
que poucos dele cuidem, “a não ser partidos exaustos e envelhecidos e meia
dúzia de respeitáveis (e
resistentes) políticos
ou intelectuais”. Entre as exceções, que se manifestam “quase em surdina e
desastradamente”, destaca a CIP. E, “quanto à Universidade”, diz ela que “faz
pagar caro a professores e mestres fora do reduto da esquerda e agora fora do
jardim envenenado do pensamento único ou da tirania do politicamente correto”. Não
sei se assim é, tendo em conta o que afirmou acaloradamente Costa Andrade,
ainda não há muito tempo a um dos programas “Prós e Contras” da RTP1. Mas a Universidade, a meu ver, tem
claudicado não tanto face aos políticos (e quais os governos que introduziram mais cortes à Universidade?) como face aos interesses
económicos,
Refere que,
desde 1974, os media suportam mal a ‘ideia’
de direita ou mesmo de centro-direita, troçando ou destruindo os seus líderes e
ajudando a acabar com eles (Destruíram Portas, Adriano Moreira, Marcelo, Cavaco, Rio…?), mesmo que o voto os legitime”; e
que, ao invés de outros países, “em Portugal nunca se impôs, com substância e
caráter definitivo, um jornal ou algo de parecido com um órgão de comunicação
social de centro-direita, conservador ou menos conservador”. Ora, se assim se
lamenta, porque não o fez quando se deu o encerramento do jornal “Tempo” ou do jornal “O independente”? Porque não lê o semanário
“O Diabo”, que sai à terça-feira? Quererá
convencer-nos de que a SIC, a TVI, a própria RTP ou a CMTV são órgãos de
esquerda? Aliás, qual é o jornal que, com a exceção de alguns artigos, não está
alinhado com os interesses económicos dominantes (e nisto não há esquerda e direita)? E porque é que os grupos económicos
deixaram finar o “Tempo” e “O independente”? Deixaram de interessar!
Sim, há uma
coisa que Avillez com verdade confrangedora, embora a formule na forma interrogativa:
as elites são tão frágeis, a dependência do Estado é avassaladora. E, há
sobretudo, grupos dominantes que pretendes que o Estado tenha pouco espaço, mas
que pretendem viver à custa do Estado ou que este lhes valha quando der jeito. Já
Camões diz que o dinheiro, às vezes, deprava as ciências, cega os juízos e as
consciências, interpreta subtilmente os textos, faz e desfaz leis e corrompe os
que se dedicam a Deus (cf
Os Lusíadas, VIII, 98-99).
Ora, assim
não vamos lá. O caminho é outro, o da formação, da assunção das
responsabilidades políticas e éticas e da intervenção pública em prol do
pluralismo e do bem comum.
2017.08.31 – Louro de Carvalho
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