quinta-feira, 31 de agosto de 2017

A guerra cultural ou a subversão civilizacional em curso?

Cavaco Silva terminou a sua aula na Universidade de Verão do PSD, em Castelo de Vide, a aconselhar aos jovens a leitura dum artigo da jornalista Maria João Avillez no jornal online “Observador”, intitulado “O meu mundo não é deste reino”.
Não sou um jovem da JSD nem me revejo no discurso do professor. No entanto, por curiosidade fui no seguimento de tal referência sitográfica e li o artigo.
Começo por dizer que a jornalista faz a inversão da frase sentenciosa de Jesus ante Pilatos “O meu Reino não é deste mundo” (Jo 18,36) para “O meu mundo não é deste reino”, tal como Sophia de Mello Breyner Andresen o faz, no poema “As pessoas sensíveis”, da prece de Cristo na cruz, “Pai, perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem” (Lc 23,34), para “Perdoai-lhes, Senhor / Porque eles sabem o que fazem”.
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Maria João Avillez, no dia 28 de agosto, partiu do princípio de que estamos numa “guerra cultural” hipoteticamente marcada por uma fratura grande.
Dum lado, está a atenção, a vigilância, a mobilização “pelo pensamento único” como “uma nova forma de vida”; do outro lado, “não há voz nem vontade” a ponto de se questionar se “o comprometimento deixou de ter significado e perdeu poder de convocatória”.
E acusa os novos proprietários do poder de nunca se cansarem na sua ferocidade vigilante, na implacabilidade persecutória ou na sonoridade da censura. Aponta, por consequência, a inflexibilidade da “nova cartilha” dos “seus mandamentos” que não inclui “desvios” e, em regime de “subversão civilizacional em curso”, veta “a nobre arte de debater, a esgrima dos argumentos, a relevância da dúvida, o valor da discordância”.
Do lado contrário ao dos novos proprietários, estamos alegadamente nós, os que eles querem “fora de pé, ao largo de nós próprios, cortados pela raiz do que somos e representamos” ou transformados “noutros, atraiçoando o nosso ‘nós’ individual e anestesiando o ‘nós’ coletivo”.
O castigo feroz, sem contemplação, conhece apenas “o limite da sua própria obscenidade”, pois, a análise psicológica a que a jornalista procede determina que “a intimidação, a denúncia, a manipulação, a mentira, o escárnio público, abater-se-ão sobre os prevaricadores, qual raio ou trovão”. E, na sua ótica, apenas se vislumbra uma solução: a obtenção de “licença prévia para pensar e depois dizer alto o que se pensou”. Com efeito – indigna-se –, “qualquer forma mentis’ que não encaixe no novo código de conduta está automaticamente banida do seu direito de cidade, privada do oxigénio da liberdade e da vitamínica possibilidade da interrogação e debate”. E classifica a situação com outro rótulo: “Há uma guerra cultural em curso”.
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Tenho de estar de acordo com a descrição psicossocial feita dos donos da verdade, mas não creio que se trate de subversão civilizacional nem que tal descrição quadre exclusivamente à esquerda ou à extrema-esquerda. Qualquer censor político, a não ser que seja estúpido, manipula com mestria e habilidade os instrumentos de que dispõe. É efetivamente uma guerra cultural putativamente presente em todas as civilizações em que os decisores sintam que a manutenção do poder está em risco. Passeie-se a jornalista por essas autarquias fora e diga se não encontra multiformes casos de escola de pensamento único, mecanismos de dependência quase institucionalizados. Olhe, ao mesmo tempo, se puder, para o espectro da comunicação social e veja se encontra raras exceções de independência face ao espartilho da inevitabilidade, ao amordaçamento do poder económico ou ao capricho da ferocidade do poder financeiro.
Também eu lamento os casos de espartilho criados pela CIG (comissão para a cidadania e identidade de género) ou pela ARL (associação república e laicidade), mas também me entedia a limitação do debate político ou os comentadores monocórdicos ao serviço da perspetiva económica reinante – e também eu digo, talvez por outras razões, que não admito que o meu mundo seja desse reino – ou dos programas, notícias, edições novelísticas em que tudo é preparado para engrossamento de audiência, venda de papel ou subversão do debate das grandes questões científicas, éticas e políticas no que elas têm de fraturante e/ou de legitimação de práticas não consentâneas com as leis ou com os costumes. Porém, nem uma letra se vê ou um ai se ouve da parte dos ditos jornalistas sensatos ou formadores de opinião isentos!  
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Apesar de tudo, ainda se pode respirar na sociedade a aura da pluralidade de pensamento, de opinião e de ciência, embora tema que as academias e as ordens profissionais, que deviam ser os baluartes, respetivamente, da ciência independente e da autonomia profissional, enveredem com facilidade pela bitola do politicamente correto. E, se a eminente colunista do Observador viu a leitura do seu texto recomendada por Cavaco Silva, é porque este se reviu no seu teor, que afinal em muito se assemelha às tiradas premonitórias e/ou pressagiantes do exercício presidencial do cidadão de Boliqueime e mesmo ao texto pré-presidencial da má moeda a eliminar a boa moeda, bem como ao discurso do apelo ao sobressalto democrático lançado a 9 de março de 2011 (dia da segunda tomada de posse do Presidente Cavaco).
Ora, é caso para a pertinente interrogação: Se “os novos proprietários das mentes e costumes não valem grande coisa eleitoralmente, nunca governarão sozinhos, o seu número no país é inversamente proporcional ao eco mediático que os propaga”, porquê tão grande verborreia?
E a jornalista tem a resposta. Não sei se a profere no mesmo sentido em que eu a leio:
“Para quem não estiver distraído nada disso tem, porém, grande importância”. Efetivamente, “eles valem pelo que os deixamos conseguir valer”.
Pois bem. Se a resposta induz o combate primário e exclusivo a um determinado setor por ser de esquerda ou de direita, recuso-a; se ela vale como combate a todas as formas de amordaçamento do pensamento, da opinião, da ação e da ciência – venham elas donde vierem – aceito e sigo. Foi censório e promotor do pensamento único o Estado Novo (com a censura ou com o exame prévio e com o livro único na escola), foi-o a Junta de Salvação Nacional (com as comissões ad hoc junto de órgãos da comunicação social), foi-o o PREC (com o COPCON, a 5.ª Divisão do EMGFA, o controlo da comunicação social através dos diretores, o fecho do “República”…). E foi-o a democracia estabelecida. Quem não se lembra do desdém de Cavaco pelos jornais, que não lia, ou do cerco proposto por Pacheco aos jornalistas no Parlamento ou da afirmação de Mário Soares, que veio mais tarde a confessar publicamente a tentação de controlo da comunicação social? Quem não topou que uma forma de limitação do pensamento e da expressão é a concentração da Comunicação Social nas mãos de poucos, mas poderosos, grupos económicos? Aliás, como era a liberdade da 1.ª República? Que liberdade denota a liberalíssima portaria que determinou o encerramento das Conferências do Casino (Também seria de extrema-esquerda?)? E em que reinado de esquerda foi criada a Real Mesa Censória?
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Os doutrinadores do pensamento único valem “pelo êxito aparente com que esfarelam as fundações do berço civilizacional de onde somos”? Não, de todo. A civilização conquistada só se perde se quisermos. Valem pelo modo como calcinam o nosso mundo? Talvez, mas importa que nos assumamos como deste mundo e deste reino. Valem por exibirem o fôlego e a mestria da “demencial empreitada” de formatação das nossas mentes, anestesia das reações, domesticação do instinto, inculcação do receio de destoar, do risco de expulsão do coro uníssono? Sim, é um risco, uma tentação. Mas há um antídoto poderoso: a formação das consciências, a formação política, a determinação em intervir propondo e divulgando os nossos pensamentos e criando as nossas estruturas associativas de reflexão, debate e ação; e não nos refugiando na função de produtivas carpideiras ou na circunscrição da nossa intervenção ao nível da eufemística expressão da cidadania descafeinada.
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Diz Avillez que nos separamos do movimento democrático europeu numa linha de fratura que agrava a vulnerabilidade da nossa condição face à catástrofe. Lamenta que não haja quem reclame o espaço de metade do país que se encontra à direita do PS ou que poucos dele cuidem, “a não ser partidos exaustos e envelhecidos e meia dúzia de respeitáveis (e resistentes) políticos ou intelectuais”. Entre as exceções, que se manifestam “quase em surdina e desastradamente”, destaca a CIP. E, “quanto à Universidade”, diz ela que “faz pagar caro a professores e mestres fora do reduto da esquerda e agora fora do jardim envenenado do pensamento único ou da tirania do politicamente correto”. Não sei se assim é, tendo em conta o que afirmou acaloradamente Costa Andrade, ainda não há muito tempo a um dos programas “Prós e Contras” da RTP1. Mas a Universidade, a meu ver, tem claudicado não tanto face aos políticos (e quais os governos que introduziram mais cortes à Universidade?) como face aos interesses económicos,
Refere que, desde 1974, os media suportam mal a ‘ideia’ de direita ou mesmo de centro-direita, troçando ou destruindo os seus líderes e ajudando a acabar com eles (Destruíram Portas, Adriano Moreira, Marcelo, Cavaco, Rio…?), mesmo que o voto os legitime”; e que, ao invés de outros países, “em Portugal nunca se impôs, com substância e caráter definitivo, um jornal ou algo de parecido com um órgão de comunicação social de centro-direita, conservador ou menos conservador”. Ora, se assim se lamenta, porque não o fez quando se deu o encerramento do jornal “Tempo” ou do jornal “O independente”? Porque não lê o semanário “O Diabo”, que sai à terça-feira? Quererá convencer-nos de que a SIC, a TVI, a própria RTP ou a CMTV são órgãos de esquerda? Aliás, qual é o jornal que, com a exceção de alguns artigos, não está alinhado com os interesses económicos dominantes (e nisto não há esquerda e direita)? E porque é que os grupos económicos deixaram finar o “Tempo” e “O independente”? Deixaram de interessar!
Sim, há uma coisa que Avillez com verdade confrangedora, embora a formule na forma interrogativa: as elites são tão frágeis, a dependência do Estado é avassaladora. E, há sobretudo, grupos dominantes que pretendes que o Estado tenha pouco espaço, mas que pretendem viver à custa do Estado ou que este lhes valha quando der jeito. Já Camões diz que o dinheiro, às vezes, deprava as ciências, cega os juízos e as consciências, interpreta subtilmente os textos, faz e desfaz leis e corrompe os que se dedicam a Deus (cf Os Lusíadas, VIII, 98-99).
Ora, assim não vamos lá. O caminho é outro, o da formação, da assunção das responsabilidades políticas e éticas e da intervenção pública em prol do pluralismo e do bem comum.

2017.08.31 – Louro de Carvalho

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