Li com a devida atenção um texto de Jorge Aquino, ose – presbítero da Igreja Episcopal Anglicana do
Brasil – sob o título “Maria na tradição da
Igreja Anglicana”, do qual se recolhem dados interessantes, que selecionei e
sintetizei nos termos que vêm a seguir.
Diz o reverendo, embora passando ao lado dos textos de Calvino,
Lutero e dos demais reformadores (que também comportam ensinamentos relevantes nesta
matéria),
que a Tradição
Anglicana “possui em seu seio muito da tradição luterana e calvinista, o que
pode facilitar a reflexão”.
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Resenha da panorâmica anglicana
Constituem a Comunhão
Anglicana 40 Províncias (Igrejas) autónomas e autocéfalas,
presentes em 164 países, congregando atualmente cerca de 95 milhões de pessoas.
Estas Igrejas estão em comunhão com a
Sé de Cantuária e possuem uma comum história, espiritualidade, liturgia e um ethos, para lá de importantes instâncias
internacionais como a Conferência de
Lambeth (reúne
de 10 em 10 anos os bispos anglicanos), a Reunião
dos Primazes e o Conselho Consultivo
Anglicano – instâncias não deliberativas – pois cada Província é autocéfala
– mas portadoras de “um enorme poder espiritual e representativo”. E a sua grande
marca é o ethos inclusivo,
compreensivo e diverso, situando o anglicanismo numa espécie de via média entre
Roma (catolicismo) e Genebra (tradição protestante). O anglicanismo
reconhece os séculos de tradição recebidos da Patrística e da Escolástica, mas
não enjeita o sopro renovador da Reforma protestante. Assim, na prática, algumas
comunidades identificam-se mais com a tradição católica (anglo-católicos ou Alta
Igreja); e
outras ligam-se mais à vertente reformada (Baixa Igreja).
A
grande divergência em relação aos católicos romanos assenta no estatuto do
Bispo de Roma, pois a estrutura anglicana assemelha-se mais à da Igreja
Ortodoxa, com uma autoridade dispersa, sendo o Arcebispo de Cantuária visto
como símbolo de unidade e primeiro entre iguais. Os anglicanos
refletem teologicamente segundo o “tripé
de Hooker”: Bíblia, Tradição Católica e Razão, enquanto os protestantes
valorizam a Escritura e são latitudinários à razão e os anglo-católicos
ressaltam o valor da Tradição, com especial ênfase nos 7 concílios ecuménicos.
O
desenvolvimento da ala anglo-católica do anglicanismo teve lugar sobretudo no
século XIX e está associado ao Movimento de Oxford. Dois dos seus
líderes, John Henry Newman e Henry Edward Manning, ambos clérigos anglicanos,
acabaram por aderir à Igreja Católica e tornaram-se Cardeais.
Embora
o termo ‘catolicismo’ seja usado para designar a Igreja Católica
Apostólica Romana, muitos anglicanos (e outras igrejas protestantes) usam-no para se
referirem também a si, como parte da Igreja Católica geral (e não apenas Romana). Na verdade, algumas
igrejas anglicanas, como a Catedral de St. Patrick, em Dublin, ou a
Catedral Nacional da Igreja da Irlanda (anglicana), referem-se a si próprias como parte da
“Comunhão Católica” e como “Igrejas Católicas”.
A prática da Igreja Anglicana reserva um lugar especial a Maria,
um espaço bem maior do que o encontrado em outras comunidades da Reforma.
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Em termos factuais
Com efeito, a Igreja Anglicana tem muitas paróquias e catedrais
dedicadas à memória da Virgem, por exemplo, a St Mary’s
Cathedral, em Edinburgh, Escócia, a Igreja de St. Mary, em Nackington, Inglaterra, a Igreja de St. Mar, em Hong Kong, e tantas outras Igrejas e
catedrais dedicadas à memória da mãe do Salvador.
É também prática muito comum, em toda a Comunhão Anglicana,
dedicar-se, pelo menos, uma capela nas grandes igrejas e catedrais à Virgem e
usar-se, nesses lugares, a figura de ícones marianos. Assim, a Catedral de
Cantuária possui, no lado norte, a Capela da Bem-aventurada Virgem Maria. Além
disso, em paróquias fortemente anglo-católicas, regista-se a presença de
imagens de Maria. Pode mencionar-se, por exemplo, a presença duma imagem
conhecida como “Our Lady of Canterbury” na
cripta da Igreja Catedral de Cristo (Canterbury).
Outra prática comum à tradição anglo-católica é a existência de
lugares de peregrinação mariana, onde é lembrada a pessoa da Virgem e vivido o
seu exemplo. Pode referir-se, por exemplo, a capela de Nossa Senhora de
Walsingham, na Inglaterra, que recebe anualmente, desde 1061, milhares de pessoas
que lá vão lembrar a dedicação da Virgem ao Senhor e agradecer a Deus por ela.
E não podem ficar no olvido as muitas comunidades religiosas de
espiritualidade mariana que existem em todo o mundo. De facto, a Comunhão
Anglicana possui muitas comunidades (monásticas ou não, mistas ou não, celibatárias
ou não) em
que Maria é vista como exemplo e padrão de espiritualidade. Na Inglaterra,
entre as inúmeras, destacam-se: The Community of Our Lady &
Saint John, The Community of St Mary the
Virgin, The Community of Blessed Lady
Mary, e The Congregation of the Sisters
of the Visitation of Our Lady.
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A nível da Teologia
A Comunhão Anglicana sói dizer que não tem uma teologia oficial
comum. Enquanto os luteranos estão ligados à pessoa e ideias de Martinho Lutero,
os presbiterianos e reformados autointitulam-se “calvinistas” e o “tomismo” já teve
(e continua
a ter) um
certo status na Igreja Romana. Porém,
o anglicanismo não pretendeu ser luterano, calvinista ou tomista. Na realidade,
existem no seio do anglicanismo aquelas três correntes e muitas outras. A
Igreja, no entanto, nunca se autodefiniu como seguidora “deste” ou “daquele” teólogo.
Questionados sobre o conteúdo da fé anglicana, normalmente os anglicanos
apresentam o Livro de Oração Comum (LOC) como um texto que contém os pontos da crença.
A Igreja crê como ora: Lex credendi lex orandi.
E é assim em relação à pessoa da Virgem Maria: pesquisando o LOC, percebe-se o
lugar dado à mãe do Salvador na Igreja Anglicana.
Além de ser mencionada dominicalmente na recitação do Símbolo dos Apóstolos ou no Credo Niceno, o LOC faz referência
explícita à Virgem noutras ocasiões, em especial no Calendário, nos Próprios,
nas Orações Eucarísticas e no Hinário.
No calendário do LOC, encontram-se três datas dedicadas a Maria:
a festa da Anunciação da Bem-aventurada Virgem Maria, a 25 de março; a festa da
Visitação da Bem-aventurada Virgem Maria, a 31 de maio; e a festa da
Bem-aventurada Virgem Maria, a 15 de agosto. Além disso, os antigos LOC referiam
outra festa, a da “Purificação da Virgem Maria”, a 2
de fevereiro, que passou a chamar-se de “Apresentação de Nosso Senhor
Jesus Cristo no Templo”.
Os Próprios destes
dias dão pistas sobre o papel que a Virgem Maria desempenha na teologia
anglicana. O primeiro, lido no dia 25 de março, contém a seguinte oração (como no catolicismo):
“Suplicamos-te, Senhor, que dotes com tua
graça os nossos corações, para que, assim como pela mensagem de um anjo à
Virgem Maria havemos conhecido a encarnação de teu filho Jesus Cristo, também
por sua paixão e cruz sejamos levados à glória de sua ressurreição. Por Jesus
Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e com o Espírito santo, um só
Deus, agora e sempre. Amém.”
O segundo, que menciona a Virgem Maria, é o de 31 de maio, da
Visitação da Bem-aventurada Virgem, e que diz:
“Ó Pai Celestial, por cuja graça uma
virgem pura foi escolhida e abençoada para ser mãe de teu Filho, Jesus, mas
muito mais abençoada em ter ouvido e guardado tua palavra; concede, a nós que
honramos a exaltação de sua humildade, sigamos o exemplo de sua devoção à tua
vontade. Por Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e com o
Espírito santo, um só Deus, agora e sempre. Amém.”
E o Próprio do dia 15
de agosto diz:
“Ó Deus, que chamaste à tua presença
Maria, bem-aventurada mãe de teu Filho Encarnado, por cujo sangue fomos
redimidos; concede-nos participar com ela na glória do teu eterno reino, por
Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e com o Espírito santo, um
só Deus, agora e sempre. Amém.”
Em relação às Orações Eucarísticas, Maria é mencionada na oração eucarística do Rito II, quando se diz acerca do filho: “Tu O enviaste para assumir a carne humana, nascer da Virgem Maria e ser o Salvador e Redentor do mundo”. E também aparece no corpo da Grande Oração Eucarística B que diz:
Em relação às Orações Eucarísticas, Maria é mencionada na oração eucarística do Rito II, quando se diz acerca do filho: “Tu O enviaste para assumir a carne humana, nascer da Virgem Maria e ser o Salvador e Redentor do mundo”. E também aparece no corpo da Grande Oração Eucarística B que diz:
Ainda nesta mesma Oração, a Virgem aparece uma segunda vez ao
dizer-se:
“E concede que participemos da herança dos Santos, [com a Bem-aventurada
Virgem Maria, os Patriarcas, Profetas, Apóstolos e Mártires (e com NN)] e com
todos os que tiveram o teu favor nos tempos passados”.
As últimas referências feitas à Virgem Maria no LOC encontram-se
nos lecionários dominicais e diários dos Dias
Santos, acompanhadas com as respetivas leituras da Escritura.
O Hinário Anglicano possui poucas músicas referentes à Mãe do
Salvador. Não obstante, destacam-se algumas das indicadas para os momentos
litúrgicos que celebram os eventos da história da salvação (vg: Natal e Epifania) e as que apresentam a
Mãe do Salvador ao lado dos apóstolos e demais santos em louvor ao Trino Deus
ou a Cristo. Como exemplo deste tipo de Música, pode citar-se a terceira
estrofe do hino 218 que diz:
“Ó Virgem Mãe do
Redentor, /
Cheia de graça, em seu louvor / Também cantas – aleluia! / Lá
nas alturas entre os anjos, / Na companhia dos arcanjos: / Aleluia!
Aleluia! Aleluia! Aleluia! Aleluia!”
De entre os hinos que podem servir de exemplo para as festas
litúrgicas, é de relevar o n.º 107 do Hinário Episcopal, do Rev. Henrique Todd
Júnior, apropriado para a festa da anunciação:
Honra demos a Maria,
Virgem bem-aventurada. / Adoremos a seu filho, luz do céu a nós mandada. / Deus-menino
veio à terra, Virgem-Mãe lhe deu beleza. / Fez-se carne o eterno Verbo,
Nossa é dele a natureza. / Honra ao filho de Maria! Em seu lar de
piedade, / Nem pobreza, nem fadiga, Nele impedem a bondade / Seu
amor à mãe bendita é constante, puro e forte; / Se deveres os separam,
nela pensa até na morte. / Toda a glória ao Pai se oferte, toda a glória
ao Filho seja, / Toda a glória ao Paráclito – cante sempre a santa
Igreja. / Essa mesma trilogia, lá no céu Maria entoa, / Repetida
pelos santos, pela terra inteira ecoa!”
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Em suma, se é verdade que “quem procura um santo busca um
exemplo”, vale a pena olhar para a Virgem Maria como um exemplo em
muitas áreas da vida, desde logo pela humildade. Ao ser confrontada com o Anjo,
ela reconhece a sua condição humana e fala de sua indignidade. E este é um
grande ensinamento: Maria mostra-nos que Deus pode “encher de graça” aqueles que dela necessitam. E Lutero,
comentando o Magnificat, explica porque traduziu
o termo “humildade” por “nulidade” ou “ser insignificante”, afirmando que Maria pretendia
dizer:
“Deus
olhou para mim, uma moça pobre, desprezada e insignificante. Ele poderia ter
escolhido ricas importantes, nobres e poderosas rainhas, filhas de príncipes e
grandes autoridades. Poderia muito bem ter escolhido a filha de Anás ou Caifás,
que teriam sido os maiorais do país. Porém ele olhou para mim, por pura bondade
e usou para este fim uma moça humilde e desprezada. Diante dele ninguém deveria
vangloriar-se de ter sido digno disso. Também eu tenho que confessar que se
trata de pura graça e bondade. Não há merecimento ou dignidade nenhuma de minha
parte.”
Para Lutero, Maria, “a doce virgem”,
não se vangloria da sua dignidade e nem tão pouco da sua indignidade, mas
apenas do olhar gracioso de Deus sobre ela. Segundo o reformador, ela não se envaideceria da sua virgindade
nem da sua humildade, mas apenas da graciosa observação divina. Por isso, nos
diz,
“A ênfase não está na
palavrinha ‘humildade’, mas em ‘contemplar’. Não é a sua humildade que deve ser
louvada, mas a atenção por parte de Deus. Como quando um príncipe estende a mão
a um mendigo, não se elogia nulidade do mendigo, mas a misericórdia e a bondade
do príncipe].”
Maria é modelo de desprendimento. Em vez de especularmos sobre o
que teria sucedido se ela tivesse rejeitado a proposta de Deus, devemos
sublinhar que ela abraçou o convite de Javé e, ao fazê-lo, disse não à própria
vida, aos seus projetos, aos seus sonhos, a tudo o que havia imaginado com o seu
futuro marido. Ela estaria eterna e intimamente unida àquele que seria seu
Filho e Salvador do mundo e à sua Missão. Mas Ela é também exemplo de
submissão. Disse ela: “Eis aqui a serva do Senhor.
Cumpra-se segundo a sua vontade”. Como mulher submissa a Deus,
apresenta-se para servir as indicações de Deus, com tudo o que tem, a sua vida.
E ela é um excelso exemplo de santidade. Ser “santo” significa ser “separado”, “dedicado” a algo ou
alguém. E Maria era assim: dedicada (consagrada) com todo o seu corpo e alma a Deus e ao seu
projeto misterioso.
Maria é, pois, a mais Bem-aventurada de todas as mulheres, por
ser a mãe do Salvador, por receber em seu ventre o Verbo da vida, por amamentar
aquele que nos sustenta com sua mão, por cuidar daquele que cuida de nós, mas
sobretudo pela fé em tudo o que lhe foi dito da parte do Senhor e pela
esperança de que todo será realizado. O que presenciou, viveu, sentiu,
contemplou, nunca poderá ser feito por outra mortal. Assim, ela é mesmo a
Bem-aventurada!
Enfim, pode assumir-se tudo o que foi dito por Karl Barth quando
se exprimiu assim:
“Maria é um fator indispensável na proclamação bíblica pela
ausência da ênfase na sua pessoa, pelo significado infinito da sua modéstia e
humildade, de quem só recebe a bênção”.
Em linha com esta leitura, a sua grande caraterística é, nas
palavras do Bispo Sumio Takatsu, “a vida oculta em Cristo, sem aparecer
no primeiro plano e no ‘kerygma’ apostólico”.
E, como mãe preocupada com o bem-estar dos seus filhos, Maria
continua a dar-nos a mesma orientação que deu aos que estavam nas bodas de Caná: “fazei tudo quanto Ele vos disser” (Jo 2,5). Se conseguirmos
também hoje ouvir as instruções da Virgem, com certeza não faltará o vinho da alegria
aos convidados para a festa do Reino e todos, a exemplo da Bem-aventurada
Virgem Maria, seremos mais dedicados ao serviço da vida e da esperança.
(cf https://pt.wikipedia.org/wiki/Anglocatolicismo; Rev. Jorge Aquino, ose. Maria na tradição da Igreja
Anglicana: http://www.psj.org.br/2015/12/04/maria-na-tradicao-da-igreja-anglicana/;
TEIXEIRA, Luiz Caetano
G. A Bem-aventurada Virgem Maria no Anglicanismo. In
Grande Sinal – Revista de Espiritualidade, Ano LII-1999/2. Petrópolis,
Instituto Teológico Franciscano, 1999).
2017.08.26
– Louro de Carvalho
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