Podem dar-nos as
explicações que entenderem, mas as faltas dos deputados a sessões plenárias e
às comissões que Suas Excelências integram não têm qualquer cabimento, a menos
que possam ser justificadas nos termos mais exigentes em que o são as dos
trabalhadores da administração pública. Casos há em que só é aceite como
justificação a doença devidamente comprovada.
Ora,
no caso dos representantes diletos do povo, os serviços da Assembleia da
República mandam um e-mail ao faltoso titular do eminente órgão de soberania com
o formulário para justificação de alta e o ilustre faltoso apõe a sua
justificação, que não carece de comprovação, devendo apenas o dito formulário
obter o visto do líder do respetivo grupo parlamentar.
Mas
os deputados são eleitos pelo povo eleitor e pagos à custa do povo contribuinte
para o representarem na discussão e tomada das grandes decisões coletivas ou
para serem fonte de ilusão e falta de exemplo? Ganham pouco pelo seu trabalho?
Também a maior parte dos portugueses tem um salário minúsculo e não pode faltar
ao serviço sob pena de cominação de grave desconforto no emprego ou na sua
perda.
Penalizar
o deputado em 1/20 avos ou 1/10 no vencimento sobre o tempo correspondente à ausência
(ou
1/30 avos no caso de falta a comissão parlamentar) é ridículo e parece brincadeira à falta ou ao
dinheiro. Por outro lado, o trabalho político no círculo eleitoral pelo qual o
deputado foi eleito não pode constituir óbice à presença em qualquer sessão plenária
ou de comissão. O eleito dispõe da tarde de sexta-feira, do sábado, do domingo
e da segunda-feira para isso. Ademais, nem se devia justificar isso, já que, sempre
que o eleito é incomodado, de forma não plausível pelo visado, por eleitores do
seu círculo eleitoral ou de sua profissão, respondem candidamente que são
deputados do país inteiro e não do círculo por que foral eleitos ou por profissões
específicas. E ainda poderiam utilizar mais vezes a figura da suspensão de
mandato, mas não lhes dá jeito!
O
que se passou na votação em sede de comissão parlamentar de inquérito à gestão
da CGD e à sua recapitalização – em que a falta de assiduidade levou à não aprovação
do respetivo relatório – devia envergonhar os deputados e os eleitores deveriam
puni-los na prova eleição!
***
Porém, as
notícias passadas à comunicação social nos últimos dias não são mais
animadoras.Em 230 deputados,
apenas 15% não deram faltas no último ano. Por outras palavras, segundo dados
do Parlamento, ano só 34 deputados é que marcaram presença em todas as 109
sessões plenárias na Assembleia da República.
A agência Lusa fez as contas a partir do mapa de
faltas dos deputados, disponível em www.parlamento.pt
e concluiu que 15 deputados do PSD nunca faltaram a qualquer sessão e 9 do PS
também estiveram sempre presentes. Entre os partidos mais pequenos, 7 eleitos
do BE ocuparam sempre os seus lugares no hemiciclo, enquanto no PCP e PEV esse
número foi mais reduzido – um deputado. No CDS-PP também apenas um deputado
nunca faltou. E Eduardo Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia da República,
conta nove faltas, todas elas justificadas por missões parlamentares.
Na Assembleia
da República, há deputados que são líderes partidários e que também faltaram.
Pedro Passos Coelho, do PSD, por exemplo, deu quatro faltas justificadas por
trabalho político. Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP, deu igualmente
quatro faltas por trabalho político e uma por doença. Catarina Martins,
coordenadora do Bloco de Esquerda, deu duas faltas, uma para dar assistência à
família e outra por trabalho político. E Assunção Cristas, do CDS-PP, teve oito
faltas, todas elas justificadas com trabalho político.
Os deputados
escudam-se no n.º 2 do artigo 8.º do Estatuto do Deputado, que enumera os
motivos justificados das faltas dos deputados:
“Considera-se motivo justificado a doença, o
casamento, a maternidade e a paternidade, o luto, a força maior, a missão ou o
trabalho parlamentar e o trabalho político ou do partido a que o deputado
pertence, bem como a participação em atividades parlamentares”.
Também, nos
termos do n.º 3 do mesmo artigo, “a invocação de razão de consciência, devidamente
fundamentada, por deputado presente na reunião é considerada como justificação
de não participação na votação”. E o seu n.º 4 do estipula que, “em casos
excecionais, as dificuldades de transporte podem ser consideradas como
justificação de faltas”. Esta última é coisa tão abstrusa que ao funcionário
público que a invoque mais lhe vale estar calado!
Os motivos
mais apresentados, ao longo do ano, para justificar as ausências foram o
trabalho político (170) e a missão parlamentar (115).
De
setembro de 2016, quando começou a segunda sessão legislativa, a 19 julho,
realizaram-se 109 sessões do plenário da Assembleia da República.
Nos grupos de deputados
sem faltas, encontram-se curiosidades percentuais: não faltaram 36% dos
deputados do BE; 5,5% dos deputados do CDS; 6,6% dos deputados do PCP; 50% dos
deputados do PEV; 10,5% dos deputados do PS; e 16,9% dos deputados do PSD não
faltaram.Ao todo, os deputados deram 1.517 faltas, tendo
sido os mais faltosos os deputados do PSD e do PS. O PSD foi o
partido mais faltoso, com mais de 650 faltas, seguido pelo PS, com 590 faltas.
Em média e por
sessão parlamentar, às quartas-feiras, quintas-feiras e sextas-feiras, faltaram
14 deputados. Em 2016, essa média foi de 11 faltas, em 2015 de 17 e em 2014 foi
de 16.
O
PSD, o maior grupo parlamentar, com 89 deputados, é o que regista mais faltas,
667, seguido do PS, com 86 representantes, e que tem 590. O CDS-PP, com uma
representação de 18 parlamentares, soma 151 faltas. Nos partidos à esquerda, o
BE, com 19 deputados, tem 45 faltas, menos do que o PCP, com 15 parlamentares e
58 faltas. O PEV (Partido
Ecologista “Os Verdes”)
tem dois eleitos e também duas faltas (ambas de José Luís Ferreira, em missão parlamentar). André Silva, único deputado do
partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN),
deu quatro faltas. A média de faltas de deputados por sessão foi de 14.
***
Mas não
se pense que estas notícias são sempre pacificamente recebidas pelos atingidos.
Ao invés, as referências às suas faltas, ao longo dos anos, já irritaram muitos
deputados. Alguns deram tantas que podiam ter perdido o mandato, mas
justificaram-nas e nem um só perdeu o lugar na Assembleia da República.
As
polémicas têm anos, a discussão foi muitas vezes tensa e há alguns episódios
mais bem caricatos. Em 2002, depois de um debate sobre Europa, com pouquíssimos
deputados, o então Presidente da Assembleia da República, Mota Amaral, chegou a
ameaçar de falta injustificada a quem não estivesse no hemiciclo do Palácio de
São Bento. Outro Presidente do Parlamento, Almeida Santos, dois anos antes, em
2000, admitiu vetar a presença de jornalistas depois de o Expresso ter publicado uma foto do hemiciclo quase vazio durante um
debate numa sexta-feira.
O então
incómodo “Tal & Qual” foi vasculhar
os mapas de faltas e descobriu que, em 4 de fevereiro de 2000, 42 deputados
fizeram gazeta.
No
caso de Mota Amaral, a ameaça nunca chegou a ser concretizada, mas abriu a
discussão sobre as maneiras de justificar as ausências. No caso de Almeida
Santos, o histórico socialista pediu desculpa aos jornalistas e tudo continuou
como dantes.
O ano
de 2001 apareceu tumultuoso depois de, em julho, o DN haver noticiado que 30 deputados deram mais do que as 4 faltas
injustificadas permitidas pelo regimento e que, por isso, estavam “Chumbados
por faltas”. Os recordistas eram José Lamego, do PS, com 18, e Henrique Chaves,
do PSD, com 15. À esquerda, não havia deputados “chumbados”. Apesar da
polémica, as direções do PSD e do PS recusaram qualquer sanção aos faltosos.
Porém,
uma semana depois, o Expresso
noticiava que apenas dois não tinham justificado a ausência. E o DN dizia existir “uma espécie de reação
corporativa” na Assembleia: mesmo que os deputados não apresentassem as
justificações em tempo útil, acabavam por as ver aceites.
Passados
alguns meses, em outubro de 2001, registou-se mais um percalço. O comentador
político Marcelo Rebelo de Sousa, que deixara de ser líder do PSD dois anos
antes, levantou a dúvida sobre se uma lei que precisava de maioria reforçada, a
Lei de Programação Militar (por ser uma Lei orgânica), tinha obtido, de facto, os 116 votos necessários, dado que tinha
faltado um deputado do PS. O problema foi resolvido depois de o deputado do PS
alegadamente faltoso, António Marqueiro ter dado a palavra de honra em como
estivera no hemiciclo no momento da votação, tendo como testemunhas o líder
parlamentar socialista, Francisco Assis, e o secretário socialista da mesa,
Artur Penedos. Mas o tom das acusações subiu. De facto, Marcelo chegou a acusar
Almeida Santos, Presidente da Assembleia, de esconder a violação da
Constituição.
O
ambiente em torno das faltas era tal no Parlamento que, em novembro de 2001, o Público titulou “Deputados ‘sequestrados’ no plenário”, tal era o controlo de quem
entrava e quem saía do hemiciclo durante o debate do Orçamento do Estado para
2002.
Manuel
Alegre atirou para o ar: “Estamos aqui
sequestrados pelo professor Marcelo Rebelo de Sousa”. E, nisto, foi
aplaudido pelo PS e também por deputados do PSD e do CDS.
Formou-se
um grupo de trabalho para tentar resolver o problema das faltas e, em 2003,
foram alargados os motivos para justificar as ausências. Passou a ser possível
invocar “força maior”, “motivo justificado”, além do “trabalho político” e “trabalho
parlamentar” – justificações que se mantêm nos dias de hoje. E foi pior a emenda
que o soneto.
O
futebol – não sei se por “força maior”, “motivo justificado”, “trabalho
político” ou “trabalho para lamentar” – também se meteu na polémica da
assiduidade: 30 deputados faltaram ao plenário para assistir à final da Taça UEFA,
em Sevilha, entre o FCP e o Glasgow, em maio de 2003. Mota Amaral, Presidente
do Parlamento, não aceitou a justificação dada pelos deputados.
Também
2006 foi um ano crítico com o problema das faltas. Em 12 de abril, vésperas da
Páscoa, 110 deputados faltaram às votações. O debate subiu de tom outra vez e o
deputado do PS, Ricardo Gonçalves, chegou a propor que os parlamentares
apresentassem um pedido de desculpas públicas, mas a direção socialista
recusou.
***
Mas se os andores da
procissão parlamentar portuguesa vão tortos e desalinhados, os da pátria da
revolução da “liberdade, igualdade e fraternidade” não vão mais direitos e
alinhados.
Com efeito, os deputados
franceses protestam por terem de trabalhar mais uma semana. Depois de o Parlamento ter convocado uma sessão
extraordinária, para 9 de agosto, com o objetivo de debater a lei sobre a
moralização da vida pública, vários parlamentares confessaram o seu
descontentamento. Dizem-se “esgotados”. Coitados! Os deputados foram obrigados a cancelar
reservas e a adiar o descanso estival – o que não agradou a muitos, chegando
alguns deles a admiti-lo em público.
Por exemplo Jean-Luc Mélenchon, o líder da “França insubmissa comentava
há dias num programa do Youtube, onde passa em revista a atualidade: “Vão agora para a praia? Pois têm sorte. Para
mim, a jornada de trabalho volta a começar”. Mélenchon tem sido o rosto dos
políticos mais queixosos, reclamando pela necessidade de assistir a votações noturnas
e a reuniões em agosto, está longe de ser o único.
Num país onde está consagrada a semana de trabalho de 35 horas, sendo
concedidas 5 semanas de descanso, por ano, a cada trabalhador, os parlamentares
suspiram pelos passeios à beira-mar. Dizem-se “esgotados”, recordando as
“extenuantes jornadas legislativas” a que têm assistido, sem grande energia
para mais uma semana ‘forçada’ de trabalhos na Assembleia Nacional.
Também Philippe Gosselin (conservador), Cécile Untermaier
(socialista) e outros colegas das diferentes bancadas não veem chegado
o dia de fazer as malas. E o ex-candidato presidencial Nicolas Dupont-Aignan
desabafou: “Está toda a gente fatigada e
este não é o melhor estado para se decidirem leis”.
Isto é referido depois de a Assembleia Nacional ter
votado a proibição de contratação de familiares dos deputados (promessa
eleitoral de Emmanuel Macron, que venceu as eleições de maio), uma prática que causou polémica na última eleição
presidencial, marcada pela contratação da mulher do candidato François Fillon. Recorde-se
que a mulher do então candidato da direita às presidenciais, bem como os
filhos, são suspeitos de terem beneficiado de empregos fictícios e sido
remunerados como assistentes parlamentares – um caso revelado no fim de janeiro
pelo semanário Canard Enchaîné, que prejudicou
a campanha de Fillon, que partiu para a corrida eleitoral como favorito, mas seria
eliminado na 1.ª volta do escrutínio (20,1% dos votos).
O cansaço é generalizado, mas também da falta de descanso se poderá queixar
o próprio Presidente francês, Emmanuel Macron, que este ano – ao que tudo
indica – terá de se contentar com apenas uns dias livres, passados na
residência oficial La lanterne, ao contrário do verão passado, sem direito a
passeios românticos ao lado da Brigitte, sua mulher.
***
Enfim,
quer em França, quer em Portugal, é de exigir aos representantes do povo a
presença nas sessões e a preparação política para participar nas discussões e
votações. Acabe-se com a sonolência parlamentar, a ignorância de dossiês, as
diversões de computador ou de aparelho similar. Cessem os acordos de
cavalheiros para as votações das leis ordinárias. Contem-se os votos. Faça-se corresponder
a cada pessoa um voto. E cada grupo parlamentar que fiscalize o cumprimento ou
não da disciplina partidária pelos seus deputados quando a ela houver lugar.
Represente-se
o povo com seriedade, sabedoria e eficácia. Representem-nos. Para isso os
elegemos, para isso lhes pagamos. E não para contratarem serviço de privados a
fazerem o trabalho dos deputados, dos ministros e dos secretários de Estado…
2017.08.05 – Louro de Carvalho
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