domingo, 27 de agosto de 2017

Recomendação censória a posteriori em nome da ideologia de género

O Governo, através do Ministro-Adjunto, após a tomada de posição da comissão para a CIG (Cidadania e Igualdade de Género) recomendou à Porto Editora a retirada do mercado dos cadernos de atividades diferenciados (ilustração e grau de dificuldade de exercícios) para crianças dos 4 aos 6 anos, pelo facto de tais peças editoriais alegadamente atentarem contra a ‘igualdade de género’.
Estranha-se que as peças, tendo sido editadas em 2016 e comercializadas desde julho desse ano, só agora tenham sido objeto de reparo público, além de que foram elaboradas por técnicos superiores especificamente credenciados pelo sistema educativo e pela malha editorial para aquele estrato etário e educacional.
Por seu turno, a Porto Editora deu uma explicação satisfatória para mentes não preconceituosas, se nos ativermos apenas à diferença de ilustração dos libretos e da alteração de ordem do grau de dificuldade dos exercícios. Com efeito, o IAVE,IP faz coisa parecida nas versões 1 e 2 de muitas provas de exame sendo o critério de distribuição, já não o ser rapaz ou rapariga, mas a posição par ou ímpar na sala. Todavia – Coitadinha! – a editora, que tem uma cota de mercado livreiro tão grande, claudicou. Neste aspeto, não contribuiu para a libertação da sociedade civil da lógica do pensamento único ou da onda do politicamente correto, limitando-se ao desabafo no Expresso do dia 26.  
Não me espantou tal atitude, em que os interesses empresariais e o receio de perder concursos para a adoção de manuais escolares falaram mais alto que a proteção dos colaboradores, a liberdade de expressão e o pluralismo de tendências educativas e de conceção do homem e da sociedade. E, em vez de propor oportuna e importunamente o debate e a discussão pedagógica – o que o Governo também optou por não fazer –, respondeu com prontidão aos ideólogos da igualdade do género, participando no amordaçamento das consciências.
A nota de abertura editada pela Rádio Renascença (RR) a este propósito também pouco esclareceu da questão. No entanto, salientou a inquestionabilidade, por natureza, da dignidade do homem e da mulher e o dever de as sociedades promoverem em todos os planos, o reconhecimento efetivo dessa igual dignidade. E, por outro lado, alertou a sociedade portuguesa para a obrigação de “romper esta anestesia do politicamente correto que nos tenta convencer que até a natureza se muda por decreto”.
Ao imaginar “o coro de protestos, se outro Governo de outra cor política recomendasse, por motivos ideológicos, que um determinado livro fosse banido do mercado”, esquece que outros tipos de censura a livros publicados (não me refiro a atos de censura por exame prévio) ocorreram já em democracia por ação de governo de outro quadrante (v.g: caso do corte por Sousa Lara), bem como o cerco aos jornalistas. É óbvio que a liberdade por que brada a RR postula sempre “a diversidade e a pluralidade de opiniões” e a rejeição de qualquer forma de coação ou de censura prévia ou a posteriori. E o n.º 3 do art.º 37.º da nossa CRP (Constituição) previne os abusos cometidos a coberto da liberdade de expressão e informação, estabelecendo:
“As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei”.
Quer dizer: a editora só podia ser objeto de censura pública mediante organização e conclusão de processo judicial (caso de crime) ou administrativo (caso de mera ordenação social).
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A postura da CIG/Governo baseia-se na ideologia de género, que tenta impor-se à opinião pública, aos políticos e, consequentemente, aos educadores, em nome da formação de um novo cidadão mais livre, autónomo e tolerante. Porém, está visto que a imposição dá como resultado a formação de gente silenciada, menos livre, menos autónoma, menos tolerada – porque gera mais intolerantes – e mais acorrentada.Depois, a Ideologia de Género ou, melhor dizendo, a Ideologia da Ausência de Sexo não tem suporte científico consistente; baseia-se numa crença e, como crença, vale o que vale. É a crença pela qual os dois sexos (masculino e feminino) são considerados construções culturais e sociais. Por isso, os chamados “papéis de género” (que incluem a maternidade, na mulher), que decorrem das diferenças de sexos alegadamente “construídas” (pelo que supostamente não existem), são também “construções sociais e culturais”. Isto é apenas tão cientificamente válido como o contrário, só que esse contrário tem a validade dos séculos. E, para a descoberta de nova pólvora, é necessário génio reforçado! 
Assim, a feminista Gloria Steinem queixa-se da “falsa divisão da natureza humana em feminino e em masculino”; e a escritora francesa Simone Beauvoir pensou a gravidez como “limitadora da autonomia feminina”, porque, alegadamente, “a gravidez cria laços biológicos entre a mulher e as crianças, e por isso, cria um papel de género”. Podia também condoer-se do incómodo dos varões a quem os órgãos sexuais externos estorvam. Com efeito a Ideologia de Género defende a ideia segundo a qual não existe apenas a mulher e o homem, mas também “outros géneros” e que a pessoa pode escolher um desses “outros géneros”, ou mesmo alguns desses “outros géneros” em simultâneo.
Ora, ainda que assim fosse ou seja, seria necessária a intervenção corretiva da natureza e não é previsível, pelo menos em regime de generalização, a pré-fabricação do género à escolha do sujeito ou de alguém por ele. Ou será que a biologia e a psicologia estarão tão avançadas?
Em contraponto, a socióloga alemã Gabriele Kuby sustenta posição contrária:
“A Ideologia de Género é a mais radical rebelião contra Deus que é possível: o ser humano não aceita que é criado homem e mulher, e por isso diz: 'Eu decido! Esta é a minha liberdade!' – contra a experiência, contra a Natureza, contra a Razão, contra a ciência! É a perversão final do individualismo: rouba ao ser humano o que lhe resta da sua identidade, ou seja, o de ser homem ou mulher, depois de se ter perdido a fé, a família e a nação. É uma ideologia diabólica: embora toda a gente tenha uma noção intuitiva de que se trata de uma mentira, a Ideologia de Género pode capturar o senso-comum e tornar-se em uma ideologia dominante do nosso tempo.”. (cf http://sofos.wikidot.com/ideologia-de-genero).
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Para ir ao encontro da mencionada socióloga alemã, não vou referir nem João Paulo II nem Bento XVI, que alguns julgam terem pretendido colocar a Igreja em tempos pré-conciliares, mas Francisco, o Papa admirado por tantos e tão adulado por alguns.
Na sua catequese semanal de quarta-feira, a 15 de abril de 2015, o Papa denunciou a ideologia de género ou teoria do género e mostrou uma série de preocupações que derivam dela. Pedindo a todos os fiéis e sobretudo às famílias que mostrem a beleza da aliança entre o homem e a mulher, animou-os a vivê-la “para o bem”.
Recordando o Livro do Génesis, onde se lê que Deus, após ter criado o universo inteiro, “criou o ser humano à sua imagem: criou-os homem e mulher” (Gn 1,26-31), Francisco sublinhou que “a diferença sexual está presente em muitas formas de vida.  Não só o homem ou só a mulher são imagem de Deus, mas ambos, como casal, são imagem de Deus Criador – o que nos diz que “não só o homem tomou em si a imagem de Deus, não só a mulher tomou em si a imagem de Deus, mas também o homem e a mulher, como casal, são imagem de Deus”. Portanto, a diferença visa a comunhão e a geração, e não a contraposição nem a subordinação. Disse o Papa que “somos feitos para ouvir-nos e ajudar-nos reciprocamente” e que, “sem esse enriquecimento recíproco, não se pode entender profundamente o que significa ser homem e mulher”.
Porém, salientando que “a cultura moderna e contemporânea abriu novos espaços, novas liberdades e novas profundidades para o enriquecimento da compreensão destas diferenças”, denunciou que “introduziu também muitas dúvidas e muito ceticismo”.
Depois, interrogando-se se a teoria do género não é expressão de frustração e resignação, com a finalidade de cancelar a diferença sexual por não saber como lidar com ela, avisou que, “neste caso, corremos o risco de retroceder”. Com efeito, “a eliminação da diferença é um problema, não uma solução” e, “para resolver os seus problemas de relação, o homem e a mulher devem dialogar mais, escutando-se, conhecendo-se e amando-se mais”. Aliás “devem tratar-se com respeito e colaborar com amizade”. E “com estas bases humanas, sustentadas pela graça de Deus, é possível projetar a união matrimonial e familiar que dure para a vida inteira”.
Nesse sentido, exortou os intelectuais a que “não abandonem este tema, como se fosse algo secundário pelo empenho em favor de uma sociedade mais livre e justa”, pois “Deus confiou a terra à aliança do homem e da mulher: a falência desta aliança gera a aridez dos afetos no mundo e obscurece o céu da esperança”.
Reconhecendo que “os sinais são visíveis e preocupantes”, deixou duas reflexões pertinentes.
A primeira é relacionada com a importância da mulher e do seu papel na sociedade. Sobre isto manifestou que “devemos fazer muito mais a favor da mulher, se queremos dar mais força à reciprocidade entre homens e mulheres”, pois “é necessário, de facto, que a mulher não seja somente mais ouvida, mas que a sua voz tenha um peso real, uma autoridade reconhecida na sociedade e na Igreja”. O Pontífice citou como exemplo o modo como Jesus no Evangelho considerou as mulheres num período em que eram relegadas a segundo plano: “Em um contexto menos favorável que o nosso, manda uma luz potente, que ilumina um caminho que leva longe, do qual percorremos somente uma parte”. Trata-se pois “de um caminho a percorrer-se com mais criatividade e mais audácia”.
A segunda diz respeito ao tema do homem e da mulher criados à imagem de Deus. A este respeito, lançou a seguinte interpelação:
“Pergunto-me se a crise de confiança coletiva em Deus não estaria relacionada com a crise da aliança entre homem e mulher, já que a comunhão com Deus está intimamente ligada à comunhão do casal humano”.
Francisco esclareceu que a Escritura “nos diz que a comunhão com Deus se comprova na comunhão do casal humano e que a perda da confiança no Pai celeste gera divisão e conflito entre o homem e a mulher”. Esta é então a grande responsabilidade da Igreja e de todos os fiéis e das famílias cristãs para redescobrir a beleza do projeto criador que “grava a imagem de Deus também na aliança entre o homem e a mulher”.
O Papa concluiu dizendo:
“A terra enche-se de harmonia e confiança quando a aliança entre o homem e a mulher é vivida no bem. Jesus nos encoraja explicitamente ao testemunho desta beleza, que é a imagem de Deus”.
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Para muitos, a recomendação do Governo à Porto Editora faz sentido à luz dos princípios económicos. Com efeito, para os economistas, mesmo os liberais, a intervenção do Estado é justificável no caso de falhas de mercado, sobretudo na existência de externalidades. Em geral, há externalidade (negativa ou positiva) quando a ação dum agente económico afeta (negativa ou positivamente) o bem-estar de outros, sem que tal efeito seja considerado pelo mercado. A externalidade negativa surge quando as decisões de consumo dos indivíduos ou as de produção das empresas impõem custos que não são totalmente pagos por quem toma as decisões, sendo que o preço do bem não reflete o custo social. Dá-se como exemplo de externalidade a causada pelos fumadores, em que, sem regulação, o custo do tabaco para os consumidores seria mais baixo do que o custo imposto à sociedade.
No caso do livro, a externalidade negativa é causada pelos consumidores, ou seja, no caso vertente, as crianças na idade pré-escolar. Os livros ora retirados do mercado fomentam e perpetuam estereótipos de género, nomeadamente a ideia de que as meninas são menos capazes. Ora, a existência de estereótipos contribui para a desigualdade de género no acesso ao trabalho, no nível salarial e na progressão na carreira. Os livros custam poucos euros aos pais, mas potencialmente podem causar perdas no valor de milhares de euros a mulheres que são alvo de discriminação no mercado de trabalho. Nesta ótica, deixar o mercado funcionar sem intervenção estatal implicaria o fomento a ineficiência por omissão – ineficiência geradora de desigualdades, que per se, justificaria, na opinião de alguns, a intervenção governamental.
Porém, admitindo que, neste caso, o Estado devia ter intervindo, é de questionar se a forma como o fez foi a mais adequada. A hipótese de censura a posteriori coloca-se porque o Governo recomendou a alteração de conteúdos escritos, sem a análise do caso mediante a organização e conclusão de processo administrativo e/ou judicial, além de ter intervindo fora de tempo. E “intervenção do Estado” não quer dizer “intervenção do Governo”. Ora, se, em vez de livros, estivesse em causa um medicamento com efeitos secundários nefastos, a retirada do mercado seria considerada prestação de serviço público. E, se o Governo, no caso vertente dos livros, tivesse meramente sugerido manter todos os conteúdos apenas num só livro, proibindo apenas a discriminação por género, a acusação de censura seria improcedente, por descabida.
Contudo, não posso deixar de sublinhar o abuso do Estado, levado não sei por que desígnios, evocando a proibição constitucional de cercear a programação da educação e da cultura. Com efeito, o n.º 2 do art.º 43.º da CRP (Liberdade de aprender e de ensinar) estabelece:
O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.
Condiciona o Estado a educação e a cultura, na recomendação à Porto Editora, em nome de quê? De filosofias, estéticas, políticas, ideologias, religiões? Não pode. Em nome da ciência? Que ciência? Também não o pode fazer em nome de interesses económicos, ou pode? Se pode, faça o favor se policiar o mercado, as mentalidades e os usos. Depois, queixe-se!
Mais: a não crença na ideologia de género não significa atropelo ao respeito pela orientação sexual de quem quer que seja. Uma coisa não tem a ver com a outra. E a igualdade dos cidadãos perante a Lei e a obrigação de não discriminação (CRP, art.º 13.º) não implicam a uniformidade de crenças ou até de seguimento de uma escola científica.
Como diziam os antigos, Modus in rebus! Ou: In essentialibus unitas, in caeteris libertas!

2017.08.27 – Louro de Carvalho

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