O Governo, através do Ministro-Adjunto,
após a tomada de posição da comissão para a CIG (Cidadania e Igualdade de Género) recomendou à Porto Editora a
retirada do mercado dos cadernos de atividades diferenciados (ilustração e grau de dificuldade de
exercícios) para
crianças dos 4 aos 6 anos, pelo facto de tais peças editoriais alegadamente
atentarem contra a ‘igualdade de género’.
Estranha-se que as peças, tendo sido
editadas em 2016 e comercializadas desde julho desse ano, só agora tenham sido
objeto de reparo público, além de que foram elaboradas por técnicos superiores
especificamente credenciados pelo sistema educativo e pela malha editorial para
aquele estrato etário e educacional.
Por seu turno, a Porto Editora deu
uma explicação satisfatória para mentes não preconceituosas, se nos ativermos
apenas à diferença de ilustração dos libretos e da alteração de ordem do grau
de dificuldade dos exercícios. Com efeito, o IAVE,IP faz coisa parecida nas
versões 1 e 2 de muitas provas de exame sendo o critério de distribuição, já
não o ser rapaz ou rapariga, mas a posição par ou ímpar na sala. Todavia –
Coitadinha! – a editora, que tem uma cota de mercado livreiro tão grande,
claudicou. Neste aspeto, não contribuiu para a libertação da sociedade civil da
lógica do pensamento único ou da onda do politicamente correto, limitando-se ao
desabafo no Expresso do dia 26.
Não me espantou tal atitude, em que
os interesses empresariais e o receio de perder concursos para a adoção de
manuais escolares falaram mais alto que a proteção dos colaboradores, a
liberdade de expressão e o pluralismo de tendências educativas e de conceção do
homem e da sociedade. E, em vez de propor oportuna e importunamente o debate e
a discussão pedagógica – o que o Governo também optou por não fazer –,
respondeu com prontidão aos ideólogos da igualdade do género, participando no
amordaçamento das consciências.
A nota de abertura editada pela Rádio
Renascença (RR) a este propósito também pouco
esclareceu da questão. No entanto, salientou a inquestionabilidade, por
natureza, da dignidade do homem e da mulher e o dever de as sociedades promoverem
em todos os planos, o reconhecimento efetivo dessa igual dignidade. E, por
outro lado, alertou a sociedade portuguesa para a obrigação de “romper esta
anestesia do politicamente correto que nos tenta convencer que até a natureza
se muda por decreto”.
Ao imaginar “o coro de protestos, se
outro Governo de outra cor política recomendasse, por motivos ideológicos, que um
determinado livro fosse banido do mercado”, esquece que outros tipos de censura
a livros publicados (não
me refiro a atos de censura por exame prévio) ocorreram já em democracia por ação de governo de outro
quadrante (v.g: caso do
corte por Sousa Lara),
bem como o cerco aos jornalistas. É óbvio que a liberdade por que brada a RR
postula sempre “a diversidade e a pluralidade de opiniões” e a rejeição de
qualquer forma de coação ou de censura prévia ou a posteriori. E o n.º 3 do art.º 37.º da nossa CRP (Constituição) previne os abusos cometidos a
coberto da liberdade de expressão e informação, estabelecendo:
“As infrações cometidas
no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito
criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação
respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade
administrativa independente, nos termos da lei”.
Quer dizer: a editora só podia ser
objeto de censura pública mediante organização e conclusão de processo judicial
(caso de crime) ou administrativo (caso de mera ordenação social).
***
A postura da CIG/Governo baseia-se na
ideologia de género, que tenta impor-se à opinião pública, aos políticos e,
consequentemente, aos educadores, em nome da formação de um novo cidadão mais
livre, autónomo e tolerante. Porém, está visto que a imposição dá como
resultado a formação de gente silenciada, menos livre, menos autónoma, menos
tolerada – porque gera mais intolerantes – e mais acorrentada.Depois, a Ideologia
de Género ou, melhor dizendo, a Ideologia da Ausência de Sexo não tem suporte
científico consistente; baseia-se numa crença e, como crença, vale o que vale. É
a crença pela qual os dois sexos (masculino e feminino) são
considerados construções culturais e sociais. Por isso, os
chamados “papéis de género” (que incluem a
maternidade, na mulher), que decorrem das diferenças de sexos alegadamente
“construídas” (pelo que supostamente não existem), são também “construções
sociais e culturais”. Isto é apenas tão cientificamente válido como o
contrário, só que esse contrário tem a validade dos séculos. E, para a
descoberta de nova pólvora, é necessário génio reforçado!
Assim,
a feminista Gloria Steinem queixa-se da “falsa divisão da
natureza humana em feminino e em masculino”; e a escritora
francesa Simone Beauvoir pensou a gravidez como “limitadora
da autonomia feminina”, porque, alegadamente, “a
gravidez cria laços biológicos entre a mulher e as crianças, e por isso, cria
um papel de género”. Podia também condoer-se do incómodo dos varões a quem
os órgãos sexuais externos estorvam. Com efeito
a Ideologia de Género defende a ideia
segundo a qual não existe apenas a mulher e o homem, mas também “outros
géneros” e que a pessoa pode escolher um desses “outros géneros”, ou mesmo
alguns desses “outros géneros” em simultâneo.
Ora, ainda que assim fosse ou seja, seria necessária a intervenção
corretiva da natureza e não é previsível, pelo menos em regime de
generalização, a pré-fabricação do género à escolha do sujeito ou de alguém por
ele. Ou será que a biologia e a psicologia estarão tão avançadas?
Em contraponto, a socióloga alemã
Gabriele Kuby sustenta posição contrária:
“A Ideologia de
Género é a mais radical rebelião contra Deus que é possível: o ser humano
não aceita que é criado homem e mulher, e por isso diz: 'Eu decido!
Esta é a minha liberdade!' – contra a experiência, contra a Natureza,
contra a Razão, contra a ciência! É a perversão final do individualismo: rouba
ao ser humano o que lhe resta da sua identidade, ou seja, o de ser homem ou
mulher, depois de se ter perdido a fé, a família e a nação. É uma ideologia diabólica: embora toda a gente tenha
uma noção intuitiva de que se trata de uma mentira, a Ideologia de Género pode capturar o senso-comum e tornar-se em uma
ideologia dominante do nosso tempo.”. (cf http://sofos.wikidot.com/ideologia-de-genero).
***
Para ir ao
encontro da mencionada socióloga alemã, não vou referir nem João Paulo II nem Bento
XVI, que alguns julgam terem pretendido colocar a Igreja em tempos
pré-conciliares, mas Francisco, o Papa admirado por tantos e tão adulado por
alguns.
Na sua
catequese semanal de quarta-feira, a 15 de abril de 2015, o Papa denunciou a ideologia de género ou teoria do género e mostrou uma série de
preocupações que derivam dela. Pedindo a todos os fiéis e sobretudo às famílias
que mostrem a beleza da aliança entre o homem e a mulher, animou-os a vivê-la
“para o bem”.
Recordando o
Livro do Génesis, onde se lê que Deus, após ter criado o universo inteiro,
“criou o ser humano à sua imagem: criou-os homem e mulher” (Gn 1,26-31), Francisco sublinhou que “a diferença sexual está
presente em muitas formas de vida. Não só o homem ou só a mulher são imagem de
Deus, mas ambos, como casal, são imagem de Deus Criador – o que nos diz que “não
só o homem tomou em si a imagem de Deus, não só a mulher tomou em si a imagem
de Deus, mas também o homem e a mulher, como casal, são imagem de Deus”. Portanto,
a diferença visa a comunhão e a geração, e não a contraposição nem a
subordinação. Disse o Papa que “somos feitos para ouvir-nos e ajudar-nos
reciprocamente” e que, “sem esse enriquecimento recíproco, não se pode entender
profundamente o que significa ser homem e mulher”.
Porém,
salientando que “a cultura moderna e contemporânea abriu novos espaços, novas
liberdades e novas profundidades para o enriquecimento da compreensão destas
diferenças”, denunciou que “introduziu também muitas dúvidas e muito
ceticismo”.
Depois,
interrogando-se se a teoria do género
não é expressão de frustração e resignação, com a finalidade de cancelar a diferença
sexual por não saber como lidar com ela, avisou que, “neste caso, corremos o
risco de retroceder”. Com efeito, “a eliminação da diferença é um problema, não
uma solução” e, “para resolver os seus problemas de relação, o homem e a mulher
devem dialogar mais, escutando-se, conhecendo-se e amando-se mais”. Aliás
“devem tratar-se com respeito e colaborar com amizade”. E “com estas bases
humanas, sustentadas pela graça de Deus, é possível projetar a união
matrimonial e familiar que dure para a vida inteira”.
Nesse
sentido, exortou os intelectuais a que “não abandonem este tema, como se fosse
algo secundário pelo empenho em favor de uma sociedade mais livre e justa”,
pois “Deus confiou a terra à aliança do homem e da mulher: a falência desta
aliança gera a aridez dos afetos no mundo e obscurece o céu da esperança”.
Reconhecendo
que “os sinais são visíveis e preocupantes”, deixou duas reflexões pertinentes.
A primeira é
relacionada com a importância da mulher e do seu papel na sociedade. Sobre isto
manifestou que “devemos fazer muito mais a favor da mulher, se queremos dar
mais força à reciprocidade entre homens e mulheres”, pois “é necessário, de facto,
que a mulher não seja somente mais ouvida, mas que a sua voz tenha um peso
real, uma autoridade reconhecida na sociedade e na Igreja”. O Pontífice citou como exemplo o modo como Jesus no
Evangelho considerou as mulheres num período em que eram relegadas a segundo
plano: “Em um contexto menos favorável que o nosso, manda uma luz potente, que
ilumina um caminho que leva longe, do qual percorremos somente uma parte”. Trata-se
pois “de um caminho a percorrer-se com mais criatividade e mais audácia”.
A segunda diz
respeito ao tema do homem e da mulher criados à imagem de Deus. A este
respeito, lançou a seguinte interpelação:
“Pergunto-me se a crise de confiança coletiva em Deus não estaria
relacionada com a crise da aliança entre homem e mulher, já que a comunhão com
Deus está intimamente ligada à comunhão do casal humano”.
Francisco
esclareceu que a Escritura “nos diz que a
comunhão com Deus se comprova na comunhão do casal humano e que a perda da
confiança no Pai celeste gera divisão e conflito entre o homem e a mulher”.
Esta é então a grande responsabilidade da Igreja e de todos os fiéis e das
famílias cristãs para redescobrir a beleza do projeto criador que “grava a imagem de Deus também na aliança
entre o homem e a mulher”.
O Papa
concluiu dizendo:
“A terra enche-se de harmonia e confiança quando a aliança entre o homem e
a mulher é vivida no bem. Jesus nos encoraja explicitamente ao testemunho desta
beleza, que é a imagem de Deus”.
***
Para muitos, a recomendação do Governo à Porto Editora faz sentido à luz
dos princípios económicos. Com efeito, para os economistas, mesmo os liberais,
a intervenção do Estado é justificável no caso de falhas de mercado, sobretudo
na existência de externalidades. Em geral, há externalidade (negativa ou
positiva) quando a ação dum agente económico
afeta (negativa ou
positivamente) o
bem-estar de outros, sem que tal efeito seja considerado pelo mercado. A
externalidade negativa surge quando as decisões de consumo dos indivíduos ou as
de produção das empresas impõem custos que não são totalmente pagos por quem
toma as decisões, sendo que o preço do bem não reflete o custo social. Dá-se
como exemplo de externalidade a causada pelos fumadores, em que, sem regulação,
o custo do tabaco para os consumidores seria mais baixo do que o custo imposto
à sociedade.
No caso do livro, a externalidade negativa é causada pelos consumidores, ou
seja, no caso vertente, as crianças na idade pré-escolar. Os livros ora
retirados do mercado fomentam e perpetuam estereótipos de género, nomeadamente
a ideia de que as meninas são menos capazes. Ora, a existência de estereótipos
contribui para a desigualdade de género no acesso ao trabalho, no nível
salarial e na progressão na carreira. Os livros custam poucos euros aos pais,
mas potencialmente podem causar perdas no valor de milhares de euros a mulheres
que são alvo de discriminação no mercado de trabalho. Nesta ótica, deixar o
mercado funcionar sem intervenção estatal implicaria o fomento a ineficiência
por omissão – ineficiência geradora de desigualdades, que per se, justificaria, na opinião de alguns, a intervenção
governamental.
Porém, admitindo que, neste caso, o Estado devia ter intervindo, é de
questionar se a forma como o fez foi a mais adequada. A hipótese de censura a posteriori coloca-se porque o Governo
recomendou a alteração de conteúdos escritos, sem a análise do caso mediante a
organização e conclusão de processo administrativo e/ou judicial, além de ter
intervindo fora de tempo. E “intervenção do Estado” não quer dizer “intervenção
do Governo”. Ora, se, em vez de livros, estivesse em causa um medicamento com
efeitos secundários nefastos, a retirada do mercado seria considerada prestação
de serviço público. E, se o Governo, no caso vertente dos livros, tivesse
meramente sugerido manter todos os conteúdos apenas num só livro, proibindo
apenas a discriminação por género, a acusação de censura seria improcedente,
por descabida.
Contudo, não posso deixar de sublinhar o abuso do Estado, levado não sei
por que desígnios, evocando a proibição constitucional de cercear a programação
da educação e da cultura. Com efeito, o n.º 2 do art.º 43.º da CRP (Liberdade
de aprender e de ensinar) estabelece:
“O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer
diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.
Condiciona o Estado a educação e
a cultura, na recomendação à Porto Editora, em nome de quê? De filosofias,
estéticas, políticas, ideologias, religiões? Não pode. Em nome da ciência? Que
ciência? Também não o pode fazer em nome de interesses económicos, ou pode? Se pode,
faça o favor se policiar o mercado, as mentalidades e os usos. Depois,
queixe-se!
Mais: a não crença na ideologia
de género não significa atropelo ao respeito pela orientação sexual de quem
quer que seja. Uma coisa não tem a ver com a outra. E a igualdade dos cidadãos
perante a Lei e a obrigação de não discriminação (CRP,
art.º 13.º) não
implicam a uniformidade de crenças ou até de seguimento de uma escola
científica.
Como diziam os antigos, Modus in rebus! Ou: In essentialibus unitas, in caeteris libertas!
2017.08.27
– Louro de Carvalho
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