quarta-feira, 2 de agosto de 2017

As ambiguidades da atual rede escolar

Esta reflexão pretende constituir um comentário a dois temas da atualidade abordados, um, no DN de hoje, por Maria de Lurdes Rodrigues, Ministra da Educação do 1.º Governo de José Sócrates, e outro pelo CNE (Conselho Nacional da Educação) presidido por David Justino, Ministro da Educação do Governo de José Manuel Durão Barroso.
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Lurdes Rodrigues glosa o que denomina tema das falsas moradas e dos falsos encarregados de educação para obter matrículas em algumas escolas. Diz a especialista que o tema “é bem mais complicado do que parece”, e “não pode ser resumido a más práticas de algumas famílias facilmente corrigíveis com ações inspetivas”. Sendo “consequência da desigualdade escolar”, configura um problema educativo difícil de resolver, porque denuncia:
“O confronto de diferentes interpretações do equilíbrio desejável entre interesses individuais e interesse público, dos valores da diversidade e da segregação social, das diferentes visões da escola pública e da sua missão”.
A ex-Ministra julga “normal e louvável” os pais procurar em a melhor educação para os filhos, sendo que “são objeto de censura moral e social” as “famílias que não fazem tudo o que está ao seu alcance para proporcionar às suas crianças e jovens a melhor educação e as melhores oportunidades”. E reconhece que os atuais casos mediáticos correspondem a frequentes práticas, “mais ou menos fraudulentas, por parte de alguns pais, com mais recursos informacionais”, similares de muitos outros que “se repetem, em todas as grandes cidades, com o acesso às escolas percecionadas pelas famílias como as melhores”.
Pelo modo como raciocina, Lurdes Rodrigues parece, à maneira do aplauso ao politicamente correto, desculpar o esforço dos pais pela melhor educação para os filhos, mesmo pela utilização da via fraudulenta. Ora, toda a atitude fraudulenta (moradas falsas, falsos encarregados de educação, complacência de algumas escolas públicas com estas práticas) tem de ser combatida pela reclamação dos que se sintam ultrapassados, pela via inspetiva e pela via judiciária. Também isto, embora não resolva tudo, ajuda a resolver e compagina atitude pedagógica e educativa da justiça e de quem a ministra. É verdade que, segundo a ex-governante, “a correção da desigualdade escolar requer uma ação continuada de melhoria da qualidade de todas as escolas públicas”. Todavia, ela deve saber que foi a política por si gizada e imposta que levou à competição desleal entre escolas públicas (algumas passaram a dar-se ao luxo de escolher os seus alunos) e entre as privadas e as públicas.
Foi a sua administração ministerial que lavrou o fosso maior e rasgou o maior esburacamento na escola pública, com a hipervalorização dos rankings, para o que passou a valer tudo, incluindo a pressão da inflação de classificações internas – área em que a ação inspetiva tinha muito a fazer.
É certo que há famílias a considerar que escolher o melhor “significa escolher escolas sem mistura social, contando, para isso, com a conivência ou a cumplicidade de direções de escolas. E, para a douta senhora, a questão é “a de saber como se pode fazer, perante as famílias, os professores e as direções das escolas a demonstração das vantagens individuais e coletivas da mistura e da diversidade social”, já que “só se poderá melhorar a qualidade de todas as escolas se estivermos dispostos a aumentar a diversidade em cada uma delas”. Porém, cabe interrogar quem é que incrementou o caldo de cultura pela sobrevalorização da figura do diretor (catequizou o país e os futuros gestores), que tudo o manda, pela arquitetura de agregação de agrupamentos, pela sobrecarga e hostilização dos docentes (perdeu os professores, mas ganhou os pais), pelo alívio das responsabilidades dos alunos sobre a assiduidade, pela criação da famosa prova de compensação por faltas a onerar ainda mais a atividade docente, pela divisão da carreira docente (criando a divisão entre pares) e pela má e mal explicada política de avaliação de desempenho docente?
Evoca o Relatório Coleman, de 1966, encomendado pelo Congresso americano a propósito da lei de 1964 dos direitos civis (que proibia a discriminação racial nos empregos e nos espaços públicos), em cujo centro esteve o tema da diversidade escolar. Segundo esse documento, o fator que mais explicava o desempenho dos alunos era “a amplitude da mistura de alunos de diferentes origens”. Recorda que “o limiar crítico” da mistura se situaria nos 60%: quando pelo menos 60% dos alunos eram dum determinado grupo cultural ou socioeconómico, os valores do grupo tendiam a predominar. Assim, se o grupo tivesse poder social e a orientação de valorização do estudo, o efeito sobre a escola “seria duplamente positivo”. Isto, “porque o juízo dos pares influencia o comportamento e esforço dos alunos” (de facto, os jovens respondem melhor à pressão do grupo de referência que à de professores ou pais) e porque “a escola reage à pressão do grupo predominante, no seu funcionamento, na capacidade de atrair bons professores e apoios vários”. Portanto, se o grupo de referência valoriza o estudo, o aluno sente-se motivado a estudar. Além disso, o valor positivo do efeito-escola, a existir, é “mais poderoso nos alunos mais fracos”.
O relatório induziu “políticas de discriminação positiva”, ou seja, “de afetação de recursos de forma diferenciada”, olhando as necessidades dos alunos e das escolas, e “políticas dessegregacionistas e de promoção da mistura social e da heterogeneidade nas escolas”.
Contudo, o efeito positivo da mistura e diversidade social gera “perplexidades e reações”, por ser “contraintuitivo para pais e professores” (contraria muitas ideias feitas, de senso comum, sobre a socialização e as sociabilidades) e por confrontar “o interesse individual e o interesse coletivo”.
Admite a necessidade de “critérios e regras gerais para determinar o acesso à escola”, com o respeito equitativo dos “princípios da igualdade de oportunidades e de escolha das famílias” e entende que “a associação entre residência e acesso à escola” é “um princípio simples de organização do serviço de educação”. Porém, não percebo como é que Sua Ex.cia fala em armadilha deste princípio organizacional pelo decurso da tradução da “desigualdade social e económica” em “segregação residencial”. Alega que “as escolas ficam encerradas” nos seus territórios, tornando impossível “a concretização da igualdade de oportunidades”, podendo “contribuir para o aumento tanto das desigualdades escolares com das desigualdades sociais”.
Se é assim, porque não promove o ME a inserção dalguns alunos pobres nas escolas de elite, arcando com os custos? Não é verdade que é a educação bem orientada que traz o progresso e a igualdade? Ou será a concorrência fraudulenta ao estabelecimento escolar?
É óbvio que a punição inspetiva ou judiciária não resolve o problema de fundo, mas não pode ser subvalorizada.  
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Também o CNE canta hossanas ao reordenamento escolar que agregou estabelecimentos de ensino e criou mega-agrupamentos. Maior estabilidade do corpo docente e oferta educativa mais diversificada são as vantagens. Mas a falta de crédito horário, a deslocação diária dos recursos humanos e a dispersão geográfica são alguns dos problemas identificados no estudo realizado por este órgão consultivo da Assembleia da República.
65% dos responsáveis da comunidade escolar dão nota positiva e 25% fazem uma apreciação negativa. O balanço global é, pois, francamente positivo.
A agregação de escolas permitiu maior estabilidade do corpo docente, mais diversificada oferta educativa e formativa, melhor resposta ao desafio do aumento da escolaridade obrigatória, melhor articulação vertical entre departamentos e docentes e mais trabalho colaborativo, maior mobilidade de professores entre ciclos de ensino e escolas, rentabilização dos recursos disponíveis e maior abertura à comunidade pelas parcerias estratégicas. Também são referidos como pontos positivos: a replicação de boas práticas, a realização de atividades comuns e a cultura de agrupamento agregadora sem perda das distintas culturas escolares.
Para David Justino, é essencial avaliar se a mudança contribuiu para a redução do abandono escolar precoce e do insucesso escolar nos últimos 15 anos e para a melhoria dos resultados dos alunos nos testes internacionais. Mas adianta, desde já, que “não vale a pena especular, alguma influência terá tido por mais diminuta que tivesse sido”, incentivando a que haja mais estudos em torno do assunto. 
Os mega-agrupamentos foram alegadamente criados para que o aluno tivesse ao longo do percurso escolar o mesmo projeto educativo, mas há concelhos em que há um só agrupamento e sem ensino secundário (vg. Penedono e Sernancelhe) e concelhos com vários agrupamentos e só duas escolas secundárias (vg: Santa Maria da Feira). E o projeto educativo não tem um prazo de validade de três anos? Para os 12, faltam 9! Depois, a cultura do Agrupamento é artificiosa e absorvente; a identidade das escolas mantém-se pela ação dos Presidentes de Junta que ainda têm escolas; a gestão é megalómana e distante; a estabilidade do corpo docente justifica-se em parte pelo facto de o docente ao concorrer para um agrupamento, não saber em que estabelecimento vai parar; os órgãos colegiais ou não funcionam ou funcionam ao sabor das correntes; muitos dos conselhos gerais são verbo de encher, escolhidos segundo a feição do diretor e da Câmara; e os trabalhos de articulação curricular e cooperação, bem como as parcerias, ou já existiam ou não aconteciam por falta de funcionamento dos conselhos municipais de educação    
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A falta de crédito horário é apontada por 60% dos representantes das unidades orgânicas escutadas como causadora de constrangimentos e por conduzir ao trabalho por amor à camisola. Além disso, 44% indicam que a composição dalguns agrupamentos implica a deslocação diária dos recursos humanos e vários reajustes, sendo os diretores obrigados a desenvolver estratégias diversificadas por forma a garantir “uma melhor gestão pedagógica”. 
Também 60% dos responsáveis educativos realçam como como problemas e preocupações “a falta de recursos humanos, o perfil, a formação, o envelhecimento e a desmotivação dos docentes. E 48% dos intervenientes ouvidos apontam a perda de população escolar, o isolamento e a desertificação do território. Depois, vêm a realidade social e familiar, as deslocações e transportes, que são referidos por uma franja razoável de inquiridos.
Há ainda outros aspetos referidos como constrangimentos, como a falta de acompanhamento jurídico, a existência de distintas culturas escolares e profissionais, que dificultam a uniformização, e o modelo de gestão unipessoal. E é sintomático que a dispersão geográfica entre estabelecimentos escolares seja referida por metade dos intervenientes, bem como a dimensão (geográfica, pelo número de alunos e pelo número de estabelecimentos) e, ainda, o aumento da indisciplina, embora “com pouca expressão e nem sempre associado à agregação”.
Gosto de saber de algumas queixas dos responsáveis, como, a seguir, se especifica.
É curioso saber que “os responsáveis dizem que é necessário reforçar o crédito horário e dar mais autonomia às escolas” (Então não lhes prometeram autonomia?) e que não há tempo para os órgãos de gestão pensarem e refletirem a escola em termos pedagógicos. E ironicamente salientam a participação constante dos pais e da família e a fácil comunicação com a escola, mas indicam que esta colaboração é pouco frequente; referem a perda de proximidade entre alunos e professores; e garantem que a relação com as autarquias traz dificuldades na gestão do pessoal.
Nas relações com a tutela, os responsáveis querem “uma maior delegação de competências (pensava que a direção era competência própria), maior agilização nos procedimentos e brevidade na resposta (Foi-lhes prometido o alívio da burocracia!), diferentes critérios de atribuição da coordenação de estabelecimento e maior acompanhamento jurídico” (Não têm qualificação para a gestão?). 
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Sobre a rede escolar, David Justino escreve na introdução ao estudo:
“Confrontando o estado da rede escolar à entrada do século XXI com a situação atual torna-se impressionante a forma como se reconfigurou a rede escolar portuguesa, em especial a estabelecida no território do continente. Em menos de vinte anos operou-se uma mudança radical na organização escolar como mais nenhum outro país europeu conseguiu concretizar”.
 E acrescenta:
“Por isso falamos de uma não reforma ou de uma reforma inacabada. Não reforma no sentido que não corresponde a qualquer ‘pacote’ legislativo cuja implementação carece de condições políticas não observáveis. Na maior parte dos casos, estas reformas expressas por normativos de grande complexidade e carentes de tempo e estabilidade política traduzem mais a boa vontade que a capacidade de promover processos de mudança. Reforma inacabada porque o fundamental não está na mudança organizacional, mas na qualificação das condições de ensino e aprendizagem que ela poderá proporcionar.”. 
Ora a razão, não corresponde a uma vontade a uma definição políticas, mas a circunstâncias: menos alunos e as mesmas escolas (eu diria: menos escolas. Pois encerraram tantas). Justino recorda dados que mostram a inversão de tendência expansiva da evolução da população escolar:
 No 1.º ciclo do Ensino Básico, o número máximo de alunos matriculados foi atingido em 1981 com 882 mil matrículas; 25 anos depois, essa população estava reduzida a metade (a 443 mil em 2006). No 2.º ciclo, os máximos foram atingidos em 1985-1987 com 358 mil alunos, reduzidos em quase 40% em 2006. No 3.º ciclo, o máximo foi atingido em 1992 com 451 mil alunos e 15 anos depois menos 100 mil.
O líder do CNE lembra que as quebras não tiveram a mesma proporção em todas as regiões:
“Como é sobejamente conhecido, este fenómeno foi muito mais gravoso em territórios de baixa densidade e de envelhecimento acelerado o que corresponde a quase dois terços do território nacional”. 
O número de alunos diminuía em todos os níveis de ensino e o número de professores não parava de aumentar nos anos 80 e até meados da década de 90, atingindo o máximo em 2005. Por outro lado, questionava-se se a organização da rede escolar era “fator de potenciador de insucesso e limitador do poder de regulação do Estado”. Recorde-se:
“Os testes internacionais – primeiro, o TIMSS/PIRLS (1995), depois, os primeiros resultados do PISA (2000) – remetiam os alunos portugueses para os níveis mais baixos de desempenho escolar, quer no contexto europeu quer no do conjunto dos países da OCDE. As taxas de abandono escolar precoce situavam-se em 45% (2002) e a retenção escolar atingia em 2001-2002 valores de 19% no 3.º ciclo, 16% no 2.º e 9% no 1.º. Nesse ano letivo, apenas 60% da população escolar a frequentar o 3.º ciclo tinha a idade de referência, os restantes 40% indiciavam a existência de pelo menos um ano de atraso”. 
A reorganização arrancou sem prazos nem metas, facto que, para David Justino, “permitiu que a maioria das escolas resistisse a qualquer tentativa de agregação negociada”. Porque não definiu tais metas e prazos enquanto foi Ministro da Educação. O trabalho tinha começado antes, mas era possível corrigi-lo. Porém, não foi determinante o dado pedagógico, mas o economicista!
O sucesso crescente não seria obtido sem a massificação dos mega-agrupamentos?

2017.07.08.02 – Louro de Carvalho

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