Esta reflexão pretende constituir um comentário
a dois temas da atualidade abordados, um, no DN de hoje, por Maria de Lurdes Rodrigues, Ministra da Educação do
1.º Governo de José Sócrates, e outro pelo CNE (Conselho Nacional da Educação) presidido por David
Justino, Ministro da Educação do Governo de José Manuel Durão Barroso.
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Lurdes Rodrigues glosa o que denomina tema das
falsas moradas e dos falsos encarregados de educação para obter matrículas em
algumas escolas. Diz a especialista que o tema “é bem mais complicado do que
parece”, e “não pode ser resumido a más práticas de algumas famílias facilmente
corrigíveis com ações inspetivas”. Sendo “consequência da desigualdade escolar”,
configura um problema educativo difícil de resolver, porque denuncia:
“O confronto de diferentes interpretações do equilíbrio
desejável entre interesses individuais e interesse público, dos valores da
diversidade e da segregação social, das diferentes visões da escola pública e
da sua missão”.
A ex-Ministra julga “normal e louvável” os pais procurar em a melhor educação para os filhos, sendo que “são objeto de censura moral e social” as “famílias que não fazem tudo o que está
ao seu alcance para proporcionar às suas crianças e jovens a melhor educação e
as melhores oportunidades”. E reconhece que os atuais casos mediáticos correspondem a frequentes práticas, “mais
ou menos fraudulentas, por parte de alguns pais, com mais recursos
informacionais”, similares de muitos outros que “se repetem, em todas as grandes
cidades, com o acesso às escolas percecionadas pelas famílias como as melhores”.
Pelo modo como raciocina, Lurdes Rodrigues
parece, à maneira do aplauso ao politicamente correto, desculpar o esforço dos
pais pela melhor educação para os filhos, mesmo pela utilização da via
fraudulenta. Ora, toda a atitude fraudulenta (moradas falsas, falsos encarregados de
educação, complacência de algumas escolas públicas com estas práticas) tem de ser combatida
pela reclamação dos que se sintam ultrapassados, pela via inspetiva e pela via
judiciária. Também isto, embora não resolva tudo, ajuda a resolver e compagina atitude
pedagógica e educativa da justiça e de quem a ministra. É verdade que, segundo
a ex-governante, “a correção da desigualdade escolar requer uma ação continuada
de melhoria da qualidade de todas as escolas públicas”. Todavia, ela deve saber
que foi a política por si gizada e imposta que levou à competição desleal entre
escolas públicas (algumas passaram a dar-se ao luxo de escolher os seus alunos) e entre as privadas e
as públicas.
Foi a sua administração ministerial que lavrou
o fosso maior e rasgou o maior esburacamento na escola pública, com a hipervalorização
dos rankings, para o que passou a
valer tudo, incluindo a pressão da inflação de classificações internas – área em
que a ação inspetiva tinha muito a fazer.
É certo que há famílias a considerar que escolher
o melhor “significa escolher escolas sem mistura social, contando, para isso,
com a conivência ou a cumplicidade de direções de escolas. E, para a douta
senhora, a questão é “a de saber como se pode fazer, perante as famílias, os
professores e as direções das escolas a demonstração das vantagens individuais
e coletivas da mistura e da diversidade social”, já que “só se poderá melhorar
a qualidade de todas as escolas se estivermos dispostos a aumentar a
diversidade em cada uma delas”. Porém, cabe interrogar quem é que incrementou o
caldo de cultura pela sobrevalorização da figura do diretor (catequizou o país e os
futuros gestores), que tudo o manda, pela arquitetura de agregação de
agrupamentos, pela sobrecarga e hostilização dos docentes (perdeu os professores, mas
ganhou os pais),
pelo alívio das responsabilidades dos alunos sobre a assiduidade, pela criação da
famosa prova de compensação por faltas a onerar ainda mais a atividade docente,
pela divisão da carreira docente (criando a divisão entre pares) e pela má e mal explicada
política de avaliação de desempenho docente?
Evoca o Relatório Coleman, de 1966, encomendado pelo Congresso americano a
propósito da lei de 1964 dos direitos civis (que proibia a
discriminação racial nos empregos e nos espaços públicos), em cujo centro esteve o tema da
diversidade escolar. Segundo esse documento, o fator que mais explicava o
desempenho dos alunos era “a amplitude da mistura de alunos de diferentes
origens”. Recorda que “o limiar crítico” da mistura se situaria nos 60%: quando
pelo menos 60% dos alunos eram dum determinado grupo cultural ou socioeconómico,
os valores do grupo tendiam a predominar. Assim, se o grupo tivesse poder
social e a orientação de valorização do estudo, o efeito sobre a escola “seria
duplamente positivo”. Isto, “porque o juízo dos pares influencia o
comportamento e esforço dos alunos” (de facto, os jovens respondem
melhor à pressão do grupo de referência que à de professores ou pais) e porque “a escola reage à pressão do
grupo predominante, no seu funcionamento, na capacidade de atrair bons
professores e apoios vários”. Portanto, se o grupo de referência valoriza o
estudo, o aluno sente-se motivado a estudar. Além disso, o valor positivo do
efeito-escola, a existir, é “mais poderoso nos alunos mais fracos”.
O relatório induziu “políticas de
discriminação positiva”, ou seja, “de afetação de recursos de forma
diferenciada”, olhando as necessidades dos alunos e das escolas, e “políticas
dessegregacionistas e de promoção da mistura social e da heterogeneidade nas
escolas”.
Contudo, o efeito positivo da mistura e diversidade social gera “perplexidades
e reações”, por ser “contraintuitivo para pais e professores” (contraria muitas ideias feitas, de senso comum, sobre a socialização e as
sociabilidades) e por confrontar “o interesse individual e o interesse coletivo”.
Admite a necessidade de “critérios e regras gerais para determinar o acesso
à escola”, com o respeito equitativo dos “princípios da igualdade de
oportunidades e de escolha das famílias” e entende que “a associação entre
residência e acesso à escola” é “um princípio simples de organização do serviço
de educação”. Porém, não percebo como é que Sua Ex.cia fala em armadilha
deste princípio organizacional pelo decurso da tradução da “desigualdade social
e económica” em “segregação residencial”. Alega que “as escolas ficam
encerradas” nos seus territórios, tornando impossível “a concretização da
igualdade de oportunidades”, podendo “contribuir para o aumento tanto das
desigualdades escolares com das desigualdades sociais”.
Se é assim, porque não promove o ME a inserção
dalguns alunos pobres nas escolas de elite, arcando com os custos? Não é
verdade que é a educação bem orientada que traz o progresso e a igualdade? Ou será
a concorrência fraudulenta ao estabelecimento escolar?
É óbvio que a punição inspetiva ou judiciária
não resolve o problema de fundo, mas não pode ser subvalorizada.
***
Também o CNE canta hossanas
ao reordenamento escolar que agregou estabelecimentos de ensino e criou
mega-agrupamentos. Maior estabilidade do corpo docente e oferta educativa mais diversificada
são as vantagens. Mas a falta de crédito horário, a deslocação diária dos
recursos humanos e a dispersão geográfica são alguns dos problemas identificados
no estudo realizado por este órgão consultivo da Assembleia da República.
65% dos responsáveis
da comunidade escolar dão nota positiva e 25% fazem uma apreciação negativa. O
balanço global é, pois, francamente positivo.
A agregação de escolas
permitiu maior estabilidade do corpo docente, mais diversificada oferta
educativa e formativa, melhor resposta ao desafio do aumento da escolaridade
obrigatória, melhor articulação vertical entre departamentos e docentes e mais
trabalho colaborativo, maior mobilidade de professores entre ciclos de ensino e
escolas, rentabilização dos recursos disponíveis e maior abertura à comunidade
pelas parcerias estratégicas. Também são referidos como pontos positivos:
a replicação de boas práticas, a realização de atividades comuns e a cultura de
agrupamento agregadora sem perda das distintas culturas escolares.
Para David Justino, é
essencial avaliar se a mudança contribuiu para a redução do abandono escolar
precoce e do insucesso escolar nos últimos 15 anos e para a melhoria dos
resultados dos alunos nos testes internacionais. Mas adianta, desde já, que “não
vale a pena especular, alguma influência terá tido por mais diminuta que
tivesse sido”, incentivando a que haja mais estudos em torno do assunto.
Os mega-agrupamentos
foram alegadamente criados para que o aluno tivesse ao longo do percurso
escolar o mesmo projeto educativo, mas há concelhos em que há um só agrupamento
e sem ensino secundário (vg. Penedono e Sernancelhe) e concelhos com vários agrupamentos e
só duas escolas secundárias (vg: Santa Maria da Feira). E o projeto educativo não tem um
prazo de validade de três anos? Para os 12, faltam 9! Depois, a cultura do
Agrupamento é artificiosa e absorvente; a identidade das escolas mantém-se pela
ação dos Presidentes de Junta que ainda têm escolas; a gestão é megalómana e
distante; a estabilidade do corpo docente justifica-se em parte pelo facto de o
docente ao concorrer para um agrupamento, não saber em que estabelecimento vai
parar; os órgãos colegiais ou não funcionam ou funcionam ao sabor das correntes;
muitos dos conselhos gerais são verbo de encher, escolhidos segundo a feição do
diretor e da Câmara; e os trabalhos de articulação curricular e cooperação, bem
como as parcerias, ou já existiam ou não aconteciam por falta de funcionamento
dos conselhos municipais de educação
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A falta de crédito horário é apontada
por 60% dos representantes das unidades orgânicas escutadas como causadora de
constrangimentos e por conduzir ao trabalho por amor à camisola. Além disso, 44%
indicam que a composição dalguns agrupamentos implica a deslocação diária dos
recursos humanos e vários reajustes, sendo os diretores obrigados a desenvolver
estratégias diversificadas por forma a garantir “uma melhor gestão pedagógica”.
Também 60% dos responsáveis educativos realçam
como como problemas e preocupações “a falta de recursos humanos, o perfil, a
formação, o envelhecimento e a desmotivação dos docentes. E 48% dos
intervenientes ouvidos apontam a perda de população escolar, o isolamento e a
desertificação do território. Depois, vêm a realidade social e familiar, as
deslocações e transportes, que são referidos por uma franja razoável de
inquiridos.
Há ainda outros aspetos referidos como
constrangimentos, como a falta de acompanhamento jurídico, a existência de
distintas culturas escolares e profissionais, que dificultam a uniformização, e
o modelo de gestão unipessoal. E é sintomático que a dispersão geográfica entre
estabelecimentos escolares seja referida por metade dos intervenientes, bem
como a dimensão (geográfica, pelo número de alunos e pelo
número de estabelecimentos) e, ainda, o aumento da indisciplina, embora “com pouca expressão e nem sempre associado à agregação”.
Gosto de saber de algumas queixas dos responsáveis,
como, a seguir, se especifica.
É curioso saber que “os responsáveis
dizem que é necessário reforçar o crédito horário e dar mais autonomia às escolas”
(Então não lhes prometeram autonomia?) e que não há tempo para os órgãos de gestão pensarem e refletirem a
escola em termos pedagógicos. E ironicamente salientam a participação constante
dos pais e da família e a fácil comunicação com a escola, mas indicam que esta
colaboração é pouco frequente; referem a perda de proximidade entre alunos e
professores; e garantem que a relação com as autarquias traz dificuldades na gestão
do pessoal.
Nas relações com a tutela, os
responsáveis querem “uma maior delegação de competências (pensava que a direção era competência própria), maior agilização nos procedimentos e brevidade na
resposta (Foi-lhes prometido o alívio da burocracia!), diferentes critérios de atribuição da
coordenação de estabelecimento e maior acompanhamento jurídico” (Não têm qualificação para a gestão?).
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Sobre a rede escolar, David Justino
escreve na introdução ao estudo:
“Confrontando o estado
da rede escolar à entrada do século XXI com a situação atual torna-se
impressionante a forma como se reconfigurou a rede escolar portuguesa, em
especial a estabelecida no território do continente. Em menos de vinte anos
operou-se uma mudança radical na organização escolar como mais nenhum outro
país europeu conseguiu concretizar”.
E
acrescenta:
“Por isso falamos de
uma não reforma ou de uma reforma inacabada. Não reforma no sentido que não
corresponde a qualquer ‘pacote’ legislativo cuja implementação carece de
condições políticas não observáveis. Na maior parte dos casos, estas reformas
expressas por normativos de grande complexidade e carentes de tempo e
estabilidade política traduzem mais a boa vontade que a capacidade de promover
processos de mudança. Reforma inacabada porque o fundamental não está na
mudança organizacional, mas na qualificação das condições de ensino e
aprendizagem que ela poderá proporcionar.”.
Ora a razão, não corresponde a uma vontade
a uma definição políticas, mas a circunstâncias: menos alunos e as mesmas
escolas (eu diria: menos escolas. Pois encerraram tantas). Justino recorda dados que mostram a
inversão de tendência expansiva da evolução da população escolar:
No 1.º ciclo do Ensino
Básico, o número máximo de alunos matriculados foi atingido em 1981 com 882 mil
matrículas; 25 anos depois, essa população estava reduzida a metade (a 443 mil
em 2006). No 2.º ciclo, os máximos foram atingidos em 1985-1987 com 358 mil
alunos, reduzidos em quase 40% em 2006. No 3.º ciclo, o máximo foi atingido em
1992 com 451 mil alunos e 15 anos depois menos 100 mil.
O líder do CNE lembra que as quebras não
tiveram a mesma proporção em todas as regiões:
“Como é sobejamente
conhecido, este fenómeno foi muito mais gravoso em territórios de baixa
densidade e de envelhecimento acelerado o que corresponde a quase dois terços
do território nacional”.
O número de alunos diminuía em todos os
níveis de ensino e o número de professores não parava de aumentar nos anos 80 e
até meados da década de 90, atingindo o máximo em 2005. Por outro lado,
questionava-se se a organização da rede escolar era “fator de potenciador de insucesso
e limitador do poder de regulação do Estado”. Recorde-se:
“Os testes
internacionais – primeiro, o TIMSS/PIRLS (1995), depois, os primeiros resultados
do PISA (2000) – remetiam os alunos portugueses para os níveis mais baixos de
desempenho escolar, quer no contexto europeu quer no do conjunto dos países da
OCDE. As taxas de abandono escolar precoce situavam-se em 45% (2002) e a
retenção escolar atingia em 2001-2002 valores de 19% no 3.º ciclo, 16% no 2.º e
9% no 1.º. Nesse ano letivo, apenas 60% da população escolar a frequentar o 3.º
ciclo tinha a idade de referência, os restantes 40% indiciavam a existência de
pelo menos um ano de atraso”.
A reorganização arrancou sem prazos nem
metas, facto que, para David Justino, “permitiu que a maioria das escolas resistisse
a qualquer tentativa de agregação negociada”. Porque não definiu tais metas e
prazos enquanto foi Ministro da Educação. O trabalho tinha começado antes, mas
era possível corrigi-lo. Porém, não foi determinante o dado pedagógico, mas o
economicista!
O sucesso crescente não seria obtido sem
a massificação dos mega-agrupamentos?
2017.07.08.02 – Louro de
Carvalho
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