Esperava-se
uma vitória do “não” no referendo que decorreu em Itália a 4 de dezembro, mas
não com uma tão grande margem, como referiu Poiares Maduro, ex-Ministro de
Passos Coelho.
Na verdade, a expressão referendária marcou uma
diferença 20 por cento das intenções de voto levadas à prática: o campo do não alcançou 59,1 por cento de votos e
o sim, defendido pelo primeiro-ministro,
conseguiu apenas 40,9 por cento.
A afluência às urnas cifrou-se numa
percentagem de cerca de 70 por cento dos eleitores italianos que ousaram sair
de suas casas para oferecer o seu voto no ato de referendo, uma participação
excecionalmente alta em Itália, uma das mais altas em exercício de consulta
popular. Com efeito, nos últimos
68 anos, a Itália teve 17 eleições gerais e alguns referendos. Porém, apenas em
três ocasiões a ida dos eleitores italianos às urnas concitou uma tão circunspecta
e temerosa atenção internacional: em 1948, quando a opção era bipolarizada entre
o Ocidente e o comunismo; em 1976, quando os eleitores enfrentaram uma escolha bipolarizada
semelhante, mas entre os democratas cristãos e o “eurocomunismo”, de Enrico
Berlinguer; e agora, com o referendo sobre reformas constitucionais.
Os italianos
decidiram, por larga maioria, não retirar ao Senado (a Câmara
Alta do Parlamento) dois
terços dos seus membros (de 315 para 100) e muita da sua autoridade legislativa – acabando com
o “bicameralismo perfeito” –, como o voto no “sim” postulava, transformando
aquele órgão num mero fórum de deliberação análogo ao germânico Bundesrat. Além disso, os italianos rejeitaram
o regresso de alguns poderes regionais ao Governo central.
Mudanças
como estas foram discutidas durante 30 anos. E a falta de um movimento coerente
e institucionalizado do contra podia beneficiar Renzi, caso os eleitores
concluíssem que não deviam desperdiçar uma oportunidade rara de fazer algo para
reformar o seu sistema esclerótico. O Presidente Sergio Mattarella mostrou-se
imparcial, mas preferiria que as reformas constitucionais avançassem. O seu
antecessor, Giorgio Napolitano, estava declaradamente a favor destas reformas
que, segundo disse, seriam “óptimas notícias para a Itália”. Todavia, os
opositores queriam manter o status quo
das instituições para podem delas usar, e venceram.
Por conseguinte, o Primeiro-Ministro, Matteo Renzi, que apostou o seu
futuro político nesta votação, anunciando mesmo que se demitiria (ainda que
não de imediato) se as
reformas fossem rejeitadas, já anunciou a sua demissão a comunicar na tarde de
hoje, dia 5, ao Presidente, tendo ficado assente que se demitiria só depois da
aprovação do Orçamento para 2017.
O desfecho
do referendo enfraquece irremediavelmente o Governo de coligação de centro
esquerda, liderado pelo Partido Democrata (PD) de Renzi, que já vem agitado por lutas internas por causa desta intenção
reformadora, ora gorada, das normas que regem a organização do poder. Aliás,
mesmo que a votação tivesse sido no sentido pretendido pelo Chefe do Governo, vaticinava-se
que o PD não fosse capaz de evitar uma divisão. Vamos agora ver se é capaz de
se relevantar para a constituição de um novo governo no âmbito do atual quadro
parlamentar e se se prepara adequadamente para as próximas eleições gerais,
antecipadas ou não.
Obviamente que
esta derrota de Renzi é necessariamente interpretada como uma vitória dos dois
maiores partidos populistas italianos: a “Liga do Norte”, liderada por Matteo
Salvini, e o grande Movimento “Cinco Estrelas” (M5S), liderado
pelo comediante Beppe Grillo. Embora os dois partidos não sejam aliados, ambos
nutrem um sentimento antissistema e são favoráveis a soluções nacionais para os
problemas italianos – a começar pelo regresso à lira italiana.
Nas últimas sondagens para eleições
legislativas, o Partido Democrático e o Movimento 5 Estrelas surgem empatados
nas intenções de voto. Caso chegue ao poder, Beppe Grillo já prometeu
referendar a permanência de Itália na Zona Euro.
Por outro lado,
a Liga do Norte e o grande Movimento Cinco Estrelas podem juntar forças para
apoiar um novo Governo e este pode realizar um novo referendo – e desta vez
sobre o euro. E, se a Itália – um dos países europeus com a maior dívida
pública – decidir seguir o seu caminho sozinha, todo o projeto europeu pode sofrer
um golpe mortal. Na era de Donald Trump e do “Brexit”, tal desfecho está longe
de ser impensável. Assim, embora o resultado do referendo tenha, no imediato,
apenas consequências internas, estas podem, a prazo, questionar o destino da
Europa. É certo que a Comissão Europeia emitiu uma mensagem de tranquilidade –
o que não quer dizer que tenha ficado tranquila – estribada no pressuposto de que
a Itália dispõe de estruturas políticas sólidas e de uma economia forte. No entanto,
o euro desvalorizou face ao dólar e a dívida italiana é de 132% do PIB, só
existindo como dívida mais gravosa que a sua a dívida grega. Porém, as bolsas
europeias não se ressentiram, presumivelmente por os mercados já contarem com o
“não”.
***
Mas o caminho
que levou ao referendo foi tortuoso e cheio de escolhos. Renzi queria a reforma
do sistema e era secundado de forma discreta pelo Presidente e de modo aberto
pelo ex-Presidente Giorgio Napolitano. Mas a contestação era feroz: o
Parlamento rejeitou-a, o PD dividiu-se em relação a ela e a rua também. Algumas
instituições estatais não suportam a ideia de concentração de poder nos ramos executivos,
inclusive os magistrados, que temem a perda dos seus extensos e ilimitados
poderes. Depois, vêm os novos populistas, muitos dos veteranos do PD e várias
outras figuras de elite, incluindo antigos membros do Tribunal Constitucional,
que geralmente receiam mudanças. E o antigo Primeiro-Ministro Silvio
Berlusconi, oportunista como é, também se opõe às reformas.
Assim, a campanha
pautou-se por uma ideia-base: votar “não” é votar contra o “sistema” e contra toda
a sua corrupção. E, afinal, Renzi pretendia uma certa correção do sistema, que
os partidários do antissistema não querem, pois dele querem usufruir.
Além disso,
as atitudes excessivamente dirigistas e intromissivas da UE geraram o euroceticismo
e o seu crescimento, que, em articulação com o antissistema e sua corrupção,
resultou num efeito altamente tóxico.
Se, a seguir
ao referendo, se marcarem eleições gerais, Grillo disputá-las-á taco a taco com
o PD de Renzi. E, uma vez que a nova lei eleitoral italiana dá um grande prémio
ao vencedor (Renzi estava seguro de que seria beneficiado), essa perspetiva é verdadeiramente assustadora para os observadores. Contudo,
com adverte Poiares Maduro, o espectro de eleições antecipadas, apesar de as
oposições as estarem a exigir, é remoto, visto que a lei eleitoral ainda está a
ser considerada no Tribunal Constitucional e é, se ela passar, necessário algum
tempo para adequar a ela as estruturas eleitorais, a menos que o sistema
mantenha as normas eleitorais em vigor.
Neste contexto
de fragilidade do PD, surgem na ribalta Grillo, do “Cinco Estrelas”, e Matteo
Salvini, da “Liga do Norte”, com pouca experiência política, poucos
conhecimentos da história europeia, poucos argumentos e sem uma visão credível
para o futuro, mas a quererem que se mude o sistema todo, mas não como pedia
Renzi.
E Grillo afoita-se
a culpar a Europa tanto pelos erros italianos, como pelo elevado montante de
dívida pública, fazendo promessas impossíveis de cumprir, como a da garantia de
rendimentos para todos os cidadãos que não têm outros meios, à maneira de Juan
Perón, um populista consumado, sendo que tais benesses se revelaram erradas
quando foram implementadas na Argentina. Mas Grillo pode ainda cometer o erro absurdo
de replicar o modelo argentino de lidar com a dívida, entrando em
incumprimento, coisa que Itália só assumiu com Mussolini, quando este tentou
ir “pelo seu próprio caminho”, o que deu resultados desastrosos. Por isso, a
opinião pública questiona se Grillo é capaz de fazer a distinção entre a
política e a comédia.
Parece que o
“não” no referendo pretende não se circunscrever à temática do referendo, mas
levar a mudança até ao limite. Tal como no Reino Unido e nos Estados Unidos, “mudança”
é a palavra mágica em Itália. Ninguém quer ser avesso à mudança. Em vez disso,
a oposição às reformas é apresentada como promotora de reformas melhores. Alguns
pediam que não se mudasse apenas a constituição, mas que se mudasse tudo. Mas,
como escreve Tomasi di Lampedusa no romance Leopardo,
“mudar tudo pode ser apenas uma maneira de manter tudo na mesma”. E disso a Itália
seguramente não precisa.
***
Segundo as
suas palavras, a experiência de Renzi “como chefe do Governo termina aqui”. Com
efeito, numa declaração em direto a partir do Palácio Chigi, em Roma, reconheceu
que o “não” venceu de forma “totalmente
clara” e os seus promotores devem agora apresentar alternativas às reformas
constitucionais propostas neste referendo.
O
primeiro-ministro, que disse assumir “total responsabilidade pela derrota”,
fizera do referendo um voto
de confiança à própria liderança e prometeu demitir-se caso as suas propostas
fossem rejeitadas. Por isso, conhecidas as primeiras projeções, cumpriu o que prometera,
alegando ter querido “eliminar
as muitas cadeiras do Senado”, mas sendo a dele a que salta.
Em
resposta aos resultados, os partidos da oposição exigiram a demissão imediata
de Renzi, incluindo o Forza Italia, de Silvio Berlusconi, e a Liga do Norte, de
Matteo Salvini. E, de França, chegou a primeira reação internacional. Marine Le
Pen já felicitou a Liga do Norte pelo resultado e escreveu no Twitter que os italianos “repudiaram a União
Europeia e Renzi com este voto”, pelo que “devemos ouvir esta sede de liberdade
das nações e de proteção”.
Após
a aprovação do Orçamento, os destinos políticos de Itália ficarão nas mãos de
Sergio Mattarella, que optará por encarregar o Partido Democrático (PD), do chefe do Governo
demissionário, de formar um executivo de gestão ou então por antecipar as
eleições legislativas, previstas para 2018.
No cenário mais provável da formação dum novo governo tecnocrático, o Ministro
das Finanças Carlo Padoan é o favorito para suceder a Renzi num Governo de
transição. Porém, Grillo
exige novas eleições “o mais depressa possível”.
Esperemos
com paciência o curso dos acontecimentos e que a UE ganhe mais juízo e se cuide,
deixando de brincar com o fogo!
2016.12.05 – Louro de Carvalho
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