segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

O referendo italiano ditou o inequívoco “não” à reforma constitucional

Esperava-se uma vitória do “não” no referendo que decorreu em Itália a 4 de dezembro, mas não com uma tão grande margem, como referiu Poiares Maduro, ex-Ministro de Passos Coelho.
Na verdade, a expressão referendária marcou uma diferença 20 por cento das intenções de voto levadas à prática: o campo do não alcançou 59,1 por cento de votos e o sim, defendido pelo primeiro-ministro, conseguiu apenas 40,9 por cento.
A afluência às urnas cifrou-se numa percentagem de cerca de 70 por cento dos eleitores italianos que ousaram sair de suas casas para oferecer o seu voto no ato de referendo, uma participação excecionalmente alta em Itália, uma das mais altas em exercício de consulta popular. Com efeito, nos últimos 68 anos, a Itália teve 17 eleições gerais e alguns referendos. Porém, apenas em três ocasiões a ida dos eleitores italianos às urnas concitou uma tão circunspecta e temerosa atenção internacional: em 1948, quando a opção era bipolarizada entre o Ocidente e o comunismo; em 1976, quando os eleitores enfrentaram uma escolha bipolarizada semelhante, mas entre os democratas cristãos e o “eurocomunismo”, de Enrico Berlinguer; e agora, com o referendo sobre reformas constitucionais.
Os italianos decidiram, por larga maioria, não retirar ao Senado (a Câmara Alta do Parlamento) dois terços dos seus membros (de 315 para 100) e muita da sua autoridade legislativa – acabando com o “bicameralismo perfeito” –, como o voto no “sim” postulava, transformando aquele órgão num mero fórum de deliberação análogo ao germânico Bundesrat. Além disso, os italianos rejeitaram o regresso de alguns poderes regionais ao Governo central.
Mudanças como estas foram discutidas durante 30 anos. E a falta de um movimento coerente e institucionalizado do contra podia beneficiar Renzi, caso os eleitores concluíssem que não deviam desperdiçar uma oportunidade rara de fazer algo para reformar o seu sistema esclerótico. O Presidente Sergio Mattarella mostrou-se imparcial, mas preferiria que as reformas constitucionais avançassem. O seu antecessor, Giorgio Napolitano, estava declaradamente a favor destas reformas que, segundo disse, seriam “óptimas notícias para a Itália”. Todavia, os opositores queriam manter o status quo das instituições para podem delas usar, e venceram.
Por conseguinte, o Primeiro-Ministro, Matteo Renzi, que apostou o seu futuro político nesta votação, anunciando mesmo que se demitiria (ainda que não de imediato) se as reformas fossem rejeitadas, já anunciou a sua demissão a comunicar na tarde de hoje, dia 5, ao Presidente, tendo ficado assente que se demitiria só depois da aprovação do Orçamento para 2017.
O desfecho do referendo enfraquece irremediavelmente o Governo de coligação de centro esquerda, liderado pelo Partido Democrata (PD) de Renzi, que já vem agitado por lutas internas por causa desta intenção reformadora, ora gorada, das normas que regem a organização do poder. Aliás, mesmo que a votação tivesse sido no sentido pretendido pelo Chefe do Governo, vaticinava-se que o PD não fosse capaz de evitar uma divisão. Vamos agora ver se é capaz de se relevantar para a constituição de um novo governo no âmbito do atual quadro parlamentar e se se prepara adequadamente para as próximas eleições gerais, antecipadas ou não.
Obviamente que esta derrota de Renzi é necessariamente interpretada como uma vitória dos dois maiores partidos populistas italianos: a “Liga do Norte”, liderada por Matteo Salvini, e o grande Movimento “Cinco Estrelas” (M5S), liderado pelo comediante Beppe Grillo. Embora os dois partidos não sejam aliados, ambos nutrem um sentimento antissistema e são favoráveis a soluções nacionais para os problemas italianos – a começar pelo regresso à lira italiana.
Nas últimas sondagens para eleições legislativas, o Partido Democrático e o Movimento 5 Estrelas surgem empatados nas intenções de voto. Caso chegue ao poder, Beppe Grillo já prometeu referendar a permanência de Itália na Zona Euro.
Por outro lado, a Liga do Norte e o grande Movimento Cinco Estrelas podem juntar forças para apoiar um novo Governo e este pode realizar um novo referendo – e desta vez sobre o euro. E, se a Itália – um dos países europeus com a maior dívida pública – decidir seguir o seu caminho sozinha, todo o projeto europeu pode sofrer um golpe mortal. Na era de Donald Trump e do “Brexit”, tal desfecho está longe de ser impensável. Assim, embora o resultado do referendo tenha, no imediato, apenas consequências internas, estas podem, a prazo, questionar o destino da Europa. É certo que a Comissão Europeia emitiu uma mensagem de tranquilidade – o que não quer dizer que tenha ficado tranquila – estribada no pressuposto de que a Itália dispõe de estruturas políticas sólidas e de uma economia forte. No entanto, o euro desvalorizou face ao dólar e a dívida italiana é de 132% do PIB, só existindo como dívida mais gravosa que a sua a dívida grega. Porém, as bolsas europeias não se ressentiram, presumivelmente por os mercados já contarem com o “não”.
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Mas o caminho que levou ao referendo foi tortuoso e cheio de escolhos. Renzi queria a reforma do sistema e era secundado de forma discreta pelo Presidente e de modo aberto pelo ex-Presidente Giorgio Napolitano. Mas a contestação era feroz: o Parlamento rejeitou-a, o PD dividiu-se em relação a ela e a rua também. Algumas instituições estatais não suportam a ideia de concentração de poder nos ramos executivos, inclusive os magistrados, que temem a perda dos seus extensos e ilimitados poderes. Depois, vêm os novos populistas, muitos dos veteranos do PD e várias outras figuras de elite, incluindo antigos membros do Tribunal Constitucional, que geralmente receiam mudanças. E o antigo Primeiro-Ministro Silvio Berlusconi, oportunista como é, também se opõe às reformas.
Assim, a campanha pautou-se por uma ideia-base: votar “não” é votar contra o “sistema” e contra toda a sua corrupção. E, afinal, Renzi pretendia uma certa correção do sistema, que os partidários do antissistema não querem, pois dele querem usufruir.
Além disso, as atitudes excessivamente dirigistas e intromissivas da UE geraram o euroceticismo e o seu crescimento, que, em articulação com o antissistema e sua corrupção, resultou num efeito altamente tóxico.
Se, a seguir ao referendo, se marcarem eleições gerais, Grillo disputá-las-á taco a taco com o PD de Renzi. E, uma vez que a nova lei eleitoral italiana dá um grande prémio ao vencedor (Renzi estava seguro de que seria beneficiado), essa perspetiva é verdadeiramente assustadora para os observadores. Contudo, com adverte Poiares Maduro, o espectro de eleições antecipadas, apesar de as oposições as estarem a exigir, é remoto, visto que a lei eleitoral ainda está a ser considerada no Tribunal Constitucional e é, se ela passar, necessário algum tempo para adequar a ela as estruturas eleitorais, a menos que o sistema mantenha as normas eleitorais em vigor.
Neste contexto de fragilidade do PD, surgem na ribalta Grillo, do “Cinco Estrelas”, e Matteo Salvini, da “Liga do Norte”, com pouca experiência política, poucos conhecimentos da história europeia, poucos argumentos e sem uma visão credível para o futuro, mas a quererem que se mude o sistema todo, mas não como pedia Renzi.
E Grillo afoita-se a culpar a Europa tanto pelos erros italianos, como pelo elevado montante de dívida pública, fazendo promessas impossíveis de cumprir, como a da garantia de rendimentos para todos os cidadãos que não têm outros meios, à maneira de Juan Perón, um populista consumado, sendo que tais benesses se revelaram erradas quando foram implementadas na Argentina. Mas Grillo pode ainda cometer o erro absurdo de replicar o modelo argentino de lidar com a dívida, entrando em incumprimento, coisa que Itália só assumiu com Mussolini, quando este tentou ir “pelo seu próprio caminho”, o que deu resultados desastrosos. Por isso, a opinião pública questiona se Grillo é capaz de fazer a distinção entre a política e a comédia.
Parece que o “não” no referendo pretende não se circunscrever à temática do referendo, mas levar a mudança até ao limite. Tal como no Reino Unido e nos Estados Unidos, “mudança” é a palavra mágica em Itália. Ninguém quer ser avesso à mudança. Em vez disso, a oposição às reformas é apresentada como promotora de reformas melhores. Alguns pediam que não se mudasse apenas a constituição, mas que se mudasse tudo. Mas, como escreve Tomasi di Lampedusa no romance Leopardo, “mudar tudo pode ser apenas uma maneira de manter tudo na mesma”. E disso a Itália seguramente não precisa. 
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Segundo as suas palavras, a experiência de Renzi “como chefe do Governo termina aqui”. Com efeito, numa declaração em direto a partir do Palácio Chigi, em Roma, reconheceu que o “não venceu de forma “totalmente clara” e os seus promotores devem agora apresentar alternativas às reformas constitucionais propostas neste referendo. 
O primeiro-ministro, que disse assumir “total responsabilidade pela derrota”, fizera do referendo um voto de confiança à própria liderança e prometeu demitir-se caso as suas propostas fossem rejeitadas. Por isso, conhecidas as primeiras projeções, cumpriu o que prometera, alegando ter querido  “eliminar as muitas cadeiras do Senado”, mas sendo a dele a que salta. 
Em resposta aos resultados, os partidos da oposição exigiram a demissão imediata de Renzi, incluindo o Forza Italia, de Silvio Berlusconi, e a Liga do Norte, de Matteo Salvini. E, de França, chegou a primeira reação internacional. Marine Le Pen já felicitou a Liga do Norte pelo resultado e escreveu no Twitter que os italianos “repudiaram a União Europeia e Renzi com este voto”, pelo que “devemos ouvir esta sede de liberdade das nações e de proteção”.
Após a aprovação do Orçamento, os destinos políticos de Itália ficarão nas mãos de Sergio Mattarella, que optará por encarregar o Partido Democrático (PD), do chefe do Governo demissionário, de formar um executivo de gestão ou então por antecipar as eleições legislativas, previstas para 2018.  No cenário mais provável da formação dum novo governo tecnocrático, o Ministro das Finanças Carlo Padoan é o favorito para suceder a Renzi num Governo de transição. Porém, Grillo exige novas eleições “o mais depressa possível”.
Esperemos com paciência o curso dos acontecimentos e que a UE ganhe mais juízo e se cuide, deixando de brincar com o fogo!

2016.12.05 – Louro de Carvalho

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