quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Do impacto da proposta do Papa sobre a não violência com vista à paz

A tendência é efetivamente ouvir o Papa com agrado, mas considerar o seu discurso como utópico, dada a alegada índole irreal das suas propostas. E a aposta na definição de paz como um conceito cada vez menos coincidente com a mera ausência de guerra é recorrente nos discursos pontifícios desde que Paulo VI investiu no diálogo, pela encíclica Ecclesiam Suam, e o Vaticano II abriu a Igreja ao mundo, sobretudo pela Constituição Pastoral Gaudium et Spes.
E não se pode esquecer a relevância de textos como a encíclica Populorum Progressio e a Carta Apostólica Octagesima Adveniens, ambas de Paulo VI, a abrir para Nova Ordem Económica Internacional, baseada na justiça, bem como a instituição do Dia mundial da Paz, há 50 anos.
Porém, propor a educação para a paz, dizer que o nome da paz é desenvolvimento ou que a paz depende de cada um, fazer derivar a paz da justiça e apelar a que não haja mais guerra – tudo isto soa aos ouvidos embotados dos decisores e no coração dilacerado dos explorados e dos postos à margem como refinada utopia. 
Obviamente, nunca mais os sucessores de Paulo VI deixaram de insistir na necessidade e na possibilidade da paz e de exortar à oração pela paz e à postura e comportamentos de paz. E Francisco tem pegado no tema sob vários ângulos da sua compreensão, instando oportuna e importunamente pela abolição dos conflitos, chamando às coisas pelo seu nome e denunciando a guerra praticada aos pedaços, com o risco de despedaçar a Humanidade. E, sustentado no Evangelho e nos heróis da não violência – cristãos ou não –, empreende denodadamente a cruzada do diálogo, da diplomacia e a da não violência como estilo de vida gerador de paz.
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Não obstante as reações silenciosas de oposição e de comportamentos em contrário, o general Luís Valença Pinto, antigo Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas de Portugal (CEMGFA), professor e investigador da Universidade Autónoma e da Universidade Católica Portuguesa, sublinha, em entrevista publicada no semanário Ecclesia (de que se respigam alguns aspetos), do passado dia 17 de dezembro, que a utopia do Papa Francisco pela paz “não é irreal”.
Falando do impacto que a linha de rumo de Francisco sobre a não-violência como caminho para a paz deve ter nos diversos cenários político-militares, assegura que se trata de “uma proposta difícil mas não ‘irreal’, que deve inspirar os líderes internacionais” na orientação das suas ações “por valores e não apenas por objetivos estratégicos”.
O general investigador situa esta pretensão papal “na justa medida em que, antes de mais, são precisos princípios, valores e critérios de vida” e considera que ela se enquadra “na linha do pensamento absolutamente luminoso da Igreja”, nomeadamente através ensino dos Papas em matéria da “Paz”, iniciado explicitamente com Paulo VI quando, nos anos 60, contrapôs a ideia da “paz justa” à da “guerra justa”. Depois, assinala o cunho pedagógico do Papa ao acentuar, na sua mensagem para o 50.º Dia Mundial da Paz, “o critério de perspetiva, de abordagem de vida” e o “entendimento muito claro de que a não-violência deve ser ativa”, não se compadecendo com a confusão da mesma “com neglicência, com rendição, com passividade”, como seria típico do contexto do pacifismo, que não tem, em si, “nada a ver com a paz”.
À questão se “a mensagem papal procura trazer novos protagonistas para a causa da paz”, o entrevistador acentua o reforço da importância, da legitimidade e da possibilidade prática da mensagem papal com base na “alteração do quadro geopolítico no pós-Guerra Fria”, em que “a segurança e as questões que se colocam na ordem geopolítica deixaram de estar apenas resumidas aos Estados, às suas independências, às suas soberanias, às suas integridades territoriais, e passaram também a incluir as pessoas”, sendo que hoje as pessoas são “absolutamente centrais na temática da segurança”. Tanto assim é que “os Estados de Direito, razoavelmente tranquilos sobre si próprios e o seu papel no mundo, percebem que não se pode hoje construir segurança sem as pessoas, muito menos contra as pessoas”. E esta mensagem tem profundo sentido hoje porque se percebe melhor que a paz, para ser efetiva e duradoura, tem de ultrapassar as categorias de “paz nominal”, de mera “ausência da guerra”. Assim, no dizer do general professor, “a paz hoje entende-se no plano filosófico, no plano político e moral, como a ausência de exclusão nos planos político, económico e social”. E, em vez de se insistir no seu caráter utópico, deve pensar-se nela como “meta” e como “caminho”.
Nestes termos, os protagonistas da paz têm de multiplicar-se.
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No âmbito da referência direta do Papa aos “senhores da guerra”, Valença Pinto entende que Francisco introduz “uma confusão no sistema, porque ‘senhores da guerra’ é uma coisa “na terminologia das nações internacionais, da segurança internacional e da geopolítica” – “são indivíduos, um misto de bandidos e criminosos dos vários crimes organizados” praticando “as mais trágicas e infames tropelias” –, ao passo que, para o Papa, “esses senhores da guerra são os governantes, os dirigentes políticos”. No entanto, em conformidade como o pensamento muito claro do Pontífice, “a paz ou confronto radicam e residem no coração dos homens, seja qual for o seu nível e estatuto de responsabilidade” – o que nos faz “perceber que as armas são apenas sintomas e não diretamente causadoras dos conflitos”.
Apesar de tudo, esse acento na raiz e na morada interior da causa dos conflitos “não tem nada de contraditório com o propósito de desarmamento” e de “controlo do armamento”. Trata-se é de patamares diferentes.
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Também o ex-CEMGFA não se esquivou a comentar a pretensão do Papa do desarmamento nuclear. Diz em relação, a este ponto, que faz todo o sentido enunciá-lo “como objetivo”. Porém, reconhecendo ser “muito difícil desinventar o que existe”, considera que “também é muito difícil desarmar, no plano nuclear”. Com efeito, o exemplo das “duas grandes potências nucleares” é revelador: por um lado, “sem nenhuma comparação em relação às demais, a Rússia tem um comportamento internacional” que é “completamente à revelia do direito internacional público, de uma forma totalmente abusiva”; por outro, a administração norte-americana posiciona-se no “patamar de uma grande dúvida, de uma grande inquietação, reforçada por declarações do então candidato [Trump] a dizer que, para resolver as tensões do Pacífico, seria interessante que o Japão e a Coreia do Sul se nuclearizassem”.
Frisando como “muito seguro que devemos ter este objetivo como critério”, o estratega pronuncia-se nos termos seguintes
“Devemos realmente impedir, contrariar a proliferação, com a certeza de que, se falharmos num qualquer exercício de proliferação nuclear, ela vai ser expansiva, muito expansiva, mesmo. Hoje em dia, talvez, muito perto de 40 Estados tenham, com maior ou menor dificuldade, com maior ou menor demora, capacidade para ter armas nucleares. E nós só temos, felizmente, nove Estados com armamento nuclear.”.
Ao facto de o Papa “como referência mundial” estar sozinho neste discurso, o general acorre:
“Quando se trata de valores e de princípios, fazem falta todas as vozes. Há muitos anos, comecei a ensinar estratégia, que é algo que se inscreve dentro deste domínio, e classicamente, uma estratégia define-se por uma combinação de objetivos, recursos e linhas de ação. Foi precisa alguma maturação para perceber que esse enunciado é de quem tem uma visão tecnocrática. Acima dos objetivos, têm de estar os princípios e os valores, que são critérios fundamentais.”. 
Ora, quem me conhece sabe como sou avesso à importação do raciocínio da estratégia do âmbito militar para o da economia e sobretudo para o da educação. É que, no seu campo próprio, o militar, a estratégia é aquilo que o general diz e muito bem. Mas, também como ele refere, acima e antes de tudo, estão os princípios e os valores como critérios fundamentais. 
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No atinente ao apelo da mensagem papal a “um compromisso religioso”, supostamente por esta “falta de visão comum”, o eminente militar avisa que “o ecumenismo nessa dimensão é absolutamente fundamental”. Com efeito, concedendo que não temos “um conhecimento muito detalhado de determinadas expressões animistas ou de seitas evangélicas”, pode afirmar-se que “as grandes religiões do mundo não colocam esse problema”, excetuando “aquilo que é a interpretação do islamismo no mundo muçulmano”. Mas, na ótica do general ex-CEMGFA, independentemente das sintonias que se possam encontrar, “a questão central do islamismo tem de ser resolvida pelos próprios muçulmanos”.
E, pressupondo que, “sem esse debate, isso não será resolvido”, aduz o exemplo da “intervenção muito corajosa” da Universidade sunita do Cairo – intervenção “porventura não muito afirmada, dadas “as condições políticas e sociais” pouco favoráveis. No entanto, o general investigador e professor pensa “que é por aí que se deve seguir, em vez de um triste confronto de civilizações, para que haja um mais feliz e frutuoso encontro”.
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A última questão lançada pelo entrevistador tem a ver com a possibilidade de a mensagem do Papa Francisco “servir como fonte inspiração” a António Guterres, o novo secretário-geral da ONU, que entrará em funções precisamente a 1 de janeiro de 2017, Dia Mundial da Paz. Recorde-se que o Padre Vítor Melícias, no dia do juramento da Carta das Nações Unidas por Guterres, disse que este era o Papa Francisco civil.
Sobre esta matéria e invocando o seu conhecimento “da vida pública e de observador distante”, Valença Pinto é de parecer que o novo líder da ONU se identifica “certamente com esta mensagem do Papa, no plano intelectual e consequentemente no plano político”. Porém, chama a atenção para a incidência prática de tal postura mental e voluntariosa:
“Isso é uma coisa, outra é a necessidade de termos consciência – e às vezes, em Portugal, empolgamo-nos tanto com o sucesso dos nossos compatriotas que negligenciamos a leitura do que é verdadeiramente o seu espaço real de intervenção e afirmação – de que o secretário-geral das Nações Unidas tem um poder limitado, objetivamente”.
Não obstante, apesar do caráter limitado das suas competências, o secretário-geral tem um “poder ilimitado”, o de “ser uma consciência moral e política, por esta ordem, dentro das Nações Unidas”. E, embora a sua capacidade seja muito reduzida no plano da execução e muito reduzido o seu poder de influência (realmente, na ONU mandam os Estados, sobretudo os que integram o Conselho de Segurança, ainda mais os 5 membros permanentes, e os que pagam a organização), isso “não o deve inibir de exercer de uma forma intensa e empenhada este papel de alerta e de consciência moral e política daquilo que se passa e decide no espaço das Nações Unidas”.
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Em todo o caso, pretende-se que nem Francisco nem Guterres desistam da promoção desta cultura da não violência como estilo de vida para a consecução da paz.

2016.12.22 – Louro de Carvalho

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