quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

No 520.º aniversário do édito de expulsão dos judeus de Portugal

Independentemente da provável diferença de critérios que separa o mundo pujante do século XVI do esclarecido do século XXI (que pretende ser o acúmulo da urbanidade e o apogeu do humanismo), é de questionar como o rei Venturoso se deixou manipular pelos reis católicos, D. Isabel e D. Fernando, auto-obrigando-se a produzir o édito de expulsão dos judeus do território nacional.
Não era certo que Portugal tinha chegado à Índia – já com o sistema dos vice-reis – e mostrado ao mundo que existia mundo a ocidente, a que a Espanha, apesar da proeza de Colombo, não acedera, e que estava desfeito o equívoco de que a Índia era algo a que não se chegara rumando a ocidente? Não tinham os portugueses chegado à Terra Nova e à Gronelândia, ao rio Hudson e ao Labrador? Não havia outra forma de negociar o casamento com Isabel?
Maria José Oliveira publica hoje, dia 29, um extenso artigo (de que se respigam alguns dados) sobre o tema no Observador on line, em que salienta que “faz 520 anos que D. Manuel I assinou o édito de expulsão dos judeus”, condição imposta por Espanha para que casasse com D. Isabel. Por isso, milhares de judeus tiveram de escolher entre a expulsão ou a conversão ao cristianismo.
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Um decreto dos reis católicos de Espanha rompera, em 31 de março de 1492, com a longa tradição de tolerância religiosa em Castela, Leão e Portugal. Os judeus de Castela e de Aragão foram então obrigados à conversão ao cristianismo, sob pena de serem expulsos de Espanha no prazo máximo de 4 meses.
Os sefarditas, judeus que habitavam a Península, eram olhados com visível desconfiança desde a Idade Média, não propriamente por motivos religiosos, mas por cooperarem com os reis “na cobrança das rendas e na organização da contabilidade pública”. E, apesar dos ataques ocasionais às judiarias, “mantinha-se a tolerância” no atinente à religião. Em julho de 1492, expirado o prazo estipulado em Espanha, milhares de judeus atravessaram a fronteira com a permissão de D. João II, que nomeou locais onde se poderiam instalar – Olivença, Arronches, Belmonte, Figueira de Castelo Rodrigo, Bragança e Melgaço – e, na raia, recebiam um salvo-conduto contra o pagamento de “uma espécie de portagem”. Os que exerciam uma profissão beneficiavam de um desconto, por serem tidos “como mão-de-obra útil à economia nacional”.
Maria José Oliveira sustenta que “a documentação coeva não permite definir, com rigor, o total de judeus desterrados” já que os números apontados pelos investigadores variam entre as 40 mil pessoas e as 120 mil. Por outro lado, assegura que, embora a maioria se dirigisse “para as grandes cidades”, como “Lisboa, Porto e Évora”, uma parcela considerável ter-se-á fixado “na raia, na zona de Ribacoa”, pelo que, segundo Adriano Vasco Rodrigues, se instalaram comunidades judaicas em Mirandela, Moncorvo, Pinhel, Vila Nova de Foz Coa, Meda, Marialva, Numão, Trancoso, Guarda e Sabugal. Tal decisão parece justificar-se pela esperança “de que o decreto de expulsão fosse revogado”, possibilitando o regresso a Espanha.
Mas a autorização joanina emitida com o salvo-conduto extinguia-se ao fim de 8 meses. Poderiam viajar para outras paragens, mas o rei só lhes permitia embarcar para Tânger e Arzila. Porém, os que o fizeram regressaram por roubo e maus tratos da parte dos mouros.
E a postura do Príncipe Perfeito para com os judeus expulsos de Espanha tornou-se lastimável. Em 1493, ordenou a retirada dos filhos menores aos pais e o seu envio para São Tomé. “A maioria das crianças” foi ali comida pelos crocodilos, que eram em grande número, e muitas não resistiram ao clima hostil e à fome.
O médico alemão Jerónimo Münzer, que estava em Lisboa em dezembro de 1494, escreveu em sua “Viagem por Espanha e Portugal. 1494-1495”:
“Os Judeus de Lisboa são riquíssimos, cobram os tributos reais, que arremataram ao Rei. São insolentes com os cristãos. Têm muito medo da proscrição, pois o Rei de Espanha ordenou ao Rei de Portugal que expulsasse os marranos e da mesma forma os Judeus, aliás teria guerra com ele. O Rei de Portugal, fazendo a vontade ao de Espanha, ordenou que antes do Natal saíssem do reino todos os marranos [Marranos eram os judeus convertidos ao cristianismo que mantinham clandestinamente as práticas judaicas]. Eles fretaram a nau Rainha, belíssimo navio, e no meado de dezembro irão para Nápoles; aos Judeus, porém, deu o Rei o prazo de dois anos [Garcia de Resende diz na sua “Crónica de D. João II” que o prazo foi de 8 meses] para assim os expulsar do reino menos violentamente. Em vista disso, os Judeus vão-se retirando sem demora e procuram no estrangeiro lugares próprios para a sua residência”.
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Por óbito de D. João II em 1495, o trono foi tomado por D. Manuel, sobrinho e cunhado do soberano, que o designou como sucessor, dado que o herdeiro, o príncipe Afonso, morrera alguns anos antes. Nos primeiros anos do seu reinado, os judeus viveram em paz, tendo mesmo o novo monarca “escolhido o judeu Abraão Zacuto para seu médico particular (que também era matemático e astrónomo, pelo que fora consultado antes de o rei enviar a 1.ª expedição de Vasco da Gama à Índia). Como o seu predecessor imediato, D. Manuel desejava a união ibérica, sob a coroa portuguesa, naturalmente, pelo que propôs casamento a D. Isabel, viúva do primo Afonso e filha mais velha dos reis católicos. A proposta foi aceite pelos progenitores, mas sob a condição de o soberano português “expulsar os judeus do país”. Assim, em novembro de 1496, D. Manuel casou com D. Isabel e, logo no mês seguinte, por édito de 5 de dezembro, decretou a expulsão dos judeus (e dos mouros), “obrigados a sair do país até finais de outubro” seguinte. Não o fazendo, ser-lhes-ia aplicada a pena de morte e o confisco de “todos os seus bens”. Porém, a decisão não foi consensual no Conselho do Reino, que advertiu para “a fuga de capitais”. Assim, o rei permitiu a quem se convertesse ao cristianismo a permanência no país, agendando como prazo para os batismos, “a Páscoa de 1497”.
A conversão forçada ficou marcada por medidas trágicas. Na Páscoa de 1497, o rei ordenou que os judeus menores de 14 anos fossem entregues a famílias cristãs de várias vilas e cidades, vindo esta ordem a estender-se aos jovens de 20 anos. Daqui resultou que “muitos pais mataram os seus filhos, degolando-os ou lançando-os em poços e rios”. Mas o soberano ainda restringiu “o número de portos de embarque para aqueles que queriam sair do reino, obrigando-os a concentrarem-se na capital”. Muitos, oriundos de várias zonas, foram encaminhados para o Palácio dos Estaus, “ali permanecendo, sem comer e sem beber, até ao momento do embarque”.
A ideia do aprisionamento era motivá-los para a conversão. Assim é que – diz Maria José – “enquanto aguardavam pela partida para o estrangeiro, foram visitados por dois judeus conversos, Nicolau, médico, e Pedro de Castro, eclesiástico em Vila Real”, com a missão de “persuadir os judeus a converterem-se ao cristianismo”, sendo que muitos foram “levados para as igrejas da Baixa e batizados contra a sua vontade”, enquanto “outros conseguiram fugir e suicidaram-se, atirando-se a cisternas e a poços”. E os que, “não tendo sido batizados, ficaram no país, já como escravos do rei, apresentaram uma proposta a D. Manuel”: contra a aceitação da conversão, pediam a restituição dos filhos e “a garantia de que o rei não ordenaria qualquer inquérito sobre as suas práticas religiosas num período de 20 anos”. Tendo D. Manuel anuído, foi publicada, a 30 de maio de 1497, a proibição de inquirições sobre as crenças dos recém-convertidos ao cristianismo. E o decreto determinava que,
“Ao fim de 20 anos, se o cristão-novo fosse acusado de judaizar, teria direito a conhecer os seus acusadores para que pudesse defender-se; caso fosse comprovado o crime de heresia, seria condenado à perda de bens, posteriormente legados aos herdeiros cristãos; os físicos e os cirurgiões que não sabiam latim poderiam utilizar livros de medicina em hebraico; finalmente, os cristãos-novos não deveriam ser tratados de forma distinta, uma vez que estavam convertidos à Santa Fé”.
Daqui nasceu o criptojudaísmo, ou seja, a prática clandestina da religião judaica. Deste criptojudaísmo surgiram as famosas alheiras de Mirandela e de Moncorvo: em tripa de porco, para iludir os possíveis olharapos do Reino, eram introduzidas várias carnes, nomeadamente de aves, com condimentos de que os principais eram o alho, o azeite e o vinho ou o vinagre, para garantir a pureza ritual e alimentar do judaísmo.  
Todavia, as garantias do decreto não convenceram todos os judeus. Muitos preferiram sair do país, levando consigo os bens, e “os mais ricos negociaram letras de câmbio com os cristãos, para depois serem trocadas noutro país” – o que significava que “uma parte da riqueza do país estava a fugir. Por isso, em 1499, o rei fez publicar duas leis: uma “proibia o negócio com os judeus”; e a outra “impedia a saída do reino dos conversos de 1497 sem prévia autorização régia”. O não cumprimento destas normas “resultaria no confisco dos bens dos infratores.
Com estas medidas, D. Manuel I pretendia “estimular a integração dos conversos na sociedade”. E, para este efeito, entre 1497 e 1499, promulgou uma lei que proibia o casamento entre cristãos-novos, com o objetivo de “inserir a minoria nas famílias de cristãos-velhos” e de “fazer “partilhar o dinheiro e os bens dos ex-judeus”. Porém, tais medidas não resultaram por subsistir “o sentimento antijudaico na maioria cristã” e “porque os cristãos-novos, ainda que em número reduzido, estavam no pódio das grandes fortunas”, visto que, “após a conversão, ganharam mais poder, ascenderam à nobreza, às universidades, à administração real e municipal”.
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Maria José Oliveira, com base no relato de Damião de Góis, dá-nos conta do que se passou em Lisboa, com a minoria cristã nova, a 19 de abril de 1506, domingo de Pascoela.
A cidade Lisboa estava assombrada pela peste que a assolava desde outubro de 1505: “um período de seca matara os campos nos arrabaldes; escasseavam alimentos; a fome tomava conta da cidade”. Naquele dia, a igreja do convento de São Domingos estava repleta de cristãos-velhos, pois surgira o rumor de que, no dia 15, ocorrera ali um milagre. Os crentes aguardavam a sua repetição, que supostamente aconteceu. Aos olhos dos cristãos, brilhou uma luz no crucifixo da igreja e a multidão rejubilou, exceto uma pessoa, que alertou para o facto de se tratar dum reflexo duma das muitas candeias acesas. Era um cristão-novo, que para os cristãos-velhos era um judeu, alvo de ódio. Arrastaram-no para rua, mataram-no e queimaram-no no Rossio. Sabendo do que sucedera, o irmão acorreu ao local e, ao gritar contra os assassinos, foi morto e queimado numa fogueira. Na agitação, um frade dominicano bradou discurso contra os judeus, pondo a turba a vociferar contra a comunidade judaica. E Frei João Mocho e Frei Bernardo juntaram-se ao que estava a discursar, exibindo o crucifixo do “milagre” e gritando: “Heresia! Heresia! Destruam o povo abominável!”.
Aos gritos seguiu-se o massacre. A multidão dos crentes espalhou-se pelas ruas de Lisboa e juntou-se-lhe “a chusma das naus da Índia, que, atiçada pela pregação dos frades, violou, matou e queimou milhares de pessoas”. Mais: durante três dias, “arrombavam as portas das casas, em busca de cristãos-novos, perseguiam quem tentava fugir, carregavam mortos e vivos para as fogueiras que iam sendo ateadas em vários locais da cidade, como o Rossio e a zona ribeirinha”.
Segundo Damião de Góis, o rei, ao ser informado do que sucedia em Lisboa quando estava em Avis, a caminho de Beja para visitar a mãe, a infanta D. Beatriz, ficou “triste” e “enojado”, tendo dado de imediato “poderes ao Prior do Crato e a D. Diogo Lobo para castigarem os culpados”. Porém, “o problema era identificar os culpados”. Era uma cidade inteira – portugueses e estrangeiros – revoltada contra os judeus que matara quem não conseguiu escapar.
Como punição aos habitantes de Lisboa, o soberano retirou uma série de privilégios à cidade: os que provadamente participaram no morticínio perderam todos os bens; os que não estavam envolvidos, mas nada fizeram para deter a multidão, perderam um quinto dos bens; e foi suspensa a eleição dos representantes da Casa dos Vinte Quatro e dos seus quatro representantes na vereação municipal da cidade.
O acontecimento, denominado “Pogrom de abril de 1506” ou Matança da Páscoa de abril de 1506, continua a ser recordado em dois monumentos erguidos no Largo de São Domingos, onde se iniciou a tragédia, inaugurados em abril de 2008, por iniciativa da autarquia e das comunidades judaica e católica.
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Cenas destas, e até em escala amor, sucedem-se hoje contra judeus, cristãos e tantos outros – por motivos políticos, religiosos, económicos. Até quando?!

2016.12.29 – Louro de Carvalho

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