Independentemente
da provável diferença de critérios que separa o mundo pujante do século XVI do
esclarecido do século XXI (que pretende ser o acúmulo da urbanidade e o apogeu do
humanismo), é de questionar como o rei
Venturoso se deixou manipular pelos reis católicos, D. Isabel e D. Fernando, auto-obrigando-se
a produzir o édito de expulsão dos judeus do território nacional.
Não era
certo que Portugal tinha chegado à Índia – já com o sistema dos vice-reis – e
mostrado ao mundo que existia mundo a ocidente, a que a Espanha, apesar da
proeza de Colombo, não acedera, e que estava desfeito o equívoco de que a Índia
era algo a que não se chegara rumando a ocidente? Não tinham os portugueses chegado
à Terra Nova e à Gronelândia, ao rio Hudson e ao Labrador? Não havia outra
forma de negociar o casamento com Isabel?
Maria José
Oliveira publica hoje, dia 29, um extenso artigo (de que se
respigam alguns dados) sobre o
tema no Observador on line, em que
salienta que “faz 520 anos que D. Manuel I assinou o édito de expulsão dos
judeus”, condição imposta por Espanha para que casasse com D. Isabel. Por isso,
milhares de judeus tiveram de escolher entre a expulsão ou a conversão ao
cristianismo.
***
Um decreto dos
reis católicos de Espanha rompera, em 31 de março de 1492, com a longa tradição
de tolerância religiosa em Castela, Leão e Portugal. Os judeus de Castela e de
Aragão foram então obrigados à conversão ao cristianismo, sob pena de serem
expulsos de Espanha no prazo máximo de 4 meses.
Os
sefarditas, judeus que habitavam a Península, eram olhados com visível
desconfiança desde a Idade Média, não propriamente por motivos religiosos, mas
por cooperarem com os reis “na cobrança das rendas e na organização da
contabilidade pública”. E, apesar dos ataques ocasionais às judiarias,
“mantinha-se a tolerância” no atinente à religião. Em julho de 1492, expirado o
prazo estipulado em Espanha, milhares de judeus atravessaram a fronteira com a
permissão de D. João II, que nomeou locais onde se poderiam instalar –
Olivença, Arronches, Belmonte, Figueira de Castelo Rodrigo, Bragança e Melgaço –
e, na raia, recebiam um salvo-conduto contra o pagamento de “uma espécie de
portagem”. Os que exerciam uma profissão beneficiavam de um desconto, por serem
tidos “como mão-de-obra útil à economia nacional”.
Maria José
Oliveira sustenta que “a documentação coeva não permite definir, com rigor, o
total de judeus desterrados” já que os números apontados pelos investigadores
variam entre as 40 mil pessoas e as 120 mil. Por outro lado, assegura que,
embora a maioria se dirigisse “para as grandes cidades”, como “Lisboa, Porto e
Évora”, uma parcela considerável ter-se-á fixado “na raia, na zona de Ribacoa”,
pelo que, segundo Adriano Vasco Rodrigues, se instalaram comunidades judaicas em
Mirandela, Moncorvo, Pinhel, Vila Nova de Foz Coa, Meda, Marialva, Numão, Trancoso,
Guarda e Sabugal. Tal decisão parece justificar-se pela esperança “de que o
decreto de expulsão fosse revogado”, possibilitando o regresso a Espanha.
Mas a
autorização joanina emitida com o salvo-conduto extinguia-se ao fim de 8 meses.
Poderiam viajar para outras paragens, mas o rei só lhes permitia embarcar para
Tânger e Arzila. Porém, os que o fizeram regressaram por roubo e maus tratos da
parte dos mouros.
E a postura
do Príncipe Perfeito para com os judeus expulsos de Espanha tornou-se lastimável.
Em 1493, ordenou a retirada dos filhos menores aos pais e o seu envio para São
Tomé. “A maioria das crianças” foi ali comida pelos crocodilos, que eram em grande
número, e muitas não resistiram ao clima hostil e à fome.
O médico
alemão Jerónimo Münzer, que estava em Lisboa em dezembro de 1494, escreveu em
sua “Viagem por Espanha e Portugal.
1494-1495”:
“Os Judeus
de Lisboa são riquíssimos, cobram os tributos reais, que arremataram ao Rei.
São insolentes com os cristãos. Têm muito medo da proscrição, pois o Rei de
Espanha ordenou ao Rei de Portugal que expulsasse os marranos e da mesma forma
os Judeus, aliás teria guerra com ele. O Rei de Portugal, fazendo a vontade ao
de Espanha, ordenou que antes do Natal saíssem do reino todos os marranos [Marranos eram os judeus convertidos ao cristianismo
que mantinham clandestinamente as práticas judaicas]. Eles fretaram a nau
Rainha, belíssimo navio, e no meado de dezembro irão para Nápoles; aos Judeus,
porém, deu o Rei o prazo de dois anos [Garcia de Resende diz na sua “Crónica de D. João II” que o prazo foi
de 8 meses] para assim os expulsar do reino menos violentamente. Em vista disso,
os Judeus vão-se retirando sem demora e procuram no estrangeiro lugares próprios
para a sua residência”.
***
Por óbito de
D. João II em 1495, o trono foi tomado por D. Manuel, sobrinho e cunhado do
soberano, que o designou como sucessor, dado que o herdeiro, o príncipe Afonso,
morrera alguns anos antes. Nos primeiros anos do seu reinado, os judeus viveram
em paz, tendo mesmo o novo monarca “escolhido o judeu Abraão Zacuto para seu
médico particular (que também era matemático e astrónomo, pelo que fora
consultado antes de o rei enviar a 1.ª expedição de Vasco da Gama à Índia). Como o seu predecessor imediato, D. Manuel desejava
a união ibérica, sob a coroa portuguesa, naturalmente, pelo que propôs
casamento a D. Isabel, viúva do primo Afonso e filha mais velha dos reis
católicos. A proposta foi aceite pelos progenitores, mas sob a condição de o
soberano português “expulsar os judeus do país”. Assim, em novembro de 1496, D.
Manuel casou com D. Isabel e, logo no mês seguinte, por édito de 5 de dezembro,
decretou a expulsão dos judeus (e dos mouros), “obrigados
a sair do país até finais de outubro” seguinte. Não o fazendo, ser-lhes-ia
aplicada a pena de morte e o confisco de “todos os seus bens”. Porém, a decisão
não foi consensual no Conselho do Reino, que advertiu para “a fuga de capitais”.
Assim, o rei permitiu a quem se convertesse ao cristianismo a permanência no
país, agendando como prazo para os batismos, “a Páscoa de 1497”.
A conversão
forçada ficou marcada por medidas trágicas. Na Páscoa de 1497, o rei ordenou que
os judeus menores de 14 anos fossem entregues a famílias cristãs de várias
vilas e cidades, vindo esta ordem a estender-se aos jovens de 20 anos. Daqui resultou
que “muitos pais mataram os seus filhos, degolando-os ou lançando-os em poços e
rios”. Mas o soberano ainda restringiu “o número de portos de embarque para
aqueles que queriam sair do reino, obrigando-os a concentrarem-se na capital”. Muitos,
oriundos de várias zonas, foram encaminhados para o Palácio dos Estaus, “ali
permanecendo, sem comer e sem beber, até ao momento do embarque”.
A ideia do aprisionamento
era motivá-los para a conversão. Assim é que – diz Maria José – “enquanto
aguardavam pela partida para o estrangeiro, foram visitados por dois judeus
conversos, Nicolau, médico, e Pedro de Castro, eclesiástico em Vila Real”, com
a missão de “persuadir os judeus a converterem-se ao cristianismo”, sendo que
muitos foram “levados para as igrejas da Baixa e batizados contra a sua vontade”,
enquanto “outros conseguiram fugir e suicidaram-se, atirando-se a cisternas e a
poços”. E os que, “não tendo sido batizados, ficaram no país, já como escravos
do rei, apresentaram uma proposta a D. Manuel”: contra a aceitação da conversão,
pediam a restituição dos filhos e “a garantia de que o rei não ordenaria
qualquer inquérito sobre as suas práticas religiosas num período de 20 anos”. Tendo
D. Manuel anuído, foi publicada, a 30 de maio de 1497, a proibição de
inquirições sobre as crenças dos recém-convertidos ao cristianismo. E o decreto
determinava que,
“Ao fim de
20 anos, se o cristão-novo fosse acusado de judaizar, teria direito a conhecer
os seus acusadores para que pudesse defender-se; caso fosse comprovado o crime
de heresia, seria condenado à perda de bens, posteriormente legados aos
herdeiros cristãos; os físicos e os cirurgiões que não sabiam latim poderiam
utilizar livros de medicina em hebraico; finalmente, os cristãos-novos não
deveriam ser tratados de forma distinta, uma vez que estavam convertidos à
Santa Fé”.
Daqui nasceu
o criptojudaísmo, ou seja, a prática clandestina da religião judaica. Deste criptojudaísmo
surgiram as famosas alheiras de Mirandela e de Moncorvo: em tripa de porco, para
iludir os possíveis olharapos do Reino, eram introduzidas várias carnes,
nomeadamente de aves, com condimentos de que os principais eram o alho, o
azeite e o vinho ou o vinagre, para garantir a pureza ritual e alimentar do judaísmo.
Todavia, as
garantias do decreto não convenceram todos os judeus. Muitos preferiram sair do
país, levando consigo os bens, e “os mais ricos negociaram letras de câmbio com
os cristãos, para depois serem trocadas noutro país” – o que significava que “uma
parte da riqueza do país estava a fugir. Por isso, em 1499, o rei fez publicar
duas leis: uma “proibia o negócio com os judeus”; e a outra “impedia a saída do
reino dos conversos de 1497 sem prévia autorização régia”. O não cumprimento destas
normas “resultaria no confisco dos bens dos infratores.
Com estas
medidas, D. Manuel I pretendia “estimular a integração dos conversos na
sociedade”. E, para este efeito, entre 1497 e 1499, promulgou uma lei que
proibia o casamento entre cristãos-novos, com o objetivo de “inserir a minoria
nas famílias de cristãos-velhos” e de “fazer “partilhar o dinheiro e os bens
dos ex-judeus”. Porém, tais medidas não resultaram por subsistir “o sentimento
antijudaico na maioria cristã” e “porque os cristãos-novos, ainda que em número
reduzido, estavam no pódio das grandes fortunas”, visto que, “após a conversão,
ganharam mais poder, ascenderam à nobreza, às universidades, à administração
real e municipal”.
***
Maria José Oliveira,
com base no relato de Damião de Góis, dá-nos conta do que se passou em Lisboa,
com a minoria cristã nova, a 19 de abril de 1506, domingo de Pascoela.
A cidade Lisboa
estava assombrada pela peste que a assolava desde outubro de 1505: “um período
de seca matara os campos nos arrabaldes; escasseavam alimentos; a fome tomava
conta da cidade”. Naquele dia, a igreja do convento de São Domingos estava
repleta de cristãos-velhos, pois surgira o rumor de que, no dia 15, ocorrera ali
um milagre. Os crentes aguardavam a sua repetição, que supostamente aconteceu. Aos
olhos dos cristãos, brilhou uma luz no crucifixo da igreja e a multidão
rejubilou, exceto uma pessoa, que alertou para o facto de se tratar dum reflexo
duma das muitas candeias acesas. Era um cristão-novo, que para os cristãos-velhos
era um judeu, alvo de ódio. Arrastaram-no para rua, mataram-no e queimaram-no
no Rossio. Sabendo do que sucedera, o irmão acorreu ao local e, ao gritar contra
os assassinos, foi morto e queimado numa fogueira. Na agitação, um frade
dominicano bradou discurso contra os judeus, pondo a turba a vociferar contra a
comunidade judaica. E Frei João Mocho e Frei Bernardo juntaram-se ao que estava
a discursar, exibindo o crucifixo do “milagre” e gritando: “Heresia! Heresia! Destruam o povo
abominável!”.
Aos gritos
seguiu-se o massacre. A multidão dos crentes espalhou-se pelas ruas de Lisboa e
juntou-se-lhe “a chusma das naus da Índia, que, atiçada pela pregação dos
frades, violou, matou e queimou milhares de pessoas”. Mais: durante três dias, “arrombavam
as portas das casas, em busca de cristãos-novos, perseguiam quem tentava fugir,
carregavam mortos e vivos para as fogueiras que iam sendo ateadas em vários
locais da cidade, como o Rossio e a zona ribeirinha”.
Segundo Damião
de Góis, o rei, ao ser informado do que sucedia em Lisboa quando estava em Avis,
a caminho de Beja para visitar a mãe, a infanta D. Beatriz, ficou “triste” e
“enojado”, tendo dado de imediato “poderes ao Prior do Crato e a D. Diogo Lobo
para castigarem os culpados”. Porém, “o problema era identificar os culpados”. Era
uma cidade inteira – portugueses e estrangeiros – revoltada contra os judeus
que matara quem não conseguiu escapar.
Como punição
aos habitantes de Lisboa, o soberano retirou uma série de privilégios à cidade:
os que provadamente participaram no morticínio perderam todos os bens; os que
não estavam envolvidos, mas nada fizeram para deter a multidão, perderam um
quinto dos bens; e foi suspensa a eleição dos representantes da Casa dos Vinte
Quatro e dos seus quatro representantes na vereação municipal da cidade.
O acontecimento,
denominado “Pogrom de abril de 1506”
ou Matança da Páscoa de abril de 1506,
continua a ser recordado em dois monumentos erguidos no Largo de São Domingos,
onde se iniciou a tragédia, inaugurados em abril de 2008, por iniciativa da autarquia
e das comunidades judaica e católica.
***
Cenas destas,
e até em escala amor, sucedem-se hoje contra judeus, cristãos e tantos outros –
por motivos políticos, religiosos, económicos. Até quando?!
2016.12.29 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário