Em 3 de dezembro,
dia em que a Igreja Católica celebra a memória litúrgica (ou festa nalguns lugares) de São Francisco Xavier, a tentação
narrativa poderia levar a determo-nos na sua biografia. Porém, uma leitura biográfica
da obra xaveriana poderá valer de pouco se não se tiver em conta o contexto e
as finalidades do apostolado do jesuíta luso-navarro.
Faço alusão à
índole luso-navarra do santo missionário para fazer jus à realidade histórica. Quando
alguns portugueses ficam abespinhados com os italianos por titularem o santo
lisboeta por Santo António de Pádua, lembro-me de Francisco Xavier ou de Isabel
de Aragão, que nós consideramos – e bem – como integrantes do património espiritual
português. Aliás, como todos recordam, o Papa Francisco, na sua passagem
apostólica pelo Sri Lanka, procedeu à canonização de um santo – São José Vaz –
oriundo da então Índia portuguesa.
Ora, a
tradição atesta a ida de São Tomé para a Índia como um acontecimento em si
natural na sequência do pedido de Jesus para que fosse doutrinar aquelas terras,
no quadro do mandato: “Ide por todo o mundo...” (cf Mc 16,15). Assim, Tomé será considerado o apóstolo da Índia.
Com efeito, ele levou até lá o cristianismo original, obviamente com
influências judaicas, que acabou por se mesclar com as hindus. Os cristãos
catequizados por Tomé foram os puros cristãos, os que ouviram as palavras
daquele apóstolo que, de incrédulo, passou a crente orante face à evidência da identificação
do Ressuscitado com Aquele a Quem deram a morte de cruz.
Porém, à medida
que o mundo ia sendo conhecido como mais extenso, aumentaram as
responsabilidades missionárias da Igreja. E os padres da Companhia de Jesus
foram enviados, à semelhança do que já faziam franciscanos e dominicanos, às novas
partes que os emissários de Portugal e da Espanha iam descobrindo como terras de
gente. Todavia, a ação dos jesuítas – uma nova formação religiosa e missionária
no seu mais esplendoroso vigor apostólico – naturalmente suplantava as outras ordens
a passar um tempo de crise. Além disso, os membros da Companhia de Jesus, além
dos três conselhos evangélicos – pobreza, obediência e castidade –, professavam
o voto de especial obediência ao Papa.
Foi, assim,
que Francisco, nascido, a 7 de abril de 1506, no castelo de Xavier, perto de Pamplona,
foi enviado, em 1541, por ordem do Papa Paulo III, à Índia portuguesa, tendo
desembarcado em Goa em 1542. Os 10 anos que se seguiram na ação do ex-professor
da Universidade de Paris e cofundador da Companhia (aderindo ao projeto dum aluno seu: Inácio de Loyola) constituem uma das mais gloriosas epopeias da
História missionária da Igreja. Sem um momento de descanso, Francisco percorre toda
a Índia meridional, o Ceilão (Sri Lanka), a península de Malaca e as Ilhas Molucas. O missionário prega, batiza,
confessa, celebra missa e dá a comunhão, ergue Missões, Colégios e Seminários. Sem
preocupação com o clima ou com a saúde, Francisco perfaz milhares e milhares de
quilómetros, em navegações perigosas e sem conforto ou em marchas esgotantes.
Em 1551, este
sacerdote ordenado em Roma no ano de 1537, dirigiu-se para o Japão, iniciando a
evangelização do seu povo. Porém, não conseguiu realizar o seu último projeto de
vida missionária: depois de uma breve passagem pela Índia, era a penetração na
China. Mas veio a falecer, em 2 de dezembro de 1552, por esgotamento em
San-choan, em frente de Cantão.
Trasladado para
Goa incomodou Salazar, que se impôs a que Paulo VI lhe visitasse a tumba.
A
Igreja Católica considera que tenha convertido mais pessoas ao Cristianismo do que qualquer outro missionário
desde São Paulo, pelo que merece o epiteto de “Apóstolo do Oriente”. É o padroeiro
dos missionários, um dos padroeiros da Diocese de Macau e é copatrono de Navarra juntamente
com São Firmino de Amiens. Paulo V
beatificou-o, com o nome Francisco de Xavier, a
25 de outubro de 1619, e Gregório XV canonizou-o, a 12 de março de 1622, com
Inácio de Loyola. E, em 14 de dezembro de 1927, Pio XI proclamou Francisco
Xavier, juntamente com Santa Teresinha do Menino Jesus, padroeiro universal das
missões.
***
A Liturgia
confere-lhe missa própria, em que se destacam as leituras de perícopas da 1.ª Carta
de Paulo aos Coríntios (1Cor 9,16-19.22-23) e do Evangelho de Marcos (Mc 16,15-20).
Na primeira, salienta-se
o pressuposto de que a pregação do Evangelho não é um título de prestígio, mas
um dever cujo cumprimento não confere direito a qualquer recompensa e que exige
a cultura da proximidade em relação a todos, mormente junto dos mais fracos
para os ganhar para a causa do Evangelho. Em obediência a este pressuposto,
Francisco vencia todas as dificuldades e sentia a maior alegria em suportar
todos os trabalhos (sofrimentos e perigos) “por amor d’Aquele por Quem os devemos suportar”, como refere em carta
de 1542.
No Evangelho,
fica plasmado o mandato de Jesus aos apóstolos de irem por todo o mundo a
pregar o Evangelho a toda a criatura, garantindo que “quem acreditar e for batizado
salvar-se-á”, que a pregação da boa nova seria acompanhada de milagres e
prodígios e que o Senhor colaboraria com eles consolidando a Palavra.
Angustiado por
não conseguir levar o Evangelho a todos os povos da imensa Ásia, Xavier apela,
em carta aos colegas da Universidade de Paris, a que não se contentem com vida confortável
e glória puramente humana e efémera e que não fechem os ouvidos ao apelo de
multidões incontáveis que ignoram que Jesus Cristo veio salvá-las.
Por seu turno,
o salmo de resposta à 1.ª leitura (Sl 96/95,1-2ª.2b-3.7-8a.10) conida ao louvor a Deus que faz maravilhas e apela
a que se proclamem em todos os povos as maravilhas do Senhor.
***
Uma excelente forma de assinalar esta data do santoral será
a leitura do romance “Rosa do Oriente”, de Manuel Arouca (edição da Alêtheia:2008). É
um romance histórico em torno da vida de São Francisco Xavier, cuja narrativa
tem como ponto de partida o mistério à volta do novo perfume que invadiu o
Oriente: o perfume das rosas, um inebriante aroma que às portas da China
exalava do corpo de Francisco Xavier.
Na verdade, depois da sua morte em
San-Choan, o corpo incorruptível de Francisco, exalando um perfume de rosas,
regressou a Goa onde se
encontra até hoje. Para os cerca de 10 anos, desde que embarcou na Nau Santiago no cais de Belém em Lisboa até à sua
morte, são narrados inúmeros milagres protagonizados pelo missionário. A
chegada aos altares como Santo foi pacífica e, na história Lusa, são
muitos os relatos das suas andanças entre os pobres e os humildes. Fernão Mendes Pinto foi contemporâneo e muito dele contou
na “Peregrinação”.
O romancista Manuel
Arouca induz o leitor a imergir na vida dramática duma personagem de carne e
osso, que viveu numa época, o século XVI, riquíssima em acontecimentos
históricos que marcaram para sempre o mundo moderno, a ponto de ainda hoje
existirem marcas da passagem dos missionários cristãos, especialmente portugueses,
espelhadas na linguagem, nalguns usos e nos monumentos.
Se o Japão,
que até determinado momento, acolheu com bonomia os pregadores português, mas depois
os expulsou ou martirizou, tal não significa que a ação dos missionários não
tenha contribuído para a abertura do Japão ao mundo. Aceites, perseguidos,
martirizados (ou apostatas,
alguns) e prófugos, têm
ação marcante e inestimável de que o mundo beneficiou a vários níveis.
A vida em Goa,
considerada então a “Roma do Oriente”, é, nas páginas do romance, vivamente
caraterizada no melhor do seu exotismo, costumes, fascínio, prazeres, cultura, corrupção
e costumes religiosos. É nesse ambiente que surge Francisco Xavier, o Apóstolo do Oriente ou o Apóstolo dos tempos modernos, que
através da sua ação missionária, tornou o mundo mais pequeno, unindo o Oriente
e o Ocidente. Com efeito, Francisco Xavier atravessou de forma épica o Japão e
acabou por morrer às portas da China, exalando o tal perfume de rosas do seu
corpo incorruptível – quadro misterioso testemunhado com grande espanto pelos
chineses – e transformando
os oceanos do Oriente em caminhos abertos e seguros para a evangelização.
As embarcações portuguesas cruzavam o
Índico e o Pacífico ligando todas as terras existentes, fossem ilhas ou fossem continentes,
desde a costa oriental africana, Ormuz, Malabar, Ceilão, Malaca e daí, mais
para nordeste Japão e China ou para sudeste, a vasta Indonésia de hoje, Timor e
a grande Austrália. Dezenas ou centenas de naus simultaneamente nas mais diversas
rotas, muitas dezenas de fortalezas e feitorias instaladas, muito comércio, muitas
coisas boas e também coisas más – foram tudo fatores que originaram a imparável
gesta da miscigenação e da evangelização, o encontro de culturas nem sempre sadio,
a globalização que o tempo exigiu ou permitiu.
Viajar mentalmente pelo Oriente da
primeira metade do século XVI, embarcando nas Naus
Lusitanas por mares já
navegados, mas bem atestados de surpresas e ratoeiras impiedosas, pode ser uma
boa maneira de oxigenar o cérebro e descansar um pouco da monotonia da onda de mediocridade
que nos circunda neste mundo irritantemente revoltoso e viciado no consumismo.
***
Na 2.ª leitura do
Ofício de Leitura, que transcreve passagens de cartas de 20 de outubro de 1542
e de 15 de janeiro de 1544, vê-se o estado de coisas e o apelo do santo:
- Estado de coisas:
“Nestes sítios não
vivem portugueses, por a terra ser muitíssimo estéril e extremamente pobre. Os
cristãos destes lugares, por não terem quem os instrua na nossa fé, somente
sabem dizer que são cristãos. Não têm quem lhes diga Missa e, ainda menos, quem
lhes ensine o Credo, o Pai-Nosso, a Ave-Maria e os Mandamentos. Quando eu
chegava a estas povoações, batizava todas as crianças por batizar. Desta forma,
batizei uma grande multidão de meninos que não sabiam distinguir a mão direita
da esquerda. Ao entrar nos povoados, as crianças não me deixavam rezar o Ofício
divino, nem comer, nem dormir, e só queriam que lhes ensinasse algumas orações.
Comecei então a saber porque é deles o reino dos Céus. Como seria ímpio
negar-me a pedido tão santo, comecei pela confissão do Pai, do Filho e do Espírito
Santo, pelo Credo, Pai-Nosso, Ave-Maria, e assim os fui ensinando. Descobri
neles grande inteligência. Se houvesse quem os instruísse na fé, tenho por
certo que seriam bons cristãos. Muitos
deixam de se fazer cristãos nestas terras, por não haver quem se ocupe de tão
santas obras.”.
E o apelo:
“Muitas vezes me vem
ao pensamento ir aos colégios da Europa, levantando a voz como homem que perdeu
o juízo e, principalmente, à Universidade de Paris, falando na Sorbonne aos que
têm mais letras que vontade para se disporem a frutificar com elas. Quantas
almas deixam de ir à glória e vão ao inferno por negligência deles! E, se assim
como vão estudando as letras, estudassem a conta que Deus Nosso Senhor lhes pedirá
delas e do talento que lhes deu, muitos se moveriam a procurar, por meio dos
Exercícios Espirituais, conhecer e sentir dentro de suas almas a vontade
divina, conformando-se mais com ela do que com suas próprias afeições, dizendo:
‘Senhor, eis-me aqui; que quereis que eu
faça? Mandai-me para onde quiserdes; e se for preciso, até mesmo para a Índia’.”.
Vale a pena meditar
e sentir a solidariedade com quem precisa aqui ou lá longe!
2016.12.03 – Louro de Carvalho
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