sábado, 3 de dezembro de 2016

Na memória litúrgica do Apóstolo do Oriente…

Em 3 de dezembro, dia em que a Igreja Católica celebra a memória litúrgica (ou festa nalguns lugares) de São Francisco Xavier, a tentação narrativa poderia levar a determo-nos na sua biografia. Porém, uma leitura biográfica da obra xaveriana poderá valer de pouco se não se tiver em conta o contexto e as finalidades do apostolado do jesuíta luso-navarro.
Faço alusão à índole luso-navarra do santo missionário para fazer jus à realidade histórica. Quando alguns portugueses ficam abespinhados com os italianos por titularem o santo lisboeta por Santo António de Pádua, lembro-me de Francisco Xavier ou de Isabel de Aragão, que nós consideramos – e bem – como integrantes do património espiritual português. Aliás, como todos recordam, o Papa Francisco, na sua passagem apostólica pelo Sri Lanka, procedeu à canonização de um santo – São José Vaz – oriundo da então Índia portuguesa.
Ora, a tradição atesta a ida de São Tomé para a Índia como um acontecimento em si natural na sequência do pedido de Jesus para que fosse doutrinar aquelas terras, no quadro do mandato: “Ide por todo o mundo...” (cf Mc 16,15). Assim, Tomé será considerado o apóstolo da Índia. Com efeito, ele levou até lá o cristianismo original, obviamente com influências judaicas, que acabou por se mesclar com as hindus. Os cristãos catequizados por Tomé foram os puros cristãos, os que ouviram as palavras daquele apóstolo que, de incrédulo, passou a crente orante face à evidência da identificação do Ressuscitado com Aquele a Quem deram a morte de cruz.
Porém, à medida que o mundo ia sendo conhecido como mais extenso, aumentaram as responsabilidades missionárias da Igreja. E os padres da Companhia de Jesus foram enviados, à semelhança do que já faziam franciscanos e dominicanos, às novas partes que os emissários de Portugal e da Espanha iam descobrindo como terras de gente. Todavia, a ação dos jesuítas – uma nova formação religiosa e missionária no seu mais esplendoroso vigor apostólico – naturalmente suplantava as outras ordens a passar um tempo de crise. Além disso, os membros da Companhia de Jesus, além dos três conselhos evangélicos – pobreza, obediência e castidade –, professavam o voto de especial obediência ao Papa.
Foi, assim, que Francisco, nascido, a 7 de abril de 1506, no castelo de Xavier, perto de Pamplona, foi enviado, em 1541, por ordem do Papa Paulo III, à Índia portuguesa, tendo desembarcado em Goa em 1542. Os 10 anos que se seguiram na ação do ex-professor da Universidade de Paris e cofundador da Companhia (aderindo ao projeto dum aluno seu: Inácio de Loyola) constituem uma das mais gloriosas epopeias da História missionária da Igreja. Sem um momento de descanso, Francisco percorre toda a Índia meridional, o Ceilão (Sri Lanka), a península de Malaca e as Ilhas Molucas. O missionário prega, batiza, confessa, celebra missa e dá a comunhão, ergue Missões, Colégios e Seminários. Sem preocupação com o clima ou com a saúde, Francisco perfaz milhares e milhares de quilómetros, em navegações perigosas e sem conforto ou em marchas esgotantes.
Em 1551, este sacerdote ordenado em Roma no ano de 1537, dirigiu-se para o Japão, iniciando a evangelização do seu povo. Porém, não conseguiu realizar o seu último projeto de vida missionária: depois de uma breve passagem pela Índia, era a penetração na China. Mas veio a falecer, em 2 de dezembro de 1552, por esgotamento em San-choan, em frente de Cantão.
Trasladado para Goa incomodou Salazar, que se impôs a que Paulo VI lhe visitasse a tumba.  
A Igreja Católica considera que tenha convertido mais pessoas ao Cristianismo do que qualquer outro missionário desde São Paulo, pelo que merece o epiteto de “Apóstolo do Oriente”. É o padroeiro dos missionários, um dos padroeiros da Diocese de Macau e é copatrono de Navarra juntamente com São Firmino de Amiens. Paulo V beatificou-o, com o nome Francisco de Xavier, a 25 de outubro de 1619, e Gregório XV canonizou-o, a 12 de março de 1622, com Inácio de Loyola. E, em 14 de dezembro de 1927, Pio XI proclamou Francisco Xavier, juntamente com Santa Teresinha do Menino Jesus, padroeiro universal das missões.
***
A Liturgia confere-lhe missa própria, em que se destacam as leituras de perícopas da 1.ª Carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 9,16-19.22-23) e do Evangelho de Marcos (Mc 16,15-20).
Na primeira, salienta-se o pressuposto de que a pregação do Evangelho não é um título de prestígio, mas um dever cujo cumprimento não confere direito a qualquer recompensa e que exige a cultura da proximidade em relação a todos, mormente junto dos mais fracos para os ganhar para a causa do Evangelho. Em obediência a este pressuposto, Francisco vencia todas as dificuldades e sentia a maior alegria em suportar todos os trabalhos (sofrimentos e perigos) “por amor d’Aquele por Quem os devemos suportar”, como refere em carta de 1542.
No Evangelho, fica plasmado o mandato de Jesus aos apóstolos de irem por todo o mundo a pregar o Evangelho a toda a criatura, garantindo que “quem acreditar e for batizado salvar-se-á”, que a pregação da boa nova seria acompanhada de milagres e prodígios e que o Senhor colaboraria com eles consolidando a Palavra.
Angustiado por não conseguir levar o Evangelho a todos os povos da imensa Ásia, Xavier apela, em carta aos colegas da Universidade de Paris, a que não se contentem com vida confortável e glória puramente humana e efémera e que não fechem os ouvidos ao apelo de multidões incontáveis que ignoram que Jesus Cristo veio salvá-las.
Por seu turno, o salmo de resposta à 1.ª leitura (Sl 96/95,1-2ª.2b-3.7-8a.10) conida ao louvor a Deus que faz maravilhas e apela a que se proclamem em todos os povos as maravilhas do Senhor.
***
Uma excelente forma de assinalar esta data do santoral será a leitura do romance “Rosa do Oriente”, de Manuel Arouca  (edição da Alêtheia:2008). É um romance histórico em torno da vida de São Francisco Xavier, cuja narrativa tem como ponto de partida o mistério à volta do novo perfume que invadiu o Oriente: o perfume das rosas, um inebriante aroma que às portas da China exalava do corpo de Francisco Xavier.
Na verdade, depois da sua morte em San-Choan, o corpo incorruptível de Francisco, exalando um perfume de rosas, regressou a Goa onde se encontra até hoje. Para os cerca de 10 anos, desde que embarcou na Nau Santiago no cais de Belém em Lisboa até à sua morte, são narrados inúmeros milagres protagonizados pelo missionário. A chegada aos altares como Santo foi pacífica e, na história Lusa, são muitos os relatos das suas andanças entre os pobres e os humildes. Fernão Mendes Pinto foi contemporâneo e muito dele contou na “Peregrinação”.
O romancista Manuel Arouca induz o leitor a imergir na vida dramática duma personagem de carne e osso, que viveu numa época, o século XVI, riquíssima em acontecimentos históricos que marcaram para sempre o mundo moderno, a ponto de ainda hoje existirem marcas da passagem dos missionários cristãos, especialmente portugueses, espelhadas na linguagem, nalguns usos e nos monumentos.
Se o Japão, que até determinado momento, acolheu com bonomia os pregadores português, mas depois os expulsou ou martirizou, tal não significa que a ação dos missionários não tenha contribuído para a abertura do Japão ao mundo. Aceites, perseguidos, martirizados (ou apostatas, alguns) e prófugos, têm ação marcante e inestimável de que o mundo beneficiou a vários níveis.
A vida em Goa, considerada então a “Roma do Oriente”, é, nas páginas do romance, vivamente caraterizada no melhor do seu exotismo, costumes, fascínio, prazeres, cultura, corrupção e costumes religiosos. É nesse ambiente que surge Francisco Xavier, o Apóstolo do Oriente ou o Apóstolo dos tempos modernos, que através da sua ação missionária, tornou o mundo mais pequeno, unindo o Oriente e o Ocidente. Com efeito, Francisco Xavier atravessou de forma épica o Japão e acabou por morrer às portas da China, exalando o tal perfume de rosas do seu corpo incorruptível – quadro misterioso testemunhado com grande espanto pelos chineses – e transformando os oceanos do Oriente em caminhos abertos e seguros para a evangelização.
As embarcações portuguesas cruzavam o Índico e o Pacífico ligando todas as terras existentes, fossem ilhas ou fossem continentes, desde a costa oriental africana, Ormuz, Malabar, Ceilão, Malaca e daí, mais para nordeste Japão e China ou para sudeste, a vasta Indonésia de hoje, Timor e a grande Austrália. Dezenas ou centenas de naus simultaneamente nas mais diversas rotas, muitas dezenas de fortalezas e feitorias instaladas, muito comércio, muitas coisas boas e também coisas más – foram tudo fatores que originaram a imparável gesta da miscigenação e da evangelização, o encontro de culturas nem sempre sadio, a globalização que o tempo exigiu ou permitiu.
Viajar mentalmente pelo Oriente da primeira metade do século XVI, embarcando nas Naus Lusitanas por mares já navegados, mas bem atestados de surpresas e ratoeiras impiedosas, pode ser uma boa maneira de oxigenar o cérebro e descansar um pouco da monotonia da onda de mediocridade que nos circunda neste mundo irritantemente revoltoso e viciado no consumismo.
***
Na 2.ª leitura do Ofício de Leitura, que transcreve passagens de cartas de 20 de outubro de 1542 e de 15 de janeiro de 1544, vê-se o estado de coisas e o apelo do santo:
- Estado de coisas:
“Nestes sítios não vivem portugueses, por a terra ser muitíssimo estéril e extremamente pobre. Os cristãos destes lugares, por não terem quem os instrua na nossa fé, somente sabem dizer que são cristãos. Não têm quem lhes diga Missa e, ainda menos, quem lhes ensine o Credo, o Pai-Nosso, a Ave-Maria e os Mandamentos. Quando eu chegava a estas povoações, batizava todas as crianças por batizar. Desta forma, batizei uma grande multidão de meninos que não sabiam distinguir a mão direita da esquerda. Ao entrar nos povoados, as crianças não me deixavam rezar o Ofício divino, nem comer, nem dormir, e só queriam que lhes ensinasse algumas orações. Comecei então a saber porque é deles o reino dos Céus. Como seria ímpio negar-me a pedido tão santo, comecei pela confissão do Pai, do Filho e do Espírito Santo, pelo Credo, Pai-Nosso, Ave-Maria, e assim os fui ensinando. Descobri neles grande inteligência. Se houvesse quem os instruísse na fé, tenho por certo que seriam bons cristãos. Muitos deixam de se fazer cristãos nestas terras, por não haver quem se ocupe de tão santas obras.”.
E o apelo:
“Muitas vezes me vem ao pensamento ir aos colégios da Europa, levantando a voz como homem que perdeu o juízo e, principalmente, à Universidade de Paris, falando na Sorbonne aos que têm mais letras que vontade para se disporem a frutificar com elas. Quantas almas deixam de ir à glória e vão ao inferno por negligência deles! E, se assim como vão estudando as letras, estudassem a conta que Deus Nosso Senhor lhes pedirá delas e do talento que lhes deu, muitos se moveriam a procurar, por meio dos Exercícios Espirituais, conhecer e sentir dentro de suas almas a vontade divina, conformando-se mais com ela do que com suas próprias afeições, dizendo: ‘Senhor, eis-me aqui; que quereis que eu faça? Mandai-me para onde quiserdes; e se for preciso, até mesmo para a Índia’.”.
Vale a pena meditar e sentir a solidariedade com quem precisa aqui ou lá longe!

2016.12.03 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário