terça-feira, 20 de dezembro de 2016

É preciso refontalizar o Natal!

José e Maria deslocaram-se de Nazaré a Belém para efeitos de recenseamento populacional imposto pelo Império e porque José era da descendência de David.
Chegados à cidade, surgiu a hora de Maria dar à luz. E, como é sabido comummente, tiveram que se acolher numa gruta nas imediações da urbe, dado não haver lugar para eles nas hospedarias. O Messias feito menino foi acolhido quase solitariamente pelo desacampado, apenas aconchegado pelo calor afetuoso da mãe e de José, o seu pater nutricius. Também lhe terão feito companhia os animais (Ratzinger/Bento XVI não os tirou do presépio; apenas escreveu que os evangelhos não se lhes referem), entoaram louvores a Deus os anjos do céu, augurando paz na Terra aos homens de boa vontade, e os pastores, simples e abertos à novidade, visitaram a gruta belemita, encontrando um menino envolto em panos e reclinado sobre uma manjedoura feita altar da oferta de Deus aos homens – tal como lhes fora revelado do Céu. Mas, ai os homens, a maior parte nem se apercebeu do evento que iria marcar a divisão da História do Mundo. Veio para o que era seu e os seus não O receberam (Jo 1,11).
Mais tarde, vieram uns magos de longe guiados por uma estrela e, informados, pelos sábios da corte de Herodes, do lugar onde nascera o Rei dos Judeus, foram adorá-Lo e presentearam-no com incenso, ouro e mirra – presentes que simbolizam a tríplice condição do menino: Deus, Rei e Homem mortal.
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Pois bem! Se naquele tempo não havia lugar para Jesus de Nazaré e se o Natal de Deus – que havia de ser Natal dos homens – passou despercebido a quase todos, também hoje o panorama não é aceitável. Mais do que não haver lugar, campeia por esse mundo fora a destituição de Jesus do lugar que lhe cabe por direito e pela História. Sob a capa da liberdade religiosa ou em nome do respeito para com aqueles que professam outras religiões ou para com aqueles que não professam nenhuma, desaloja-se do Natal de Cristo o próprio Cristo, que são do coração dos homens e do seio das comunidades.
A isto chama-se sanha herodiana de inveja para com o Messias que tem o seu lugar inamovível no mundo. E “a quantos O receberam, aos que n’Ele creem, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. Estes não nasceram de laços de sangue, nem de um impulso da carne, nem da vontade de um homem, mas sim de Deus” (Jo 1,12-13).
É a cobardia e a falta de sentido das realidades espirituais e a negação da própria cultura. Os judeus lidaram com Cristo – seductor ille – que arrastava as multidões e passou fazendo o bem e pregando o reino de Deus que está entre nós. Continuaram, porém, à espera de Outro para Messias de Israel. Os muçulmanos guerrearam cristãos, mas reconheceram Jesus como profeta, embora o seu “Profeta” de excelência seja Maomé. E as religiões orientais, no seu pacifismo e na sua interioridade, não rejeitam o essencial da mensagem cristã; seguem é outra via. Por isso, é de considerar que o movimento contra o Natal de Cristo não é um movimento de religiões nem de liberdade, mas de gente que se posiciona em nome de religiões e das liberdades. Contra o Natal estão sobretudo pessoas pouco informadas culturalmente, embora carregadas de ciência e erudição, e aqueles e aquelas que estão eivados de sensacionismo, positivismo, materialismo e agnosticismo. Mas há uma diferença entre não acreditar e combater Deus, a crença e os crentes. O ateu pode passar a acreditar, mas o antiteísta dificilmente virá a crer e a tolerar a crença.
Há, porém, uma outra postura: a de quem não se coloca a questão da crença. Estes e estas celebram o Natal de forma indiferente, supinamente indiferente. É o lodaçal da indiferença e a soberba da autossuficiência humana contra a inter-relação com Deus e os irmãos.
Papagueiam-se umas tantas frases que a tradição cristã verteu para o imaginário cultural: a festa, a luz, a árvore, a personagem que distribui presentes, a família, os pobres, a solidariedade, as canções, a paz, a justiça. Mas, tudo espremido, sai pouco de espírito e de solidariedade!
Por consideração para com os não cristãos e para com os ateus, indiferentes e arreligiosos, omite-se no Natal de Cristo a figura de Cristo, mas impõe-se a crianças, adolescentes e jovens, adultos e idosos a figura horrorosa do Pai Natal, a quem todos escrevem a solicitar as prendas que os pais e outros familiares querem dar, fazendo crescer assustadoramente a onda da comercialização. Alguns creem que Jesus não existe, ao menos como o apresentam os cristãos. E o Pai Natal de fatiota vermelha e barbas brancas, com aquela cangalhada de trenós e renas, existe? É mais fácil ver as vacas felizes e a rirem ou os elefantes ganharem asas e voarem. Isto é impostura e cobardia, que facilmente descamba na ditadura do consumismo.
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Mas há mais. Fala-se de paz, mas fazemos a guerra mundial aos pedaços e o terrorismo; fala-se de família, mas esta mantém-se desavinda por interesses, por partilhas, por insuficiências de uns e arrogâncias de outros; fala-se de liberdade, mas impõem-se ideias, gostos e hábitos e prendem-se pessoas sem culpa formada; fala-se de verdade, de respeito e de amor, mas mente-se, rouba-se e odeia-se; fala-se dignidade, mas exploram-se os débeis (pobres, mulheres crianças e idosos), cria-se o desemprego, cava-se a precariedade, baixam-se salários; fala-se de igualdade e fraternidade, mas uns poucos acumulam riqueza e bem-estar, ao passo que outros – a maior parte – acumulam penúria e miséria.
E as viagens? José e Maria viajaram para o cumprimento duma disposição legal. Em tempos, viajava-se para a reunião de família e amparavam-se aqueles e aquelas, que não podiam deslocar-se para junto das famílias em razão do seu ofício; hoje, viaja-se para fugir do ambiente normal do ano, descansar e gozar a vida. Se, dantes, se contavam os veículos que passavam nas estradas, os comboios suplementares que era necessário organizar e as pessoas que iam à Missa do Galo, hoje contam-se as reservas feitas em hotéis e similares ou em espaços de diversão na quadra natalícia. É o Natal da sociedade de consumo que procura comercializar o Tempo Sagrado, esvaziando-o do seu conteúdo espiritual, de tal modo que do mistério da vinda do Verbo de Deus ou nem fica uma piedosa recordação ou permanece como adorno de pessoas ou de móveis e espaços.
Este Natal está descaraterizado, cansa e desgasta. Não gosto dele.
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Estive numa festa de crianças, onde obviamente estavam pais e avós. A resposta à questão “O que é o Natal?” oscilava entre as prendas e a família. Lá soaram umas vozes tímidas a dizer paz, amor, fraternidade… Fiquei impressionado, pois, nem sequer se disse que o Natal é a criança com a sua simplicidade, quando é cada vez mais necessário olhar o mundo com olhos de criança. Se não acreditam em Jesus, acolham as crianças de quem Ele é amigo e que apresenta como modelo do Reino de Deus:

“Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino dos Céus. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino dos Céus. Quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe.” (Mt 18,3-5).
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Ora o Natal de que gosto é o de Cristo, não o de hoje nem o de há dois mil anos. Não, não gosto do Natal que não tem lugar para Jesus como aconteceu em Belém e como acontece hoje em tantos lugares.
Gosto do Natal de “Jesus Cristo, ontem e hoje e por toda a eternidade”, Alfa e Ómega, Princípio e Fim.
Gosto do Natal que há dois mil anos foi dando cada vez mais lugar a Jesus pela voz dos anjos, pela visita dos pastores (primícias de toda a cristandade), pela adoração dos magos, pela profecia de Simeão, pela contemplação glorificante de Ana, filha de Fanuel, pela discussão com os doutores no Templo e, sobretudo, pela realização da profecia messiânica de Isaías: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.” (Lc 4,18-19; cf Is 61, 1-2a). “A doação de Deus, que então começou” – diz São Leão Magno – “hoje multiplica-se como cada dia o experimenta o nosso tempo”.
Gosto do Natal de fé profunda, do Mistério – eterno, histórico e místico – da divina Presença de Cristo no meio de nós, iniciada com o seu nascimento temporal e crescente com o empenho de cada um e da comunidade no testemunho de apreço pela vida da Graça, crentes de que a Eucaristia atualiza a ação do amor de Deus do Natal até à Ressurreição, passando pela Cruz. E é do Natal de Belém, glorificado no Calvário e presentificado na Eucaristia, que nasce o empenho sério em estreitar ao laços de amor e as amarras da justiça – da Justiça misericordiosa de Deus – com todos os homens e povos, visto que a pessoa de Cristo veio matar o ódio, proclamar a Paz (cf Ef 2,14-17) e instaurar entre os homens uma comunhão de fraternidade assente na filiação divina, fazendo de todos os cristãos artífices da Paz, porque filhos de Deus.  
Gosto do Natal que não se limita ao acontecimento do passado, mas que hoje presentifica o facto do Deus-Connosco em Jesus e nos seus amigos e irmãos e nos prepara para a gloriosa reunião com os Santos no seio de Deus in Paradiso.  
Gosto do Natal d’Aquele que podemos contemplar no presépio, d’Aquele que é o Verbo, a Palavra viva em que se exprime todo o pensamento, toda a vida e todo o ser de Deus, d’Aquele que foi gerado desde toda a eternidade e que é com o Pai o criador e o senhor do universo.
Gosto do Natal da Salvação esperada por Israel e por todos os homens, embora nem sempre de modo explícito e claro, que consiste em o Verbo se ter feito Carne da nossa carne, permitindo que a nossa humanidade estabeleça profundas relações filiais com Deus, participando da natureza divina.
Gosto deste Natal como Boa Nova que deve ser levada até aos confins da Terra, a Boa Nova de que Deus, através de Jesus Cristo, vem ao encontro dos homens de todos os tempos, lugares, proveniências e etnias.
Gosto do Natal que induza os homens e os povos a proclamar: “Cristo, Filho Unigénito do Pai, Seu esplendor, Sua perfeita imagem, por Vós e para Vós tudo foi feito. Sois o centro da História e do Universo”.
2016.12.20 – Louro de Carvalho
  


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