quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

De constitucionalistas para constitucionalista

O constitucionalista e deputado Pedro Carlos Vasconcelos fez publicar no JN de hoje, 22 de dezembro, um artigo de opinião, de que se respigam alguns pontos que atingem pela positiva alguns comportamentos de Marcelo Rebelo de Sousa, que João Miguel Tavares designa por “marcelices” também em artigo de opinião, mas no Público de hoje.
Diz o acima referido constitucionalista que o poder que emergiu das eleições de 2011 nasceu num congresso do PSD em que foi apresentado um projeto radical de revisão da Constituição, projeto que as forças políticas que o encarnavam, agora na oposição, persistem em defender. Tanto assim que sustentavam que o Presidente não dispunha de competências “para nomear o Governo apoiado pela maioria absoluta dos deputados eleitos”, governo que acusaram de ilegítimo. Os mesmos, segundo o articulista, “agora, invocam novos fantasmas e demónios”, acusando, num “Presidente que lhes parece demasiado jovial e assertivo, uma ameaça de invasão das competências próprias do Governo”.
Contrapõe o constitucionalista que o comportamento de Marcelo “nada tem de novo ou surpreendente”, já que “ele sempre foi assim: espontâneo, caloroso, exuberante, mas sempre disponível e atento a quem com ele se cruza”. Diz que, “no fundo, encarna uma versão um pouco mais popular e um pouco menos institucional das presidências abertas inauguradas por Mário Soares”. Ora, sobre estas questões “de estilo pessoal” a Constituição “nada tem a dizer e nada diz”. E, em abono da probidade do Presidente, o deputado do PS refere que
“Marcelo Rebelo de Sousa é constitucionalista, ensinou Direito Constitucional a gerações sucessivas de juristas, escreveu e pronunciou-se publicamente sobre a Lei Fundamental, foi deputado à Constituinte e, por tudo isso, conhece muito bem o quadro e a prática constitucional que definem os poderes do Presidente da República”.
Fica bem a constitucionalista dizer bem de constitucionalista, mas o rico esquece-se de que não precisamos de um constitucionalista na Presidência da República, mas do Presidente, isto é, queremos que o titular do alto cargo não se enrede em assuntos que podem configurar vício ou servilismo profissional. Deve, pois, guardar distância, deixando as matérias académicas para os académicos no ativo e respeitar as competências de cada órgão do poder e gerir prudente e discretamente a informação técnica que assessores e conselheiros lhe ministrem.
O articulista reconhece que o desempenho do cargo, ao longo do 1.º ano do mandato presidencial, “suscita tensões e alimenta inconfessáveis ressentimentos”, mas alega que “não envolveu até hoje qualquer desvio à solidariedade institucional devida aos outros órgãos de soberania, nem extravasou do ‘poder separado’ que o povo lhe confiou”. E refere que “nenhum membro do Governo manifestou até hoje qualquer embaraço ou perturbação devido aos pronunciamentos públicos do Presidente”.
Ora tais declarações só podem entender-se porque o Governo, alinhado com a bonomia popular com que Marcelo é acolhido, está disponível para não se sentir apanhado em reivindicações de poder. Com efeito, Marcelo intrometeu-se, pelo menos na questão da avaliação dos alunos do ensino básico, no problema da relação Ministério da Educação/ escolas privadas com contrato de associação, em matéria bancária, na questão da CGD e recentemente na questão da Cornucópia – isto para não falar das justificações da razão por que promulga certos diplomas como é o caso dos OE e da reposição do semanário das 35 horas na administração pública. É óbvio que Marcelo leva “a interpretação dos seus poderes até aos limites constitucionais”. Ele mesmo disse, em tempos, que não ultrapassaria o quadro dos seus poderes, mas não deixaria de fazer nada que a Constituição não proibisse. Por isso, é inocente a asserção de que “o professor de Direito sabe muito bem que o Presidente não governa e que o sucesso da ‘magistratura de influência’ que exerce (conceito que deve direitos de autor ao Presidente Mário Soares) sempre correrá por conta do prestígio do magistrado que a exerce”.
É certo que “foi Mário Soares quem impôs a preponderância parlamentar” no sistema de equilíbrios consagrado no regime semipresidencial. Porém, não podemos esquecer que Soares foi o 1.º Presidente eleito após a revisão constitucional de 1982. Esse elemento não poderia ter sido imposto por Eanes, que foi eleito na vigência da Constituição na sua redação inicial e que se mostrou algo ressentido com a redação final da lei de revisão, que tinha de promulgar.
Obviamente, a natureza mais parlamentar do regime consolidou-se com Sampaio e, apesar de tudo, reforçou-se com Cavaco Silva. Este desistiu de demitir o XIX Governo, em 2013, aquando da decisão irrevogável de Portas; e, em 2015, após a rejeição pela Assembleia da República do programa do XX Governo, resignou-se a nomear Costa como primeiro-ministro, empossando, mesmo com relutância explicitamente confessada, o Governo minoritário do Partido Socialista.
A eleição por sufrágio direto e universal confere ao Presidente inquestionável legitimidade democrática e ampla autoridade, de modo que, embora escrutinável, “a interpretação e o exercício desses poderes, em conformidade com os preceitos constitucionais e a prática dos seus antecessores, [são] responsabilidade indeclinável do titular eleito”.
E não vale aduzir que o Presidente foi deputado à Constituinte. Isso pouco interessa para o caso. Aliás, da sua contribuição resultou um texto com um pendor mais presidencialista – texto sobre o qual simbolicamente Marcelo prestou o seu juramento à semelhança dos seus antecessores.
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Juízo diferente da postura marcelista faz um outro constitucionalista. Vital Moreira diz, a 19 de dezembro, no blogue Causa Nossa, sobre o caso da Cornucópia, que era de temer que o ativismo político do Presidente “pudesse levar a incidentes embaraçosos como o que ocorreu na sessão de encerramento do Teatro da Cornucópia”, em que Marcelo protagonizou ante as câmaras de televisão “uma inopinada ‘conciliação’ ao vivo” entre Luís Miguel Cintra, “responsável pelo TdC e um constrangido Ministro da Cultura”, surpreendido por esta iniciativa e levado “a comprometer-se precipitadamente a revisitar o caso do subsídio público ao teatro” da Cornucópia. Vital Moreira diz que, num ápice, o PR fez 3 coisas que devia evitar: 
“(i) intrometer-se numa questão concreta do foro governamental;
(ii) envolver-se num diálogo político direto com um ministro setorial, quando o seu interlocutor institucional é por definição o Primeiro-Ministro;  
(iii) patrocinar uma solução política excecional para um caso concreto, em violação flagrante do princípio da igualdade de tratamento.”.
E, citando um comentador, assenta em que “o PR não precisa de fazer de primeiro-ministro” e que “nunca estivemos tão próximo disso” como no caso da Cornucópia. Mais: MRS deve ainda evitar o desempenho do papel de “treinador, chairman ou maestro do Governo, que ele não é, nem pode ser”. E justifica-se:
“Não basta manter em relação ao Governo uma inequívoca neutralidade político-partidária, que a sua função constitucional exige, mas também manter uma prudente distância política, que a separação de poderes recomenda”.
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Por seu turno, João Miguel Tavares distingue, no aludido artigo, entre Presidente “espontâneo”, de que gosta, e Presidente “impulsivo”, de que não gosta. Espontâneo foi o que “andou este Verão pela Madeira, a consolar as pessoas” que perderam tudo nos fogos do Funchal; impulsivo “foi o que esteve no fim de semana passado na Cornucópia”, consolando quem decidiu encerrar a companhia de teatro a que dedicou a vida. E sustenta que, “a bem do país e do seu próprio cargo, Marcelo tem de se deixar de marcelices e parar de agir duas vezes antes de pensar”.
Na sua ida à Cornucópia, o Presidente embaraçou o “Ministro da Cultura, o diretor da companhia, a separação de poderes, o Estado de Direito e ele próprio”. Embaraçou o Ministro porque este “se viu obrigado a desmarcar uma visita planeada a Castelo Branco assim que soube que Marcelo tinha resolvido apresentar-se na Cornucópia para o espetáculo de despedida”, com as câmaras de TV. Depois, Castro Mendes teve o desprazer da humilhação em direto e da obrigação de ali proferir palavras de circunstância só para não parecer que “aquele fosse não o fim, mas o princípio, de um longo processo de diálogo entre o ministério e a companhia”. Embaraçou L. Miguel Cintra, que sentiu, no dia seguinte, a necessidade de emitir um comunicado, onde afirma, com extraordinária elegância:
“O Teatro da Cornucópia acaba no princípio do ano, na realidade já acabou. Não se tratará, portanto, agora de [pedir] um estatuto de exceção, porque somos provavelmente exceção. A empresa dissolve-se nos próximos dias. Às pessoas que elegemos para nos governarem e que se dispõem a ouvir-nos, não nos passa pela cabeça mentir. Para com eles, para com todos, mantivemos sempre as mais leais relações. Assim foi, assim será.”.
A vantagem do comunicado consiste em mostrar que Luís Miguel Cintra nobremente recusa “tanto a mão estendida como a vitimização”.
E Marcelo embaraçou a separação de poderes, pois, “se queria exercer a sua magistratura de influência, convidava Luís Miguel Cintra e Luís Filipe Castro Mendes para almoçarem em Belém” – opina o articulista, e bem. Além disso, o Professor de Direito embaraçou o Estado de Direito porque o excesso do seu voluntarismo “é um nepotismozinho light, uma forma de pedir um tratamento de favor para um artista da sua preferência”. E, tentando meter uma cunha ao Ministro, Marcelo acabou por se embaraçar a si próprio, pois, segundo o constitucionalista V. Moreira, o Chefe de Estado, ao tentar patrocinar para o Teatro da Cornucópia um regime estatutário de exceção, propôs uma solução que seria uma “violação flagrante do princípio da igualdade de tratamento”.
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O caso, que parece configurar uma discussão de índole técnico-política entre constitucionalistas académicos ou entre partes verdadeiramente interessadas, acaba por se transformar em questão de Estado, que Marcelo não tinha necessidade de provocar. Pede-se-lhe, pois, comedimento e menos voluntarismo embaraçante. Se calhar, a humildade do presépio poderá constituir uma oportuna e boa lição para o “católico” Presidente.
2016.12.22 – Louro de Carvalho 

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