O constitucionalista e deputado Pedro
Carlos Vasconcelos fez publicar no JN
de hoje, 22 de dezembro, um artigo de opinião, de que se respigam alguns pontos
que atingem pela positiva alguns comportamentos de Marcelo Rebelo de Sousa, que
João Miguel Tavares designa por “marcelices” também em artigo de opinião, mas
no Público de hoje.
Diz o acima referido constitucionalista que o poder que emergiu
das eleições de 2011 nasceu num congresso do PSD em que foi apresentado um
projeto radical de revisão da Constituição, projeto que as forças políticas que
o encarnavam, agora na oposição, persistem em defender. Tanto assim que
sustentavam que o Presidente não dispunha de competências “para nomear o
Governo apoiado pela maioria absoluta dos deputados eleitos”, governo que
acusaram de ilegítimo. Os mesmos, segundo o articulista, “agora, invocam novos
fantasmas e demónios”, acusando, num “Presidente que lhes parece demasiado
jovial e assertivo, uma ameaça de invasão das competências próprias do Governo”.
Contrapõe o constitucionalista que o comportamento de Marcelo “nada
tem de novo ou surpreendente”, já que “ele sempre foi assim: espontâneo,
caloroso, exuberante, mas sempre disponível e atento a quem com ele se cruza”.
Diz que, “no fundo, encarna uma versão um pouco mais popular e um pouco menos
institucional das presidências abertas inauguradas por Mário Soares”. Ora,
sobre estas questões “de estilo pessoal” a Constituição “nada tem a dizer e
nada diz”. E, em abono da probidade do Presidente, o deputado do PS refere que
“Marcelo
Rebelo de Sousa é constitucionalista, ensinou Direito Constitucional a gerações
sucessivas de juristas, escreveu e pronunciou-se publicamente sobre a Lei
Fundamental, foi deputado à Constituinte e, por tudo isso, conhece muito bem o
quadro e a prática constitucional que definem os poderes do Presidente da
República”.
Fica bem a constitucionalista dizer bem de constitucionalista, mas
o rico esquece-se de que não precisamos de um constitucionalista na Presidência
da República, mas do Presidente, isto é, queremos que o titular do alto cargo
não se enrede em assuntos que podem configurar vício ou servilismo profissional.
Deve, pois, guardar distância, deixando as matérias académicas para os
académicos no ativo e respeitar as competências de cada órgão do poder e gerir
prudente e discretamente a informação técnica que assessores e conselheiros lhe
ministrem.
O articulista reconhece que o desempenho do cargo, ao longo do 1.º
ano do mandato presidencial, “suscita tensões e alimenta inconfessáveis
ressentimentos”, mas alega que “não envolveu até hoje qualquer desvio à
solidariedade institucional devida aos outros órgãos de soberania, nem
extravasou do ‘poder separado’ que o povo lhe confiou”. E refere que “nenhum
membro do Governo manifestou até hoje qualquer embaraço ou perturbação devido
aos pronunciamentos públicos do Presidente”.
Ora tais declarações só podem entender-se porque o Governo,
alinhado com a bonomia popular com que Marcelo é acolhido, está disponível para
não se sentir apanhado em reivindicações de poder. Com efeito, Marcelo
intrometeu-se, pelo menos na questão da avaliação dos alunos do ensino básico,
no problema da relação Ministério da Educação/ escolas privadas com contrato de
associação, em matéria bancária, na questão da CGD e recentemente na questão da
Cornucópia – isto para não falar das justificações da razão por que promulga
certos diplomas como é o caso dos OE e da reposição do semanário das 35 horas
na administração pública. É óbvio que Marcelo leva “a interpretação dos seus
poderes até aos limites constitucionais”. Ele mesmo disse, em tempos, que não
ultrapassaria o quadro dos seus poderes, mas não deixaria de fazer nada que a
Constituição não proibisse. Por isso, é inocente a asserção de que “o professor
de Direito sabe muito bem que o Presidente não governa e que o sucesso da
‘magistratura de influência’ que exerce (conceito que deve direitos de autor ao Presidente
Mário Soares)
sempre correrá por conta do prestígio do magistrado que a exerce”.
É certo que “foi Mário Soares quem impôs a preponderância
parlamentar” no sistema de equilíbrios consagrado no regime semipresidencial. Porém,
não podemos esquecer que Soares foi o 1.º Presidente eleito após a revisão
constitucional de 1982. Esse elemento não poderia ter sido imposto por Eanes,
que foi eleito na vigência da Constituição na sua redação inicial e que se
mostrou algo ressentido com a redação final da lei de revisão, que tinha de
promulgar.
Obviamente, a natureza mais parlamentar do regime consolidou-se
com Sampaio e, apesar de tudo, reforçou-se com Cavaco Silva. Este desistiu de
demitir o XIX Governo, em 2013, aquando da decisão irrevogável de Portas; e, em
2015, após a rejeição pela Assembleia da República do programa do XX Governo,
resignou-se a nomear Costa como primeiro-ministro, empossando, mesmo com
relutância explicitamente confessada, o Governo minoritário do Partido
Socialista.
A eleição por sufrágio direto e universal confere ao Presidente inquestionável
legitimidade democrática e ampla autoridade, de modo que, embora escrutinável, “a
interpretação e o exercício desses poderes, em conformidade com os preceitos
constitucionais e a prática dos seus antecessores, [são] responsabilidade
indeclinável do titular eleito”.
E não vale aduzir que o Presidente foi deputado à Constituinte. Isso
pouco interessa para o caso. Aliás, da sua contribuição resultou um texto com
um pendor mais presidencialista – texto sobre o qual simbolicamente Marcelo
prestou o seu juramento à semelhança dos seus antecessores.
***
Juízo diferente
da postura marcelista faz um outro constitucionalista. Vital Moreira diz, a 19
de dezembro, no blogue Causa Nossa,
sobre o caso da Cornucópia, que era de temer que o ativismo político do Presidente “pudesse
levar a incidentes embaraçosos como o que ocorreu na sessão de encerramento
do Teatro da Cornucópia”, em que Marcelo protagonizou ante as
câmaras de televisão “uma inopinada ‘conciliação’ ao vivo” entre Luís Miguel
Cintra, “responsável pelo TdC e um constrangido Ministro da Cultura”,
surpreendido por esta iniciativa e levado “a comprometer-se precipitadamente
a revisitar o caso do subsídio público ao teatro” da Cornucópia. Vital
Moreira diz que, num ápice, o PR fez 3 coisas que devia evitar:
“(i) intrometer-se
numa questão concreta do foro governamental;
(ii)
envolver-se num diálogo político direto com um ministro setorial,
quando o seu interlocutor institucional é por definição o Primeiro-Ministro;
(iii) patrocinar
uma solução política excecional para um caso concreto, em violação
flagrante do princípio da igualdade de tratamento.”.
E, citando um comentador, assenta em que “o PR não
precisa de fazer de primeiro-ministro” e que “nunca estivemos tão próximo disso”
como no caso da Cornucópia. Mais: MRS deve ainda evitar o desempenho do papel
de “treinador, chairman ou maestro do Governo, que ele não é,
nem pode ser”. E justifica-se:
“Não basta
manter em relação ao Governo uma inequívoca neutralidade político-partidária,
que a sua função constitucional exige, mas também manter uma prudente distância
política, que a separação de poderes recomenda”.
***
Por seu
turno, João Miguel Tavares distingue, no aludido artigo, entre
Presidente “espontâneo”, de que gosta, e Presidente “impulsivo”, de que não
gosta. Espontâneo foi o que “andou este
Verão pela Madeira, a consolar as pessoas” que perderam tudo nos fogos do
Funchal; impulsivo “foi o que esteve no fim de semana passado na Cornucópia”, consolando quem decidiu encerrar a companhia de
teatro a que dedicou a vida. E sustenta que, “a bem do país e do seu próprio
cargo, Marcelo tem de se deixar de marcelices e parar de agir duas
vezes antes de pensar”.
Na sua ida à
Cornucópia, o Presidente embaraçou o “Ministro da Cultura, o diretor da
companhia, a separação de poderes, o Estado de Direito e ele próprio”.
Embaraçou o Ministro porque este “se viu obrigado a desmarcar uma visita
planeada a Castelo Branco assim que soube que Marcelo tinha resolvido
apresentar-se na Cornucópia para o espetáculo de despedida”, com as câmaras de
TV. Depois, Castro Mendes teve o desprazer da humilhação em direto e da
obrigação de ali proferir palavras de circunstância só para não parecer que “aquele
fosse não o fim, mas o princípio, de um longo processo de diálogo entre o
ministério e a companhia”. Embaraçou L. Miguel Cintra, que sentiu, no dia
seguinte, a necessidade de emitir um comunicado, onde afirma, com
extraordinária elegância:
“O Teatro da Cornucópia acaba no princípio do ano, na realidade já acabou.
Não se tratará, portanto, agora de [pedir] um estatuto de exceção, porque somos
provavelmente exceção. A empresa dissolve-se nos próximos dias. Às pessoas que
elegemos para nos governarem e que se dispõem a ouvir-nos, não nos passa pela
cabeça mentir. Para com eles, para com todos, mantivemos sempre as mais leais
relações. Assim foi, assim será.”.
A vantagem do
comunicado consiste em mostrar que Luís Miguel Cintra nobremente recusa “tanto
a mão estendida como a vitimização”.
E Marcelo embaraçou a separação de poderes, pois, “se
queria exercer a sua magistratura de influência, convidava Luís Miguel Cintra e
Luís Filipe Castro Mendes para almoçarem em Belém” – opina o articulista, e bem.
Além disso, o Professor de Direito embaraçou o Estado de Direito porque
o excesso do seu voluntarismo “é um nepotismozinho light,
uma forma de pedir um tratamento de favor para um artista da sua preferência”. E,
tentando meter uma cunha ao Ministro, Marcelo acabou por se embaraçar a si
próprio, pois, segundo o constitucionalista V. Moreira, o Chefe de Estado, ao tentar patrocinar
para o Teatro da Cornucópia um regime estatutário de exceção, propôs uma
solução que seria uma “violação flagrante do princípio da igualdade de
tratamento”.
***
O caso, que
parece configurar uma discussão de índole técnico-política entre constitucionalistas
académicos ou entre partes verdadeiramente interessadas, acaba por se
transformar em questão de Estado, que Marcelo não tinha necessidade de
provocar. Pede-se-lhe, pois, comedimento e menos voluntarismo embaraçante. Se calhar,
a humildade do presépio poderá constituir uma oportuna e boa lição para o “católico”
Presidente.
2016.12.22 – Louro de Carvalho
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