quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Oito de dezembro de 1996: vinte anos depois

Corria o mês de dezembro de 1996. Iniciara-se, havia um ano, a era de António Guterres e Jorge Sampaio tinha meses de inquilinato no Palácio de Belém.
A 5 de dezembro, a UNESCO declarava como património da humanidade o Centro Histórico do Porto, decisão que a cidade invicta celebrou, 20 anos depois, entre outros atos, com o repique dos sinos nos campanários da igrejas e capelas daquela unidade urbano-paisagística. Recordo-me de que tendo ido de comboio à Cidade a partir da Régua (e vice-versa) para participar numa celebração de ordenação sacerdotal, a quem me perguntava porque não tinha levado o automóvel respondia que fora para não estragar o recém-declarado património mundial.
A ordenação sacerdotal acima aludida foi aquela em que o dominicano Frei João Peliz, natural de Granjal, do concelho de Sernancelhe, recebeu a ordenação de presbítero das mãos de Dom Júlio Tavares Rebimbas, então Arcebispo-bispo do Porto. A 1.ª parte do título deve-se ao facto de, entre o período que foi Bispo do Algarve e aquele em que foi o 1.º Bispo da então novel diocesana de Viana do Castelo, foi Arcebispo de Mitilene e auxiliar do patriarcado de Lisboa.
Sendo à data pároco do Granjal, participei com gosto na celebração e, em especial, no gesto da imposição das mãos, em que segui o referido prelado, a par de outros sacerdotes, de que destaco Mons. Veríssimo Lemos Peliz, tio do frade e neossacerdote, e o Padre Cândido António Lemos de Azevedo (mais tarde, monsenhor), arcipreste e pároco de Sernancelhe e ligado à família por relações de parentesco. Ambos os monsenhores, de quem guardo gratas recordações: o primeiro por ter sido meu professor, brilhante em matemática e em composição e direção musical e, depois, inestimável colaborador e benfeitor da igreja da paróquia de que era natural; o segundo, como arcipreste, luzido orador sagrado e admirável colega de labores eclesiais e docentes.
Na verdade, refere o n.º 112 do Pontifical Romano, no atinente à Ordenação dos Bispos, dos Presbíteros e dos Diáconos:
“Pela imposição das mãos do Bispo e a Oração de Ordenação é conferido aos candidatos o dom do Espírito Santo para o múnus de presbíteros. Estas palavras pertencem à natureza da Ordenação, de tal maneira que são exigidas para a validade do ato: ‘Nós Vos pedimos, Pai todo-poderoso, constituí estes vossos servos na dignidade de presbíteros; renovai em seus corações o Espírito de santidade; obtenham, ó Deus, o segundo grau da Ordem sacerdotal que de Vós procede, e a sua vida seja exemplo para todos’. Os presbíteros impõem as mãos aos candidatos juntamente com o Bispo, para significarem a receção no presbitério.”
Recordo, do dia da ordenação, alguns instantâneos, além da celebração do sacramento da Ordem, integrado na celebração da Eucaristia.
Antes de entrar na Sé Catedral do Porto, nós, os circunstantes pusemo-nos na conversa até perto da hora de início da celebração. Quando nos apercebemos da necessidade de entrar, uns pombos começaram no seu arrulho à porta do templo. Questionei quem ia a meu lado como eles deram conta de que eu estava ali, porém, garanti que não era dirigente e do FCP. Segundo alguns eu estaria alegadamente – Longe vá o agouro! – a aludir a eventuais boatos desportivos.
Ao pensarmos do dia 8 de dezembro, dia da Solenidade da Imaculada Conceição, falava-se do luminar dominicano Tomás de Aquino, ao que alguém retorquiu que o Doutor Angélico não estava lá muito de acordo com a tese que defende aquele dogma proclamado em 8 de dezembro 1854 pelo Papa Pio IX, pela Bula Ineffabilis Deus (voltarei adiante a este assunto).
Outro instantâneo surgiu quando, durante a paramentação na sacristia, estando eu na conversa com Mons. Peliz e Padre Cândido de Azevedo, o Padre Carlos Alberto de Oliveira Pereira, que eu ainda não tinha visto naquele dia e que não via havia bastante, se aproximou e pediu que eu continuasse a falar, o que fiz. E, ao dirigir-me para o cumprimentar, ele exclamou: “Não tinha a certeza, mas tu és mesmo o Abílio!”. Tínhamos trabalhado durante anos no movimento Oásis.
Porém, o instantâneo mais significativo ocorreu no fim do almoço no Convento de Cristo-Rei. A irmã do neossacerdote Frei João Peliz, religiosa do Sagrado Coração de Maria, dirigiu-se-me a dar os parabéns por aquele dia. Perante o meu espanto, explicou: “O Senhor nunca deixou de acreditar que este dia havia de chegar!”. Nesse aspeto, a minha interlocutora tinha razão, o que sempre recordo com agrado. E, quando, meses depois, Frei João Peliz, se apresentou ao povo da sua terra numa celebração eucarística dominical, explicou aos presentes reunidos em assembleia litúrgica, aludindo à sua profissão religiosa e ordenação sacerdotal em idade um pouco tardia, que não estranhassem nem tivessem medo, porque ele era o mesmo. Que amava a Santa Igreja ao serviço da qual desejava trabalhar sempre. E, falando da sua experiência anterior, insistiu em estar dela refeito, chegando a dizer que também Santo Agostinho fora um grande pecador até aos 33 anos e se tornou num grande santo.
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Quanto à posição teológica sobre a Imaculada Conceição, obviamente que o teólogo famoso que defendeu a verdade mais tarde definida dogmaticamente foi o franciscano  Duns Scoto, que nasceu em 1266 e faleceu em 1308. No seu tempo de professor em Paris, a maior parte dos teólogos opunha objeção, que parecia insuperável, à doutrina segundo a qual Maria esteve isenta do pecado original desde o primeiro instante da sua conceção. A isto, o Bento XVI presta, na catequese (7 de julho de 2010) referente à sua beatificação, o seguinte esclarecimento:
“De facto, a universalidade da Redenção levada a cabo por Cristo, à primeira vista, poderia parecer comprometida por uma afirmação semelhante, como se Maria não tivesse tido necessidade de Cristo e da sua redenção. Por isso, os teólogos se opunham a esta tese. Duns Scoto, então, para fazer compreender esta preservação do pecado original, desenvolveu um argumento que foi depois adotado também pelo Papa Pio IX em 1854, quando definiu solenemente o dogma da Imaculada Conceição de Maria. E este argumento é o da “redenção preventiva”, segundo a qual a Imaculada Conceição representa a obra de arte da Redenção realizada em Cristo, porque precisamente o poder do seu amor e da sua mediação obteve que a Mãe fosse preservada do pecado original. Portanto, Maria está totalmente redimida por Cristo, mas já antes da sua conceção.”
E, a seguir, afirma:
“Os franciscanos, seus irmãos, acolheram e difundiram com entusiasmo esta doutrina, e os demais teólogos – frequentemente com juramento solene – se comprometeram a defendê-la e aperfeiçoá-la”.
Os teólogos, teorizando a doutrina da Imaculada Conceição, e Pio IX, definindo o dogma, enriqueceram com a sua contribuição específica de pensamento sistemático o que o Povo de Deus já acreditava sobre a Virgem Maria, manifestando-o nos atos de piedade, nas expressões da arte e, em geral, na vida cristã, incluindo a festividade, instituída em 1476 por Sisto IV.
Em Lisboa, a primeira festa da Imaculada Conceição foi celebrada pelo seu 1.º bispo diocesano, Dom Gilberto Hastings, a 8 de dezembro de 1149, após a reconquista da cidade aos mouros.
Nas cortes de Lisboa em 1646, o rei Dom João IV declarou que tomava por padroeira do Reino de Portugal a Virgem Nossa Senhora da Conceição, cuja imagem já tinha coroado a 15 de dezembro de 1640, no Terreiro do Paço, em Lisboa, prometendo-lhe em seu nome e dos sucessores o tributo anual de 50 cruzados de ouro. Ordenou que os estudantes na Universidade de Coimbra, antes de tomarem algum grau, jurassem defender a Imaculada Conceição da Mãe de Deus. E, por provisão de 25 de março de 1646, mandou tomar por padroeira do Reino Nossa Senhora da Conceição. Para comemorar o facto, cunharam-se medalhas de ouro de 22 quilates, com o peso de 12 oitavas, e outras semelhantes mas de prata, com o peso de onça – que foram admitidas por lei como moedas correntes, as de ouro por 12$000 réis e as de prata por 600 réis.
De 1640-1910 não houve nenhuma coroação dos soberanos portugueses. Foi substituída por uma cerimónia chamada Aclamação, em que o Rei recebia, junto com a coroa, as “regalias do Reino. Entretanto, a Coroa ficava pousada ao seu lado (não na cabeça). Esta tradição foi iniciada com a Restauração da Independência de Portugal, em 1 de Dezembro de 1640, onde o rei Dom João IV de Portugal depositou a sua coroa aos pés da imagem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, e assim chamou-a de a verdadeira Rainha de Portugal”. O rei justificou assim sua decisão: me fez Deus mercê por sua intercessão, que tomasse posse da Coroa e Cetro para governar estes meus reinos livres do pesado cativeiro de Castela”.
Por Decreto de 20 de Junho de 1696, o Príncipe Regente Dom Pedro, futuro Dom Pedro II, aprovou a “Confraria dos Escravos de Nossa Senhora da Conceição”, cujo objetivo era promover e incutir nos membros uma especial devoção a Nossa Senhora da Conceição.
Dom João V, a 12 de Dezembro de 1717, em circular enviada à Universidade de Coimbra e a todos os prelados e colegiais do reino, recomendava-lhes que todos os anos celebrassem nas suas igrejas a festa da Imaculada Conceição, recordando o juramento de Dom João IV.
O futuro rei Dom João VI, por Decreto de 6 de Fevereiro de 1818, fundou a “Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição”, de natureza honorífica, com sede em Vila Viçosa, dando-lhe estatutos por alvará de 10 de Setembro de 1819. (vd http://risco-continuo.blogs.sapo.pt/564773.html).
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Quanto a Tomas de Aquino (nascido em 1225), é de referir que faleceu (1274) ainda antes de Scoto ter entrado na Ordem Franciscana (1291). E, embora se possa dizer que outros santos teólogos negaram a verdade da imaculada conceição de Maria, Tomás tê-la-á contornado uma vez.
Este doutor da Igreja declarou abertamente que a Virgem foi pela graça imunizada contra o pecado original, defendendo claramente a verdade deste privilégio mariano. No livro I dos comentários dos livros das Sentenças (Sent.), escrito provavelmente em 1252 e quando Tomás contava apenas 27 anos de idade, ainda no início de sua atividade académica em Paris, escreveu:
Ao terceiro, respondo dizendo que se consegue a pureza pelo afastamento do contrário: por isso, pode haver alguma criatura que, entre as realidades criadas, nenhum seja mais pura do que ela, se não houver nela nenhum contágio do pecado; e tal foi a pureza da Virgem Santa, que foi imune do pecado original e do atual.” (I Sent., d. 44, q. 1, a. 3).
Depois, adotou uma postura confusa sobre a Imaculada Conceição, presente em trechos do Compêndio de Teologia e da Suma Teológica. Por exemplo, pode-se encontrar nesta postura na 2.ª parte do Compêndio de Teologia (CTh.), pertencente a período anterior ao da elaboração da III da Suma Teológica, escrita quando Tomás já contava cerca de 42 anos de idade, sendo provavelmente do ano de 1267:
Como se verificou anteriormente, a Beata Virgem Maria tornou-se Mãe de Deus concebendo do Espírito Santo. Para corresponder à dignidade de um Filho tão excelso, convinha que ela também fosse purificada de modo extremo. Por isso, deve-se crer que ela foi imune de toda nódoa de pecado atual, não somente de pecado mortal, bem como de venial, graça jamais concedida a nenhum outro santo abaixo de Cristo... Ela não foi imune apenas de pecado atual, como também, por privilégio especial, foi purificada do pecado original. Convinha ser ela concebida com pecado original, porque foi concebida de união de dois sexos.” (CTh. c. 224).
Mas, no final de vida, Tomás retorna à tese original. A defesa encontra-se na Expositio super Salutatione angelicae, sermão de quando já contava 48 anos de idade (provavelmente em 1273):
Ipsa enim purissima fuit et quantum ad culpam, quia ipsa virgo nec originale, nec mortale nec veniale peccatum incurrit. [“Ela é, pois, puríssima também quanto à culpa, pois nunca incorreu em nenhum pecado, nem original, nem mortal ou venial”].
Este retorno à tese original encontra-se também em várias obras da época final de São Tomás, como, por exemplo, na Postiila Super Psalmos de 1273, onde se lê, no comentário do Salmo 16, 2: “Em Cristo a Bem-Aventurada Virgem Maria não incorreu absolutamente em nenhuma mancha ou no Salmo 18, 6: Que não teve nenhuma obscuridade de pecado”.
Tomás de Aquino, precisando que a alma humana era infundida dias após a conceção (40 dias para os homens, 80 para as mulheres), entendia que a conceção de Maria era como a dos demais, tendo sido purificada in sinu matris, à semelhança do que os teólogos diziam de João Batista. Outros sustentam que Tomás não negava a imaculada conceição, até a afirmava, mas que não a considerava verdade de fé.
Porém, Duns Scoto, o Doutor Subtil, tem uma posição clara e sustentável. A Virgem Maria não foi concebida em pecado. Agostinho diz que, ao tratar-se o pecado, não pode incluir-se na discussão a Virgem Maria. E Anselmo diz: “Foi correspondendo que a Virgem deve ser resplandecente com uma pureza que ninguém mais abaixo de Deus pode ser concebido”.
Contudo, objeta-se que, pela sua dignidade de redentor universal, o Filho abriu os portões do céu. Mas, se a Virgem Maria não contraiu o pecado original, ela não precisaria do redentor, nem ele teria aberto os portões do céu para ela, porque o portão nunca estaria fechado, pois está fechado apenas pelo pecado, mesmo do pecado original. Ora, ninguém pode argumentar que da dignidade do Filho enquanto Redentor, Reconciliador e Mediador resulte que alguém tenha contraído o pecado original. Na verdade, o mais perfeito mediador exercita a mais perfeita mediação possível a favor duma pessoa de quem ele faz a mediação. Por isso, Cristo exercitou a mais perfeita mediação em prol de alguma pessoa de quem ele foi mediador. A favor de nenhuma pessoa Ele teve uma relação mais exaltada do que com Maria. Isso, entretanto, não seria verdade se Ele não a tivesse preservado do pecado original.
Depois, sabe-se que Deus podia isentar do pecado original Sua Mãe. Isso fazia com que Ela fosse plena de graça e isso era conveniente à perfeição. Deus pode, é conveniente, responde à perfeição e Deus fê-lo, graças aos méritos futuros da redenção operada pelo Filho.

2016.12.08 – Louro de Carvalho 

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