Corria
o mês de dezembro de 1996. Iniciara-se, havia um ano, a era de António Guterres
e Jorge Sampaio tinha meses de inquilinato no Palácio de Belém.
A
5 de dezembro, a UNESCO declarava como património da humanidade o Centro
Histórico do Porto, decisão que a cidade invicta celebrou, 20 anos depois,
entre outros atos, com o repique dos sinos nos campanários da igrejas e capelas
daquela unidade urbano-paisagística. Recordo-me de que tendo ido de comboio à Cidade
a partir da Régua (e vice-versa) para participar numa celebração
de ordenação sacerdotal, a quem me perguntava porque não tinha levado o
automóvel respondia que fora para não estragar o recém-declarado património
mundial.
A
ordenação sacerdotal acima aludida foi aquela em que o dominicano Frei João
Peliz, natural de Granjal, do concelho de Sernancelhe, recebeu a ordenação de
presbítero das mãos de Dom Júlio Tavares Rebimbas, então Arcebispo-bispo do
Porto. A 1.ª parte do título deve-se ao facto de, entre o período que foi Bispo
do Algarve e aquele em que foi o 1.º Bispo da então novel diocesana de Viana do
Castelo, foi Arcebispo de Mitilene e auxiliar do patriarcado de Lisboa.
Sendo
à data pároco do Granjal, participei com gosto na celebração e, em especial, no
gesto da imposição das mãos, em que segui o referido prelado, a par de outros
sacerdotes, de que destaco Mons. Veríssimo Lemos Peliz, tio do frade e
neossacerdote, e o Padre Cândido António Lemos de Azevedo (mais
tarde, monsenhor),
arcipreste e pároco de Sernancelhe e ligado à família por relações de
parentesco. Ambos os monsenhores, de quem guardo gratas recordações: o primeiro
por ter sido meu professor, brilhante em matemática e em composição e direção
musical e, depois, inestimável colaborador e benfeitor da igreja da paróquia de
que era natural; o segundo, como arcipreste, luzido orador sagrado e admirável
colega de labores eclesiais e docentes.
Na
verdade, refere o n.º 112 do Pontifical Romano, no atinente à Ordenação dos Bispos,
dos Presbíteros e dos Diáconos:
“Pela
imposição das mãos do Bispo e a Oração de Ordenação é conferido aos candidatos
o dom do Espírito Santo para o múnus de presbíteros. Estas palavras pertencem à
natureza da Ordenação, de tal maneira que são exigidas para a validade do ato:
‘Nós Vos pedimos, Pai todo-poderoso,
constituí estes vossos servos na dignidade de presbíteros; renovai em seus
corações o Espírito de santidade; obtenham, ó Deus, o segundo grau da Ordem
sacerdotal que de Vós procede, e a sua vida seja exemplo para todos’. Os
presbíteros impõem as mãos aos candidatos juntamente com o Bispo, para
significarem a receção no presbitério.”
Recordo,
do dia da ordenação, alguns instantâneos, além da celebração do sacramento da
Ordem, integrado na celebração da Eucaristia.
Antes
de entrar na Sé Catedral do Porto, nós, os circunstantes pusemo-nos na conversa
até perto da hora de início da celebração. Quando nos apercebemos da
necessidade de entrar, uns pombos começaram no seu arrulho à porta do templo.
Questionei quem ia a meu lado como eles deram conta de que eu estava ali,
porém, garanti que não era dirigente e do FCP. Segundo alguns eu estaria
alegadamente – Longe vá o agouro! – a aludir a eventuais boatos desportivos.
Ao
pensarmos do dia 8 de dezembro, dia da Solenidade da Imaculada Conceição,
falava-se do luminar dominicano Tomás de Aquino, ao que alguém retorquiu que o Doutor Angélico não estava lá muito de
acordo com a tese que defende aquele dogma proclamado em 8 de dezembro 1854
pelo Papa Pio IX, pela Bula Ineffabilis
Deus (voltarei adiante a este assunto).
Outro
instantâneo surgiu quando, durante a paramentação na sacristia, estando eu na
conversa com Mons. Peliz e Padre Cândido de Azevedo, o Padre Carlos Alberto de
Oliveira Pereira, que eu ainda não tinha visto naquele dia e que não via havia
bastante, se aproximou e pediu que eu continuasse a falar, o que fiz. E, ao
dirigir-me para o cumprimentar, ele exclamou: “Não tinha a certeza, mas tu és
mesmo o Abílio!”. Tínhamos trabalhado durante anos no movimento Oásis.
Porém,
o instantâneo mais significativo ocorreu no fim do almoço no Convento de
Cristo-Rei. A irmã do neossacerdote Frei João Peliz, religiosa do Sagrado
Coração de Maria, dirigiu-se-me a dar os parabéns por aquele dia. Perante o meu
espanto, explicou: “O Senhor nunca deixou
de acreditar que este dia havia de chegar!”. Nesse aspeto, a minha
interlocutora tinha razão, o que sempre recordo com agrado. E, quando, meses
depois, Frei João Peliz, se apresentou ao povo da sua terra numa celebração
eucarística dominical, explicou aos presentes reunidos em assembleia litúrgica,
aludindo à sua profissão religiosa e ordenação sacerdotal em idade um pouco
tardia, que não estranhassem nem tivessem medo, porque ele era o mesmo. Que
amava a Santa Igreja ao serviço da qual desejava trabalhar sempre. E, falando
da sua experiência anterior, insistiu em estar dela refeito, chegando a dizer
que também Santo Agostinho fora um grande pecador até aos 33 anos e se tornou
num grande santo.
***
Quanto
à posição teológica sobre a Imaculada Conceição, obviamente que o teólogo
famoso que defendeu a verdade mais tarde definida dogmaticamente foi o
franciscano Duns Scoto,
que nasceu em 1266 e
faleceu em 1308. No seu tempo de professor em Paris, a maior parte dos teólogos opunha objeção, que parecia
insuperável, à doutrina segundo a qual Maria esteve isenta do pecado original
desde o primeiro instante da sua conceção. A isto, o Bento XVI presta, na
catequese (7 de julho de 2010) referente à
sua beatificação, o seguinte esclarecimento:
“De facto, a universalidade da Redenção levada a cabo por
Cristo, à primeira vista, poderia parecer comprometida por uma afirmação
semelhante, como se Maria não tivesse tido necessidade de Cristo e da sua
redenção. Por isso, os teólogos se opunham a esta tese. Duns Scoto, então, para
fazer compreender esta preservação do pecado original, desenvolveu um argumento
que foi depois adotado também pelo Papa Pio IX em 1854, quando definiu solenemente
o dogma da Imaculada Conceição de Maria. E este argumento é o da “redenção
preventiva”, segundo a qual a Imaculada Conceição representa a obra de arte da
Redenção realizada em Cristo, porque precisamente o poder do seu amor e da sua
mediação obteve que a Mãe fosse preservada do pecado original. Portanto, Maria
está totalmente redimida por Cristo, mas já antes da sua conceção.”
E, a seguir, afirma:
“Os franciscanos, seus irmãos, acolheram e difundiram com
entusiasmo esta doutrina, e os demais teólogos – frequentemente com juramento
solene – se comprometeram a defendê-la e aperfeiçoá-la”.
Os teólogos, teorizando a doutrina da Imaculada Conceição,
e Pio IX, definindo o dogma, enriqueceram com a sua contribuição específica de
pensamento sistemático o que o Povo de Deus já acreditava sobre a Virgem Maria,
manifestando-o nos atos de piedade, nas expressões da arte e, em geral, na vida
cristã, incluindo a festividade, instituída em 1476 por Sisto IV.
Em Lisboa, a primeira festa da Imaculada Conceição foi celebrada
pelo seu 1.º bispo diocesano, Dom Gilberto Hastings, a 8 de dezembro de 1149,
após a reconquista da cidade aos mouros.
Nas cortes de
Lisboa em 1646, o rei Dom João IV declarou que tomava por padroeira do Reino de
Portugal a Virgem Nossa Senhora da Conceição, cuja imagem já tinha coroado a 15
de dezembro de 1640, no Terreiro do Paço, em Lisboa, prometendo-lhe em seu nome
e dos sucessores o tributo anual de 50 cruzados de ouro. Ordenou que os
estudantes na Universidade de Coimbra, antes de tomarem algum grau, jurassem
defender a Imaculada Conceição da Mãe de Deus. E, por provisão de 25 de março de 1646, mandou tomar por
padroeira do Reino Nossa Senhora da Conceição. Para comemorar o facto,
cunharam-se medalhas de ouro de 22 quilates, com o peso de 12 oitavas, e outras
semelhantes mas de prata, com o peso de onça – que foram admitidas por lei como
moedas correntes, as de ouro por 12$000 réis e as de prata por 600 réis.
De 1640-1910
não houve nenhuma coroação dos
soberanos portugueses. Foi substituída por uma cerimónia chamada Aclamação, em que o Rei recebia,
junto com a coroa, as “regalias do Reino. Entretanto, a
Coroa ficava pousada ao seu lado (não na cabeça). Esta tradição foi iniciada com a Restauração da Independência de
Portugal, em 1 de Dezembro de 1640, onde o rei Dom João IV de Portugal depositou
a sua coroa aos pés da
imagem de Nossa Senhora da Conceição de
Vila Viçosa, e assim chamou-a de “a verdadeira Rainha de Portugal”.
O rei justificou assim sua decisão: “me fez Deus mercê por sua intercessão,
que tomasse posse da Coroa e Cetro para governar estes meus reinos livres do
pesado cativeiro de Castela”.
Por Decreto
de 20 de Junho de 1696, o Príncipe Regente Dom Pedro, futuro Dom Pedro II,
aprovou a “Confraria dos Escravos de Nossa Senhora da Conceição”, cujo
objetivo era promover e incutir nos membros uma especial devoção a Nossa
Senhora da Conceição.
Dom João V, a
12 de Dezembro de 1717, em circular enviada à Universidade de Coimbra e a todos
os prelados e colegiais do reino, recomendava-lhes que todos os anos
celebrassem nas suas igrejas a festa da Imaculada Conceição, recordando o
juramento de Dom João IV.
O futuro rei
Dom João VI, por Decreto de 6 de Fevereiro de 1818, fundou a “Ordem Militar
de Nossa Senhora da Conceição”, de natureza honorífica, com sede em Vila
Viçosa, dando-lhe estatutos por alvará de 10 de Setembro de 1819. (vd
http://risco-continuo.blogs.sapo.pt/564773.html).
***
Quanto
a Tomas de Aquino (nascido em 1225), é de referir que faleceu (1274) ainda antes de Scoto ter entrado
na Ordem Franciscana (1291). E, embora se possa dizer que outros santos
teólogos negaram a verdade da imaculada conceição de Maria, Tomás tê-la-á
contornado uma vez.
Este doutor
da Igreja declarou abertamente que a Virgem foi pela graça imunizada contra o pecado original, defendendo claramente
a verdade deste privilégio mariano. No livro I dos comentários dos livros das Sentenças (Sent.),
escrito provavelmente em 1252 e
quando Tomás contava apenas 27 anos de idade, ainda no início de sua atividade
académica em Paris, escreveu:
“Ao terceiro, respondo dizendo que
se consegue a pureza pelo afastamento do contrário: por isso, pode haver alguma
criatura que, entre as realidades criadas, nenhum seja mais pura do que ela, se
não houver nela nenhum contágio do pecado; e tal foi a pureza da Virgem Santa,
que foi imune do pecado original e do atual.” (I Sent., d. 44, q. 1, a. 3).
Depois,
adotou uma postura confusa sobre a Imaculada Conceição, presente em trechos do
Compêndio de Teologia e da Suma Teológica. Por exemplo, pode-se encontrar nesta
postura na 2.ª parte do Compêndio
de Teologia (CTh.), pertencente a período anterior ao da elaboração da
III da Suma Teológica, escrita quando Tomás já contava cerca de 42 anos de
idade, sendo provavelmente do ano de 1267:
“Como se verificou anteriormente, a
Beata Virgem Maria tornou-se Mãe de Deus concebendo do Espírito Santo. Para corresponder à
dignidade de um Filho tão excelso, convinha que ela também fosse purificada de
modo extremo. Por isso, deve-se crer que ela foi imune de toda nódoa de pecado
atual, não somente de pecado mortal, bem como de venial, graça jamais concedida
a nenhum outro santo abaixo de Cristo... Ela não foi imune apenas de pecado
atual, como também, por privilégio especial, foi purificada do pecado original.
Convinha ser ela concebida com pecado original, porque foi concebida de união de dois sexos.” (CTh. c. 224).
Mas, no final
de vida, Tomás retorna à tese original. A defesa encontra-se na Expositio super Salutatione
angelicae, sermão de quando já contava 48 anos de idade (provavelmente em 1273):
Ipsa enim purissima fuit et quantum ad
culpam, quia ipsa virgo nec originale, nec mortale nec veniale peccatum
incurrit. [“Ela é,
pois, puríssima também quanto à culpa, pois nunca incorreu em nenhum pecado,
nem original, nem mortal ou venial”].
Este retorno
à tese original encontra-se também em várias obras da época final de São Tomás,
como, por exemplo, na Postiila
Super Psalmos de 1273, onde
se lê, no comentário do Salmo 16, 2: “Em
Cristo a Bem-Aventurada Virgem Maria não incorreu absolutamente em nenhuma
mancha” ou no Salmo 18, 6: “Que
não teve nenhuma obscuridade de pecado”.
(vd: https://pt.wikipedia.org/wiki/Imaculada_Concei%C3%A7%C3%A3o#Vis.C3.A3o_de_Santo_Tom.C3.A1s_de_Aquino,
ac.8/12/2016).
Tomás de
Aquino, precisando que a alma humana era infundida dias após a conceção (40 dias para os homens, 80 para as
mulheres), entendia que
a conceção de Maria era como a dos demais, tendo sido purificada in sinu matris, à semelhança do que os
teólogos diziam de João Batista. Outros sustentam que Tomás não negava a
imaculada conceição, até a afirmava, mas que não a considerava verdade de fé.
Porém, Duns
Scoto, o Doutor Subtil, tem uma posição clara e sustentável. A Virgem Maria não foi
concebida em pecado. Agostinho diz que, ao tratar-se o pecado, não pode
incluir-se na discussão a Virgem Maria. E Anselmo diz: “Foi correspondendo que a Virgem deve ser resplandecente com uma pureza
que ninguém mais abaixo de Deus pode ser concebido”.
Contudo, objeta-se que, pela sua
dignidade de redentor universal, o Filho abriu os portões do céu. Mas, se a Virgem
Maria não contraiu o pecado original, ela não precisaria do redentor, nem ele
teria aberto os portões do céu para ela, porque o portão nunca estaria fechado,
pois está fechado apenas pelo pecado, mesmo do pecado original. Ora, ninguém pode argumentar que da dignidade
do Filho enquanto Redentor, Reconciliador e Mediador resulte que alguém tenha
contraído o pecado original. Na verdade, o mais perfeito mediador
exercita a mais perfeita mediação possível a favor duma pessoa de quem ele faz
a mediação. Por isso, Cristo exercitou a mais perfeita mediação em prol de
alguma pessoa de quem ele foi mediador. A favor de nenhuma pessoa Ele teve uma
relação mais exaltada do que com Maria. Isso, entretanto, não seria verdade se
Ele não a tivesse preservado do pecado original.
Depois,
sabe-se que Deus podia isentar do pecado original Sua Mãe. Isso fazia com que
Ela fosse plena de graça e isso era conveniente à perfeição. Deus pode, é
conveniente, responde à perfeição e Deus fê-lo, graças aos méritos futuros da
redenção operada pelo Filho.
2016.12.08 –
Louro de Carvalho
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