sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A importância da utilização de alguns advérbios e locuções adverbiais

Toda a gente sabe disso. A colocação, a omissão ou a deslocação duma simples vírgula condicionam o sentido das frases e, por consequência, a sua receção.
Ninguém estranha que a frase “Se o homem soubesse o valor que tem a mulher rastejaria à sua volta” tenha sentidos diferentes conforme o ponto onde se coloque a vírgula. E, ainda que em ambos os casos, a dignidade da pessoa humana fique gravemente molestada, enquanto o machismo ditaria que a frase se escrevesse “Se o homem soubesse o valor que tem, a mulher rastejaria à sua volta”, a vassalagem das cantigas de amor de origem provençal prescreveria a sua escrita em “Se o homem soubesse o valor que tem a mulher, rastejaria à sua volta”.
E quem não se lembra da tal vírgula que, inserida num decreto entre o Palácio de São Bento e o Palácio de Belém, rendeu milhões a alguns?   
Mas a pertinência destes e de outros recursos linguísticos agudizou-se-me com a leitura de um texto de Pedro Andersson, sob o título Consumir de preferência antes de...na secção de economia do arquivo do Expresso on line, de 5 de novembro.
No seu texto, o colunista sustenta que, à semelhança do que se passa no Norte da Europa e nos Estados Unidos, em relação à validade dos produtos com prazo de validade, “há dois tipos de prazos de validade”, sendo que “um deles não implica ter de deitar os produtos fora” e havendo mesmo um “supermercado que os vende, com desconto”.
O mesmo autor do texto reconhece que este “não é um conceito fácil de aceitar” por parte de muitos consumidores e que até pode criar resistências e gerar polémicas. Mas revela com naturalidade que descobriu “um supermercado exclusivamente online com produtos de marca com 30, 50 e até 70% de desconto.
Para determinar os dois tipos de prazos de validade, é preciso reparar atentamente na redação da advertência inscrita na embalagem.
Assim, a indicação absoluta “Consumir até…” é de levar a sério, pois, é prescrita “para produtos perecíveis”, de sua natureza ou por confecção; e o seu consumo após o prazo estipulado configura um risco sério para a saúde pública. Por isso, atingido o dito prazo, é forçoso que sejam retirados do mercado.
Porém, uma outra indicação, a que menos se atende e que é frequente encontrar-se em algumas embalagens é “Consumir de preferência antes de…”. E o colunista exemplifica com “a maior parte dos enlatados, molhos, especiarias, champôs, cremes de beleza, aperitivos, batatas fritas, refrigerantes, etc.” – que têm o prazo de validade indicado nestes termos. A relativização do prazo é assinalada com a locução adverbial “de preferência”, como o pode ser pelo advérbio de predicado com valor modal “preferencialmente”.
Sendo assim, não é obrigatória a observação estrita desse prazo. E esses produtos podem ser colocados à disposição do consumidor sem riscos, devendo obviamente ser avaliado o seu estado de conservação e garantir o seu consumo quanto antes.
Recordo que, a 26 de agosto de 2009, o Expresso on line dava conta de que tinham sido encontradas latas de sardinhas portuguesas na despensa de Hitler. É um texto de Abílio Ferreira que o afirma:
“Por isso, a família [Ramirez] não estranhou um telefonema do seu agente em Hamburgo, no início dos anos 50, dando conta de que tinham na sua posse três latas muito especiais. Eram conservas de sardinha em azeite que tinham sido recolhidas do bunker de Hitler. ‘Não sei como lhe foram parar às mãos, lembro-me de que as enviou ao meu pai’, recorda Manuel Ramirez. Meses depois, a família decidiu prová-las, verificando que estavam em perfeito estado de conservação. ‘Estavam óptimas’, recorda o empresário, que aproveita o episódio para troçar das leis europeias que impõem um prazo de caducidade a todos os produtos.”.
No entanto, “as empresas e as marcas têm medo deste prazo e não colocam estes produtos com prazo preferencial à venda se o fim desse prazo já estiver perto”. Mas é pena que “centenas de milhares de produtos” tantas vezes “vão para o lixo, embora estejam em perfeitas condições de consumo”. Por isso, o colunista referenciado defende que “é perfeitamente legal comercializar este tipo de produtos com este segundo tipo de prazo, mesmo depois de expirado”. E penso que essa disponibilização ao consumidor muito contribuiria para diminuir o desperdício alimentar condenado pelas Nações Unidas e pelo Papa Francisco, bem como para zelar pelo ambiente. O desperdício alimentar constitui uma postura de escárnio para com aqueles, muitos, que sofrem as agruras da fome.
Depois, milhares de embalagens de produtos não se vendem somente “porque a marca decidiu modernizar a embalagem”, pelo que são “retirados das prateleiras dos supermercados”, mesmo estando “dentro de todos os prazos”.
Nasceu assim o supermercado Good After. Vão às marcas por aquilo “que já não vai para os hipermercados e colocam à venda com descontos de 30 a 70%, conforme o prazo de validade “preferencial” já esteja ou não ultrapassado”.
É usual as marcas e as empresas oferecerem este tipo de produtos a instituições. Porém, estas não precisam de todos os tipos de produtos e o transporte acarreta custos que, por vezes, não são suportáveis para as empresas e para as instituições.
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Esta dupla modalidade de prescrição faz-me lembrar o que se passa no nosso ordenamento jurídico-constitucional em relação a algumas matérias. Dão-se alguns exemplos da relatividade de alguma estatuição constitucional:
Enquanto, em matéria de ensino básico, incumbe ao Estado “assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito”, sem qualquer restrição (vd alínea a do n.º 2 do art.º 74.º da CRP), em relação aos demais graus incumbe-lhe “estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino” (vd alínea e do mesmo n.º 2 e art.º).
Já, em matéria de saúde, a CRP estabelece que “o direito à proteção da saúde é realizado: através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito” (vd alínea a do n.º 2 do art.º 64.º).
Ora tanto a estipulada progressividade da gratuitidade como a gratuitidade tendencial implicam a marcação de passo no mesmo lugar, quando não agravam os custos ou porque o Estado não tem dinheiro ou porque as condições económicas e sociais dos cidadãos vão melhorando. A verdade, porém, é outra: o Estado não tem capacidade para obviar às múltiplas fraudes, negociatas e aproveitamentos de certos detentores de cargos públicos e de algumas empresas que atuam nos campos da saúde e da educação. E o cidadão leva com as consequências. E, porque não controla a economia subterrânea e se fia no cumprimento das obrigações declarativas de todos, uns pagam sem poderem e outros beneficiam sem pagarem efetivamente o devido. Além disso, os preços aumentam e os salários diminuem ou sofrem de congelamento.
Zé paga, a gosto ou a contragosto, todos os desmandos e gestões ruinosas
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Estes advérbios de predicado empregam-se também para afirmar precisamente o contrário ou quase. Lembro-me de um bispo ter demorado a cerimónia da inauguração de uma igreja remodelada e o pároco, ao despedir-se do prelado, ter agradecido, dizendo que tudo correu bem e que “o Senhor Bispo até foi relativamente breve”.
Ainda hoje, dia 30, o porta-voz do Hospital da Cruz Vermelha, respondendo aos jornalistas, disse que, em relação ao dia de ontem, o Dr. Mário Soares estava relativamente melhor. Eu preferia que ele estivesse “melhor”. Assim, posso supor que está na mesma.
E eu penso que ninguém teria acusado de mentira o XIX Governo se ele nos tivesse dito que a saída da troika foi relativamente limpa.
É óbvio que outros recursos se utilizam para escamotear a verdade ou a obrigação. É a interrupção voluntária da gravidez (IVG) em vez de aborto provocado; é a inverdade em vez de mentira, erro, engano, distração ou ignorância; é a má relação com a verdade em vez de mentira; é a hiperatividade em vez de má criação; é a disfuncionalidade cognitiva temporária em vez de não sei quê, talvez inadvertência; é o comportamento desviante em vez de mau comportamento; é o capital de relação em vez de cunha; é a retenção em vez de reprovação; é a conclusão em vez da aprovação… E faz-se concurso público para, às vezes, legitimar a entrada de amigos na empresa, na obra ou no cargo público.
E que dizer de suspeito em vez de criminoso, de indiciado em vez de acusado, de arguido em vez de réu? E porquê o uso e abuso de “alegado” e “alegadamente”?
Ademais tem de presumir-se a inocência do arguido até decisão condenatória transitada em julgado, quando com a fuga de informação e/ou a aquiescência dos poderes se fazem julgamentos na praça pública da comunicação social.
É a vida!

2016.12.30 – Louro de Carvalho

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