Toda a gente sabe disso. A colocação, a omissão ou a
deslocação duma simples vírgula condicionam o sentido das frases e, por consequência,
a sua receção.
Ninguém estranha que a frase “Se o homem soubesse o valor que tem a mulher rastejaria à sua volta”
tenha sentidos diferentes conforme o ponto onde se coloque a vírgula. E, ainda
que em ambos os casos, a dignidade da pessoa humana fique gravemente molestada,
enquanto o machismo ditaria que a frase se escrevesse “Se o homem soubesse o valor que tem, a mulher rastejaria à sua volta”,
a vassalagem das cantigas de amor de origem provençal prescreveria a sua
escrita em “Se o homem soubesse o valor
que tem a mulher, rastejaria à sua volta”.
E quem não se lembra da tal vírgula que, inserida num
decreto entre o Palácio de São Bento e o Palácio de Belém, rendeu milhões a
alguns?
Mas a pertinência destes e de outros
recursos linguísticos agudizou-se-me com a leitura de um texto de Pedro
Andersson, sob o título “Consumir de
preferência antes de...” na secção de economia do
arquivo do Expresso on line, de 5 de novembro.
No seu texto, o colunista sustenta que, à semelhança
do que se passa no Norte da Europa e nos Estados Unidos, em relação à validade
dos produtos com prazo de validade, “há dois tipos de prazos de validade”,
sendo que “um deles não implica ter de deitar os produtos fora” e havendo mesmo
um “supermercado que os vende, com desconto”.
O mesmo autor do texto reconhece que este “não é um
conceito fácil de aceitar” por parte de muitos consumidores e que até pode
criar resistências e gerar polémicas. Mas revela com naturalidade que descobriu
“um supermercado exclusivamente online com produtos de marca com 30, 50 e até
70% de desconto.
Para determinar os dois tipos de prazos de validade, é
preciso reparar atentamente na redação da advertência inscrita na embalagem.
Assim, a indicação absoluta “Consumir até…” é de levar a sério, pois, é prescrita “para produtos
perecíveis”, de sua natureza ou por confecção; e o seu consumo após o prazo
estipulado configura um risco sério para a saúde pública. Por isso, atingido o
dito prazo, é forçoso que sejam retirados do mercado.
Porém, uma outra indicação, a que menos se atende e que é frequente encontrar-se
em algumas embalagens é “Consumir de
preferência antes de…”. E o colunista exemplifica com “a maior parte dos
enlatados, molhos, especiarias, champôs, cremes de beleza, aperitivos, batatas
fritas, refrigerantes, etc.” – que têm o prazo de validade indicado nestes
termos. A relativização do prazo é assinalada com a locução adverbial “de preferência”, como o pode ser pelo
advérbio de predicado com valor modal “preferencialmente”.
Sendo assim, não é obrigatória a observação estrita desse prazo. E esses produtos
podem ser colocados à disposição do consumidor sem riscos, devendo obviamente
ser avaliado o seu estado de conservação e garantir o seu consumo quanto antes.
Recordo que, a 26 de agosto de 2009, o Expresso
on line dava conta de que tinham sido encontradas latas de sardinhas portuguesas
na despensa de Hitler. É um texto de Abílio Ferreira que o afirma:
“Por isso, a família [Ramirez]
não estranhou um telefonema do seu agente em Hamburgo, no início dos anos 50,
dando conta de que tinham na sua posse três latas muito especiais. Eram
conservas de sardinha em azeite que tinham sido recolhidas do bunker de Hitler. ‘Não sei como lhe foram
parar às mãos, lembro-me de que as enviou ao meu pai’, recorda Manuel Ramirez.
Meses depois, a família decidiu prová-las, verificando que estavam em perfeito
estado de conservação. ‘Estavam óptimas’, recorda o empresário, que aproveita o
episódio para troçar das leis europeias que impõem um prazo de caducidade a
todos os produtos.”.
No entanto, “as empresas e as marcas têm medo deste prazo e não colocam
estes produtos com prazo preferencial à venda se o fim desse prazo já estiver
perto”. Mas é pena que “centenas de milhares de produtos” tantas vezes “vão
para o lixo, embora estejam em perfeitas condições de consumo”. Por isso, o
colunista referenciado defende que “é perfeitamente legal comercializar este
tipo de produtos com este segundo tipo de prazo, mesmo depois de expirado”. E penso
que essa disponibilização ao consumidor muito contribuiria para diminuir o
desperdício alimentar condenado pelas Nações Unidas e pelo Papa Francisco, bem
como para zelar pelo ambiente. O desperdício alimentar constitui uma postura de
escárnio para com aqueles, muitos, que sofrem as agruras da fome.
Depois, milhares de embalagens de produtos não se vendem somente “porque a
marca decidiu modernizar a embalagem”, pelo que são “retirados das prateleiras
dos supermercados”, mesmo estando “dentro de todos os prazos”.
Nasceu assim o supermercado Good
After. Vão às marcas por aquilo “que já não vai para os hipermercados e
colocam à venda com descontos de 30 a 70%, conforme o prazo de validade
“preferencial” já esteja ou não ultrapassado”.
É usual as marcas e as empresas oferecerem este tipo de produtos a
instituições. Porém, estas não precisam de todos os tipos de produtos e o
transporte acarreta custos que, por vezes, não são suportáveis para as empresas
e para as instituições.
***
Esta
dupla modalidade de prescrição faz-me lembrar o que se passa no nosso ordenamento
jurídico-constitucional em relação a algumas matérias. Dão-se alguns exemplos
da relatividade de alguma estatuição constitucional:
Enquanto,
em matéria de ensino básico, incumbe ao Estado “assegurar o ensino básico
universal, obrigatório e gratuito”, sem qualquer restrição (vd
alínea a do n.º 2 do art.º 74.º da CRP), em relação aos demais graus incumbe-lhe “estabelecer
progressivamente a gratuitidade de
todos os graus de ensino” (vd alínea e do mesmo n.º 2 e art.º).
Já,
em matéria de saúde, a CRP estabelece que “o direito
à proteção da saúde é realizado: através de um
serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições
económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito” (vd alínea a do n.º 2 do art.º 64.º).
Ora
tanto a estipulada progressividade da gratuitidade como a gratuitidade tendencial
implicam a marcação de passo no mesmo lugar, quando não agravam os custos ou
porque o Estado não tem dinheiro ou porque as condições económicas e sociais
dos cidadãos vão melhorando. A verdade, porém, é outra: o Estado não tem
capacidade para obviar às múltiplas fraudes, negociatas e aproveitamentos de certos
detentores de cargos públicos e de algumas empresas que atuam nos campos da
saúde e da educação. E o cidadão leva com as consequências. E, porque não controla
a economia subterrânea e se fia no cumprimento das obrigações declarativas de
todos, uns pagam sem poderem e outros beneficiam sem pagarem efetivamente o
devido. Além disso, os preços aumentam e os salários diminuem ou sofrem de congelamento.
Zé
paga, a gosto ou a contragosto, todos os desmandos e gestões ruinosas
***
Estes
advérbios de predicado empregam-se também para afirmar precisamente o contrário
ou quase. Lembro-me de um bispo ter demorado a cerimónia da inauguração de uma
igreja remodelada e o pároco, ao despedir-se do prelado, ter agradecido, dizendo
que tudo correu bem e que “o Senhor Bispo até foi relativamente breve”.
Ainda
hoje, dia 30, o porta-voz do Hospital da Cruz Vermelha, respondendo aos
jornalistas, disse que, em relação ao dia de ontem, o Dr. Mário Soares estava relativamente melhor. Eu preferia que
ele estivesse “melhor”. Assim, posso supor que está na mesma.
E
eu penso que ninguém teria acusado de mentira o XIX Governo se ele nos tivesse
dito que a saída da troika foi relativamente
limpa.
É
óbvio que outros recursos se utilizam para escamotear a verdade ou a obrigação.
É a interrupção voluntária da gravidez (IVG) em vez de aborto provocado; é a
inverdade em vez de mentira, erro, engano,
distração ou ignorância; é a má relação com
a verdade em vez de mentira; é a hiperatividade
em vez de má criação; é a disfuncionalidade
cognitiva temporária em vez de não sei quê, talvez inadvertência; é o comportamento desviante em vez de mau comportamento;
é o capital de relação em vez de cunha; é a retenção
em vez de reprovação; é a conclusão
em vez da aprovação… E faz-se concurso público para, às vezes, legitimar a
entrada de amigos na empresa, na obra ou no cargo público.
E
que dizer de suspeito em vez de criminoso, de indiciado em vez de acusado, de
arguido em vez de réu? E porquê o uso e abuso de “alegado” e “alegadamente”?
Ademais
tem de presumir-se a inocência do arguido até decisão condenatória transitada
em julgado, quando com a fuga de informação e/ou a aquiescência dos poderes se fazem
julgamentos na praça pública da comunicação social.
É
a vida!
2016.12.30 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário