terça-feira, 13 de dezembro de 2016

“É altura de os líderes ouvirem”

Suponho ser esta a asserção mais oportuna de António Guterres no discurso de tomada de posse ontem, dia 12, como secretário-geral da ONU, para entrar em funções a 1 de janeiro, dia da posse efetiva.
Na cerimónia, que decorreu na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, discursaram o Presidente da Assembleia-Geral, Peter Thomson, os presidentes dos grupos regionais e a representante do país que acolhe a sede da ONU, a embaixadora americana Samantha Power.
Depois de jurar a Carta das Nações Unidas perante a Assembleia-Geral, na presença do Presidente da República Portuguesa e do Primeiro-Ministro de Portugal, o novo secretário-geral identificou como prioridade do mandato a “prevenção de conflitos” e preconizou a necessidade de mudanças na organização. A este respeito declarou “chegada a altura de as Nações Unidas reconhecerem as suas insuficiências e alterar o que precisa de ser alterado”. E incisivamente frisou: “Chegou a hora de a ONU mudar”. E acrescentou: “Hoje temos de estar aqui pela paz”.
Obviamente, o orador sabe que a reforma das instituições, bem como a dirimição e a prevenção de conflitos depende mais dos líderes dos Estados-Membros do que do secretário-geral. A este compete pôr as cartas na mesa e incentivar e coordenar as ações, mas os líderes devem munir-se da vontade política de ouvir, escutar e decidir em prol da eficácia das instituições e, sobretudo, pelo bem da paz e do desenvolvimento. Por isso, proclamar Urbi et Orbi que “é altura de os líderes ouvirem” constitui um ato de humildade contra uma possível autossuficiência do líder da ONU e um ato de coragem contra a tentação de cada líder dos Estados governar segundo os seus interesses ou os do clã, relegando para patamares secundários a causa pública.
Depois, defendendo uma maior eficiência da ONU e a inclusão dos jovens na tomada de decisões, o ex-Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados lembrou que é preciso haver cooperação com os Estados-membros (“a ONU não pode fazer tudo sozinha”) e o “empenho dos organismos regionais”. E, consciente das emergências e das prioridades, declarou-se preparado para se “envolver pessoalmente” na resolução de conflitos, mas acentuou a necessidade de apostar na prevenção de conflitos como “a melhor forma de salvar vidas e de reduzir o sofrimento humano”.
Numa alocução de 15 minutos, em inglês, francês e espanhol, o antigo primeiro-ministro português sublinhou a ideia de um “contínuo de paz, da prevenção e resolução de conflitos para a manutenção de paz, construção de paz e desenvolvimento”.
No âmbito da reforma da organização, identificou “três prioridades estratégicas”: o trabalho pela paz; o apoio ao desenvolvimento sustentável; e a agilização da gestão interna da organização. A sublinhar que “as Nações Unidas têm de estar preparadas para mudar”, defendeu que “não é útil para ninguém que demore 9 meses a destacar um quadro para o terreno”.
A reforma administrativa da ONU implica não só mais transparência e o reforço do regulamento financeiro e interno, mas também uma maior igualdade de género e regional nos cargos do organismo. E a reforma da gestão deve atingir a paridade de género. O objetivo inicial de representação, segundo Guterres, tinha-se estabelecido como meta o ano 2000”. Porém, “decorridos 16 anos, ainda estamos longe de a atingir”, pelo que o novo líder se compromete “a ultrapassar esta questão”.
Os outros dois pilares são o trabalho pela paz (incluindo “evitar e abolir os crimes sexuais contra aqueles que devemos defender”, aumentando a responsabilização de quem os pratique) e o apoio ao desenvolvimento sustentável, em que se pretende garantir que os Estados-membros alcançam “as medidas propostas do Acordo de Paris”, sem que “ninguém seja deixado para trás”. E, no atinente à prevenção sustentou:
“A prevenção exige que apoiemos mais os países nos esforços de renovar as suas instituições. Restabelecer os Direitos Humanos como valor fundamental, enquanto si próprios e não como fim político. Toda e qualquer minoria deve pertencer ao grupo social, político e económico sem qualquer restrição”.
O secretário-geral considerou que, no caso de abusos sexuais na República Centro Africana,
“O sistema das Nações Unidas não fez o suficiente para prevenir e responder aos crimes de violência sexual e exploração cometidos sob a bandeira da ONU contra aqueles que era suposto proteger”.
E prometeu trabalhar com os Estados-Membros a “política de tolerância zero” nesta matéria.
Por outro lado, Guterres apontou expressamente “o trabalho com os jovens” com “um elo que falta na estratégia” da ONU, sustentando que as Nações Unidas devem “capacitar os jovens e aumentar a sua participação na sociedade e o seu acesso a educação, formação e empregos”.
Descreveu os tempos atuais como bastante pessimistas e diferentes dos que se viviam há 20 anos, “quando prestava juramento como primeiro-ministro de Portugal”. Na altura, as pessoas pensavam que “se viveria num mundo de desenvolvimento e prosperidade para todos”. Mas não foi assim, e hoje enfrentam-se novos conflitos: “O fim da Guerra Fria não foi o fim da história”.
Voltando o olhar para as novas guerras que surgiram, frisou:
“Os conflitos tornaram-se mais complexos e mais interligados do que antes. Foram feitas violações horríveis dos Direitos Humanos e as pessoas foram obrigadas a fugir. (…) Os últimos 20 anos testemunharam um crescimento. Muitos indicadores sociais melhoraram, mas continuou a haver desigualdades e muitas pessoas foram deixadas para trás”.
Acusou o medo, que “está a conduzir” decisões em todo o mundo e defendeu a necessidade de “entender as necessidades” das pessoas, “sem perder de vista os valores universais”. Com efeito, tendo as pessoas perdido a confiança nos Governos e nas instituições globais, “incluindo as Nações Unidas”, muitas deixam que o medo “oriente as suas decisões”. Por isso, “é altura de trabalhar com os líderes” e de “reconstruir a relação entre os cidadãos e os líderes mundiais”.
Sobre o mundo em que vivemos, disse que a história “voltou com vingança”, explicitando:
“Os conflitos tornaram-se mais complexos e interligados do que antes. Produziram horríveis violações da lei humanitária internacional e abusos dos direitos humanos. As pessoas foram forçadas a deixar as suas casas numa escala que não era vista há décadas. E uma nova ameaça emergiu, o terrorismo global”.
E referiu que “a globalização e o progresso tecnológico contribuíram para o crescimento das desigualdades”, deixando para trás muitas pessoas, “mesmo nos países desenvolvidos” – o que aprofundou a divisão entre pessoas e a classe política e, em alguns países, fez crescer a “instabilidade social e mesmo a violência e conflito”. É o “paradoxo de hoje”: apesar de maior conectividade, as sociedades estão “cada vez mais fragmentadas”. Por isso, declarou:
“Queremos que o mundo que as nossas crianças vão herdar seja definido pelos valores consagrados na Carta das Nações Unidas: paz, justiça, respeito, direitos humanos, tolerância e solidariedade. Todas as grandes religiões os abraçam e devemos lutar para os refletir nas nossas vidas todos os dias”.
E concluiu que a missão da ONU é ir além “do medo do outro” e promover a confiança “nos valores e nas instituições que servem para proteger” as pessoas; e que a sua confiança nas Nações Unidas será dirigida para inspirar essas confianças, enquanto faz o seu melhor “para servir a nossa humanidade comum”.
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A jornalistas portugueses disse que este processo lhe faz sentir “uma enorme responsabilidade”:
“É uma confiança enorme que os países estão a pôr em mim em situações que são particularmente difíceis”.
E considerou:
“Tive sempre muita sorte na vida, em muitas coisas que me aconteceram, em muitas oportunidades da vida, primeiro na Revolução dos Cravos, depois a hipótese de servir no ACNUR as pessoas mais vulneráveis. E também tive muita sorte aqui, quando em vez do processo tradicional de seleção se optou por um processo aberto e isso acabou por me beneficiar”.
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A cerimónia do juramento e posse de Guterres como secretário-geral da ONU foi antecedida por uma homenagem ao secretário-geral cessante, Ban Ki-moon, que fez o seu último discurso como secretário-geral perante a Assembleia-Geral.
Ban Ki-moon, defendendo a necessidade de continuar a “encarar o mundo com esperança” e reconhecer o valor das instituições internacionais, disse que é com confiança que passa o testemunho a António Guterres, um “homem íntegro” e “de princípios”, com “paixão e compaixão”. No primeiro aspeto, frisou:
 “Foram as Nações Unidas que nos mostraram a solidariedade global. Enfrentámos os mais prementes desafios e abrimos portas como jamais havia sido feito antes para transformar o mundo. Apesar das dificuldades salvámos vidas e protegemos a vida de milhões. (...) Devemos continuar a fazer tudo o que for necessário para que as gerações vindouras não sejam deixadas para trás”.
Quanto a Guterres, considerou que é o timoneiro adequado para percorrer os caminhos ainda não percorridos” e espera que leve a organização “a novos e mais altos desígnios”.
E, sobre a sua relação com a ONU, disse:
 “O meu coração fica aqui. Ser secretário-geral da ONU foi de facto um grande privilégio, um privilégio de uma vida”.
Profundamente sensibilizado pelas palavras que lhe dirigiram na sessão em que o sucessor prestou juramento sobre a carta da ONU, afirmou ser uma “criança das Nações Unidas”: “Sou uma criança das Nações Unidas. A sua comida alimentou-nos, os seus livros ensinaram-nos”, disse, referindo-se à ação da ONU na Coreia do Sul após a Guerra da Coreia. E acrescentou:
“Para nós, o poder da ONU nunca foi abstrato. E esta é a história de muitos milhões de pessoas à volta do mundo”.
Salientou que, ao longo destes 10 anos, teve oportunidade de testemunhar o sofrimento de milhares de pessoas que fogem da pobreza, da guerra, ou de catástrofes e que lutam contra as desigualdades. E, sublinhando que milhares de mulheres e crianças sofrem exploração e violência em todo o mundo, frisou:
Dia a dia, tijolo a tijolo, vamos construindo a paz, mas ainda há muito a fazer”.
Depois, acrescentou:
Embora todos os problemas pareçam inultrapassáveis, o derramamento de sangue não pode ser deixado de lado”.
Em relação ao futuro, sustentou que é necessário promover o crescimento económico à escala global, desejando ainda “paz e prosperidade” às Nações Unidas, concluindo:
Todos temos direito à vida, a um teto, a não ter medo”.
E, destacando o sentimento no mundo de que “as lideranças [políticas] são desligadas e incapazes de responder” às necessidades das populações e o “crescente défice de liderança internacional”, o secretário-geral cessante entende que estes desafios devem motivar o rumo da organização:
“Estes objetivos e ideias são os que as pessoas merecem hoje, não num futuro longínquo, nos países em desenvolvimento como nos países mais pobres, e são eles que devem continuar a motivar o nosso trabalho”.
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Será bom que os líderes mundiais, deixem as suas suficiências de poder e escutem estas duas vozes em prol da paz e do desenvolvimento!

2016.12.13 – Louro de Carvalho

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