quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Se hoje “ele” estivesse aqui, “eles” matá-lo-iam de novo

O enunciado em epígrafe foi retirado duma entrevista com Gaspar Romero, o irmão mais novo (agora com 87 anos de idade) do Beato Oscar Romero, por Alver Metalli, publicada sob o título NAVIDAD CON LOS ROMERO em www.tierrasdeamerica.com, a 24 de dezembro de 2016 e transcrita, no essencial, no site da fraternitas, a 26 de dezembro.
Trata-se duma frase emblemática proferida pelo entrevistado na réplica à recordação que o condutor da entrevista lhe fez do que Gaspar dissera em tempos que, “se Romero estivesse vivo, diria as mesmas coisas que disse nos anos 1980...”. Neste sentido, afiançou que se Oscar vivesse naquele ambiente político e económico, os detentores do poder não hesitariam de novo em o matar. Na verdade, os fabricantes e os fautores da injustiça sobre os pobres, da miséria alastrante e da corrupção empedernida e sem escrúpulos não toleram as vozes que se levantem em prol dos explorados. Bem sabemos como é difícil a reforma da Igreja preconizada pelo Papa Francisco e seus colaboradores mais sinceros e devotados e quão grandes são as resistências que os instalados no carreirismo ou nas sumas e inquestionáveis verdades e certezas ditadas, não pela fé, mas por uma certa tradição caprichosa opõem à aura de frescura que o Pontífice quer insuflar nas velas da barca petrina. E constituem o acúmulo da hipocrisia e do disfarce as salvas de palmas que tantas personalidades e decisores políticos, financeiros e económicos disparam em aplauso a Sua Santidade quando denuncia os muitos e vários atropelos à dignidade das pessoas que o mundo “não quer” e “não deixa” que sejam “pessoas”. Só não o aniquilam porque os diversos serviços o guardam e sobretudo porque ficariam mal colocados.
A leitura da predita entrevista fez-me lembrar aquele episódio em que o pároco de Freixinho, em 1980, no sermão da procissão do enterro do Senhor, em Sexta-feira Santa, lançou a questão de forma retórica: “Se Jesus Cristo por aqui estivesse hoje de forma visível como naquele tempo, pregasse a mesma doutrina, fizesse os mesmos prodígios se afirmasse como o Filho de Deus e o Senhor de todos, os homens de hoje matá-lo-iam ou não?”.Ante esta arrazoado interrogativo, um grupo de crianças gritou em coro: “Não, Senhor Padre, não matávamos Cristo!”. E o pároco pregador concluiu: “Pois, claro! Não foram, nem são, nem serão as crianças de Freixinho a matar Jesus Cristo”.  Tal como então, hoje os pobres, os desalojados, os descartados, os doentes e os explorados – a menos que sejam maldosamente contaminados pelo ódio mandante e intoxicante de outros – sentem a proteção de quem se bate e entrega por eles, levantando corajosamente a sua voz incómoda e apontando o dedo ao desgoverno, à exploração e à comercialização da dignidade, sobretudo se se trata de profetas e apóstolos da não violência. Obviamente, os atingidos pela contundência pertinente da denúncia profética, mormente se esta vem eivada pelo compromisso pela mudança, não suportam a força da voz e da vez que se quer para os que não têm vez nem voz. O compromisso com a mudança estraga jogos de poder, põe a careca dos espertos à mostra, desnuda a ação de corruptores e de corruptos, grita o destino universal dos bens, exige de cada um o contributo conforme as suas possibilidades e a colmatação das necessidades de cada um.
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O irmão, como é natural, disse nunca ter pensado que Oscar, “com o qual cresceu”, viria a ser um santo. Declarou que viu nele um caráter diferente e recorda-se da previsão da mãe, a 15 de agosto de 1942, de que “ele chegaria muito alto”. Era o dia da Assunção de Nossa Senhora e do aniversário de Oscar, que “ainda se encontrava em Roma a completar a sua formação académica na Pontifícia Universidade Gregoriana”. Contudo, não quer dizer que tal antevisão se referisse ao “céu dos bem-aventurados ou dos santos”. E a declaração da santidade de Oscar Romero coroa o seu grave “pecado” de “defender os pobres, pedir justiça para que não se cometessem prepotências contra as pessoas pobres”. É algo que o Papa Francisco preconiza de forma insistente e coerente. Mas a oligarquia tinha necessidade de o eliminar e começou por o ultrajar utilizando os jornais do país, “que são os jornais dos ricos e dizem o que os ricos pensam”.
Mas a entrevista presta informação relevante sobre a causa da canonização de Oscar Romero. Segundo o padre Rafael Urrutia, postulador da causa, dá notícia de que “a documentação sobre um quarto milagre, pelo qual talvez seja reconhecido como santo, acaba de ser enviada a Roma para ser examinada pelos membros da Congregação do Vaticano encarregada do assunto”. E “os outros dois casos de supostas curas inexplicáveis, a de um equatoriano e a de um mexicano, ainda estão a ser estudados em El Salvador”.

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Oscar Romero nasceu, a 15 de agosto de 1917, em Ciudad Barrios, povoado onde se produzia café, no Departamento de San Miguel, a 156 quilómetros de San Salvador, filho de Santos Romero e de Guadalupe Galdámez, numa família de origens humildes.
Ingressou no seminário menor de San Miguel, em 1931, tendo ali ficado conhecido como ‘O menino da flauta’, pela sua habilidade em utilizar uma flauta de bambu que herdou de seu pai. Em 1937, ingressou no Seminário Maior San José de la Montaña, em San Salvador, e, passados 7 meses, foi para Roma estudar teologia, tendo dali presenciado as calamidades da  II Guerra Mundial. E foi ordenado sacerdote a 4 de abril de 1942.
Regressado a El Salvador em 1943, tornou-se pároco da cidade de Anamorós, sendo depois transferido para a cidade de San Miguel, onde serviu como pároco na Catedral de Nossa Senhora da Paz e secretário do Bispo diocesano monsenhor Miguel Ángel Machado.
Posteriormente, em 1968, foi nomeado secretário da Conferencia Episcopal de El Salvador. E, a 21 de abril de 1970, Paulo VI escolheu-o para Bispo Auxiliar de San Salvador, recebendo a ordenação episcopal a 21 de junho do mesmo ano, de mãos do núncio apostólico Girolamo Prigrione. A 15 de outubro de 1974, foi nomeado Bispo da diocese de Santiago Maria, no departamento de Usulután, encargo que manteve durante dois anos. E foi nomeado Arcebispo de San Salvador em 3 de fevereiro de 1977, graças ao seu aparente conservadorismo.
Entretanto, em março de 1977, ocorreu o assassinato dum seu amigo, o padre Rutilio Grande, jesuíta, junto com dois camponeses – um incidente que transformou Romero, levando-o a denunciar as injustiças sociais por meio da rádio católica Ysax e do semanário Orientación. Por isso, era conhecido como “A voz dos sem voz”. E, por ter aderido aos ideais da não violência, foi comparado a Mahatma Gandi e a Martin Luther King. Nas suas homilias dominicais, denunciava as numerosas violações dos direitos humanos em El Salvador e publicamente manifestou a sua solidariedade com as vítimas da violência política, no contexto da Guerra Civil de El Salvador. Na Igreja Católica, defendia a “opção preferencial pelos pobres”.
Chamavam-no de comunista e de guerrilheiro, pelo que “a oligarquia salvadorenha mandou a Roma três bispos, o de San Miguel, o de San Vicente e o de Santa Ana, para denunciá-lo e para pedir que o transferissem”. Monsenhor Romero “sabia disso e ficou muito desgostoso por três irmãos no episcopado terem ido denunciá-lo” – terrível: “alguns dos que ele havia ajudado”. 
O entrevistado de Alver Metalli lamenta: “Hoje também há difamadores na Igreja de El Salvador”. E, mesmo depois da sua morte por ódio à fé (João Paulo II contestava a quem duvidava do mérito de Romero: “Morreu no altar!), continuaram as intrigas, que o Papa Francisco denominou, depois da beatificação, de “martírio post mortem”, um martírio “que continuou depois do seu assassinato” por calúnias dos “seus irmãos no sacerdócio e no episcopado”. Coerentemente, o Francisco “tirou o processo de beatificação do pântano em que se encontrava”: “não avançava devido à oposição” que havia em El Salvador.
Agora abundam as “pessoas que mudaram de opinião sobre monsenhor Romero”, que foram “críticas e hostis”, mas “que agora pensam diferente”. Disseram “que lamentavam muito e que estavam arrependidas por terem repetido coisas falsas sobre monsenhor Romero”; e que “pedem perdão a Deus e a ele pelas ofensas que lhe fizeram”.
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Gaspar Romero, na entrevista, fornece mais duas informações preciosas: a importância que teve para o arcebispo a morte de Rutilio e as pressões de que o próprio Gaspar foi alvo.
Aquando da nomeação de Romero para Arcebispo, Rutilio, que era diretor do seminário San José de la Montaña, pediu-lhe a transferência para El Paisnal, onde nascera. Lá “doutrinava a gente, ensinava que não se deixassem ultrajar pelos patrões, que pedissem um tratamento justo e salário decente” – o que lhe provocou a morte: “a extrema direita mandou assassiná-lo”.
O monsenhor, ao saber do assassinato, foi lá. Vendo que o velavam no parque, “perguntou porque não o velavam na igreja e fez com que o levassem para dentro”. Ficando a noite inteira ao lado do cadáver, começou a “amizade com os Jesuítas, que se haviam afastado dele e o criticavam”. E começou “uma transformação nele” próprio. Pediu ao Presidente da República “que se investigasse o assassinato do padre Rutilio até identificar os culpados”. O Presidente prometeu mandar “investigar a fundo” e fornecer respostas “dentro de um mês”. Como passou o mês sem haver “responsáveis certos”, Romero “rompeu com o governo”.
As consequências repercutiram-se também em Gaspar Romero. “Tinha um cargo muito bom na Antel como dirigente”. E, de repente, transferiram-no “para a portaria, para trabalhar das 7 da noite às 7 da manhã”. Quando conseguiu ter uma explicação, ela veio nos termos seguintes: “É por causa do seu irmão”. Recebia “muitas ameaças anónimas” em sua casa, “desde malcriações e grosserias até outras mais finas, em que me diziam que queriam muito bem a meu irmão e que eu intercedesse”. Na sexta-feira anterior ao assassinato de monsenhor Romero (foi morto a uma segunda-feira) chegou-lhe carta anónima que dizia que, se o irmão “não desistisse das suas homilias, teria as horas contadas, que o sequestrariam” e que “deveria dizer isso a ele”. Ao que o irmão respondeu que deitasse fora a carta.
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Será pecado pedir aos governantes e aos seus militares que não matem civis indefesos, explorados, oprimidos ou com opinião? É legítimo chamar comunistas aos teólogos da libertação, sem mais, sem crivar que tipos de teologia de libertação propõem? É lícito dar a morte a quem prega: “A missão da Igreja é identificar-se com os pobres. Assim a Igreja encontra a sua salvação”?

2016.12.18 – Louro de Carvalho

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