O sarcófago do rei poeta, diplomata, culto e lavrador, que está no
Mosteiro de São Dinis e São Bernardo, em Odivelas, foi gravemente desvirtuado
pelo terramoto de 1755 e por restauros posteriores pouco ortodoxos. Agora uma
equipa vai tentar restituir-lhe a dignidade.
A informação
detalhada é prestada por Lucinda Canelas no
Público de ontem, 13 de dezembro.
Recorda-nos a articulista que, para ascender ao trono, Dinis teve que enfrentar
o irmão Afonso, filho bastardo do pai, e para se segurar no trono, teve de
lutar contra o filho, o futuro Dom Afonso IV. Mas pretendeu também decidir como
havia de ser recordado após a morte. Escolheu o sítio da sua sepultura e a
configuração do túmulo. Foi o primeiro soberano português que dispôs duma
escultura – a representá-lo – jacente sobre a tampa do sarcófago; e foi o
primeiro português (e a primeira personalidade laica no mundo) a quem o Papa autorizou a colocação dentro duma
igreja e não em espaço anexo. Na verdade, o fim do rei lavrador condiz com o
que foi em vida. E, a este respeito, Giulia Rossi Vairo, investigadora da
Universidade Nova de Lisboa (autora de tese que encara o monarca e a esposa, a
rainha Santa, a partir da arte tumulária a eles associada), diz:
“Dom Dinis não é um rei qualquer, é um dos
mais importantes da história de Portugal e uma personalidade fascinante por
variadíssimos motivos com um percurso cheio de revoluções, de primeiras vezes”.
(D. Dinis de Portugal e Isabel de
Aragão in vita e in morte. Criação e
transmissão da memória no contexto histórico e artístico europeu).
As aludidas revoluções
“passam pela administração do território, pela agricultura e pela construção
naval, pela educação e pela cultura”, e culminam no túmulo que ocupou lugar de
destaque a meio da igreja do Mosteiro, entre a capela-mor e o coro das monjas
de clausura.
Aquela
localização tumular foi inovadora, mas, segundo a investigadora, o rei e a
rainha quiseram “determinar que imagem sua ficaria para a eternidade”, o que
era “muito moderno para a época”, sendo estes “os primeiros reis portugueses a
fazê-lo”. Além disso, frisa que foi Dom Dinis (1261-1325) quem erigiu este mosteiro cisterciense (entre
1295-1305) na obediência à casa-mãe de Alcobaça,
onde até aí se sepultavam os reis e sua descendência (com exceção
de Afonso Henriques e Sancho I, que repousa, em Santa Cruz de Coimbra), e que foi ele que, por um breve lapso de tempo, o
transformou num panteão régio.
No seu
primeiro testamento, o de 1318, Dom Dinis determinou que o Mosteiro de Odivelas
deveria receber o seu túmulo e o da esposa. Mas, em documento redigido quatro
anos mais tarde, mudou de ideias, provavelmente devido à guerra civil que opôs
o rei ao filho Afonso, que temia ver o pai nomear como sucessor o seu
meio-irmão, Afonso Sanches, filho bastardo do soberano e certamente o seu
predileto (trovador como o pai), e ao
facto de a rainha estar longe de ser a figura que viria a promover a
reconciliação entre o rei e o herdeiro real.
Segundo a
historiadora italiana, “o casal zanga-se, a guerra separa-os, e nem mesmo a
ligação emocional e até financeira que têm a Odivelas resolve as coisas”, “até
o Papa lhes pede que se reconciliem porque a desunião do casal era a desunião
da coroa”, o que podia ser perigoso, e pede que “Isabel reconcilie pai e filho,
o que acaba por fazer”.
Rossi Vairo
não sabe se foi o rei se a rainha quem determinou ficar sozinho por toda a
eternidade, embora cronologicamente essa decisão pareça ter cabido ao rei, que morreu
primeiro, e seja provável que a rainha tivesse conhecimento da decisão do rei.
E foi Isabel de Aragão que depois escolheu o mosteiro de Santa Clara, em
Coimbra, e aprovou o túmulo que para si foi construído. Era “uma mulher de
personalidade forte, com dinheiro e influência em Portugal e não só. Ela também
não é uma rainha qualquer.”.
No último
dos seus três testamentos, Dom Dinis exigiu que o túmulo ficasse no centro da
igreja, entre a nave central e a capela-mor, um lugar de destaque onde a
comunidade pudesse rezar pela sua alma e recordasse a memória do rei até à
eternidade.
É este
túmulo, gravemente danificado pelo terramoto de 1755 (a abóbada da
igreja abateu-se sobre ele), que a
DGPC (Direcção-Geral
do Património Cultural) e a Câmara
Municipal de Odivelas intentam restaurar, já que foi sujeito a inúmeras
intervenções em moldes discutíveis, entre as quais se incluem as mais
abrangentes: em meados do século XIX, por ordem da rainha Dona Estefânia; e a
dos anos 1960, pela DGMN (Direção-Geral dos Monumentos Nacionais). Após anos de incúriae esquecimento, as entidades competentes
juntam-se para dar renovada dignidade ao túmulo do 6.º rei, que, durante quase
meio século, “consolidou as fronteiras, revolucionou a agricultura”,
incrementou “a exploração mineira, impulsionou o comércio, fundou a
universidade, travou uma guerra civil (1319-1324) e ainda escreveu poesia, sendo compositor de dezenas
de cantigas de amor e de amigo – uma referência das letras trovadorescas no
reino e fora dele.
O seu monumental
sarcófago passou a ocupar uma capela lateral do mosteiro (à esquerda
do altar-mor), que é
monumento nacional desde 1910 e está entregue ao Ministério da Defesa Nacional (segundo a
DGPC, a autarquia espera resposta ao pedido para que o edifício passe para a
sua guarda).
Para já e
até fins de dezembro, os trabalhos da 1.ª
fase concentram-se na limpeza do sarcófago.
Maria
Antónia Tinturé, técnica de conservação e restauro da DGPC, apontando para a
argamassa que cola o tampo à base, que não estava lá nas fotografias dos anos
1960, diz que “estava muito sujo” e que, “sem retirar as camadas de sujidade, é
impossível perceber a própria estrutura do túmulo, distinguir o que é original
do que é dos restauros dos séculos XIX e XX”.
Crendo serem
desta época os acrescentos em cimento e ferro e a fina camada acinzentada que
cobria todo o conjunto, supõe tratar-se duma “espécie de véu” posto para dar “unidade
ao conjunto”, sendo ainda visíveis alguns vestígios da policromia, que pode ou
não ser do original. Entretanto, o Instituto Politécnico de Tomar estudará
amostras da pedra e da tinta usada para decorar o sarcófago para que se possa
determinar a sua idade.
Apesar de
tudo, não há intenção de retirar o que o tempo lhe foi acrescentando, por mais
despropositado que hoje pareça, pois as técnicas de conservação regem-se por
uma cartilha de intervenção que, evitando as reconstituições, “deixa bem
visíveis quaisquer alterações ao original”. A exceção a essa permanência,
segundo Tinturé, é quando ameaçam a integridade do original, o que aqui não
acontece. João Seabra Gomes, outro dos técnicos da DGPC, assegura:
“Hoje
sabemos que a intervenção deve ser mínima, que devemos manter lacunas e
omissões, que não deve haver qualquer especulação. No passado não era assim,
mas os restauros do passado também fazem parte da história e, por isso, devem
ficar.”
***
Não se sabe
como era o túmulo antes do terramoto e, embora alguns defendam que lhe falta
nas mãos a espada, comum nas estátuas jacentes dos reis europeus da Idade
Média, outros levantam a hipótese de ela nunca ter existido. Por outro lado,
questiona-se por que razão a cabeça do rei é tão desproporcional face ao resto
do corpo e porque segura ele um pedaço do manto, num gesto tipicamente
feminino. Depois, pergunta-se se o túmulo foi construído em calcário colorido
ou se veio a ser pintado no grande restauro do século XIX.
Reunida e
tratada a informação do levantamento em curso, começará a 2.ª fase dos
trabalhos.
A
intervenção deverá estender-se ao outro túmulo do mosteiro, que pertencerá a um
dos netos de Dom Dinis (durante muito tempo cria-se que nele jazia uma das
suas duas filhas bastardas – ao todo o rei teve 7 filhos ilegítimos –, mas hoje
as teses andam entre os netos João e Dinis, infantes que terão morrido com
cerca de um ano). E
persiste a possibilidade de os restos mortais do rei serem estudados durante o
processo, embora não haja ainda qualquer projeto nesse sentido.
O Túmulo de Dom Dinis não é
atribuído a nenhum artista ou oficina específicos. A estética permite-nos
apenas especular a influência da arte tumular francesa na escolha do seu autor.
***
Filho de D. Afonso III e Dona Beatriz de Castela, Dom Dinis pontificou os destinos de “Portugal e do Algarve” durante 46 anos, entre fevereiro de 1279 e janeiro de 1325, comummente associado ao restabelecimento de relações com a Santa Sé, ao desenvolvimento da marinha e da agricultura. São-lhe atribuídos os louros pela consolidação do poder nas comarcas e no território nacional e por uma estabilidade monárquica pouco comum na Europa de então. Foi um rei marcadamente diplomático na ação voltada para outros reinos no Mediterrâneo, com fulcral relevância no xadrez político. O “Rei Poeta” afirmou-se como homem da cultura, das artes, da poesia e incrementou a literatura e a tradução de obras para português. Foi graças a si que ficou assinado o primeiro estatuto de universidade em Portugal, pela Magna Charta Privilegiorum.
Filho de D. Afonso III e Dona Beatriz de Castela, Dom Dinis pontificou os destinos de “Portugal e do Algarve” durante 46 anos, entre fevereiro de 1279 e janeiro de 1325, comummente associado ao restabelecimento de relações com a Santa Sé, ao desenvolvimento da marinha e da agricultura. São-lhe atribuídos os louros pela consolidação do poder nas comarcas e no território nacional e por uma estabilidade monárquica pouco comum na Europa de então. Foi um rei marcadamente diplomático na ação voltada para outros reinos no Mediterrâneo, com fulcral relevância no xadrez político. O “Rei Poeta” afirmou-se como homem da cultura, das artes, da poesia e incrementou a literatura e a tradução de obras para português. Foi graças a si que ficou assinado o primeiro estatuto de universidade em Portugal, pela Magna Charta Privilegiorum.
Porém, a representação tumular da imagem do 6.º rei português foi
totalmente adulterada
aquando do restauro do século XIX, por um lado, pela utilização de gesso em
contacto com o ferro, o que levou à oxidação, e, por outro, pela reconstrução
da imagem real, longe de qualquer rigor histórico e num puro exercício de invenção.
Traje, cabelo e barba são reconstituídos à imagem régia de oitocentos, não há
símbolos associados às esculturas régias, como a espada e as esporas ou outras
insígnias do rei; e a coroa é anacronicamente caraterística do século
XIX.
Assim, sobre
as operações de restauro, o vereador da cultura do município de Odivelas,
refere:
“Hoje, a fazer-se o restauro, ter-se-ia de perceber o que é o original e o
que é do século XIX. E depois tomar uma decisão. Muitos conservadores defendem
que mais vale ficar uma coisa imperfeita, mas respeitando a primeira versão, do
que fazer uma reconstrução. É preciso perceber o que é original e o que é
gesso. Mas isso é uma decisão que não nos cabe a nós”.
A
coordenadora do setor do Património Cultural da Câmara pormenoriza a explicação
do vereador Edgar Valles, lembrando que foi o próprio rei que projetou a sua
representação futura:
“Quando mandou fazer a sua estátua jacente, o rei nunca se deixaria
representar sem ser com a sua espada e com as esporas, como outros reis
ibéricos. Aqui nesta recuperação, tudo desapareceu. A mão aparece a segurar o
manto do rei, uma posição mais feminina. Só com um estudo prévio é que temos
alguma garantia de que se tratou de uma invenção do século XIX. A tutela terá
de tomar essa decisão e perceber se se pretende manter a reconstrução errada ou
fazer um novo restauro. Mas aqui há outro problema, não podemos inventar o que
não sabemos como era”.
André Varela
Remígio, especialista em conservação e escultura em talha dourada, embora nunca
tenha trabalhado o túmulo de Dom Dinis, conhece o caso e adverte:
“O estado atual do túmulo é mau, muito mau. Tanto têm problemas o original
como as matérias novas adicionadas. Olhando para o túmulo, vemos que faltam
partes, existem fraturas e fissuras, para além da sujidade imensa. Existem
fragmentos dispersos que se podem perder”.
Todavia entende
que, enquanto representações de figuras cimeiras da História, o tratamento de
túmulos como este é “quase uma obrigação nacional”, uma retribuição pelo legado
deixado por estas personagens. Mas reconhece as dificuldades que poderão
ser encontradas na eventualidade do restauro:
“É um caso muito complicado em termos técnicos. Há efetivamente uma grande
parte de matéria nova que está a sobrepor-se à pedra original. Claro que não
podemos censurar o restauro do século XIX. Foi feito de acordo com as ideias de
então. Mas mais vale termos pouco original do que termos um puzzle,
com várias matérias que deturpam a leitura. É complicado, só depois da
desmontagem se pode tomar uma decisão e procurar um equilíbrio”.
***
A incúria e
o esquecimento em relação ao túmulo a que se alude acima devem-se à diversidade
de entidades que têm a responsabilidade do mosteiro e ao facto de o mosteiro –
e obviamente o túmulo – ficar num sítio isolado e sob a alçada do MDN (Ministério
da Defesa Nacional). Por outro
lado, não podem esquecer-se as consequências da extinção das ordens religiosas
em 1834 e, no caso das ordens femininas, a manutenção até ao óbito da última
freira, o que redundou na dificuldade de manutenção pela ausência de recursos.
O mosteiro
foi classificado como monumento nacional em 1910 (ficando sob
a alçada da DGMN, agora da DGPC), mas lá
funcionava o Instituto de Odivelas (da responsabilidade do MDN), criado em 1900, pelo infante Dom Afonso, irmão do
rei Dom Carlos, que fechou portas no ano passado, com as alunas a serem
transferidas para o Colégio Militar, em Benfica. E a Câmara Municipal quer ficar
com a gestão do imóvel, pois não quer que este excelente património caia nas
mãos de privados ou acabe por ser usado para outros fins que não fins públicos.
***
Sobre o
futuro do túmulo e as condições do restauro e conservação de obras desta
natureza, estão em confronto correntes de pensamento distintas. Assim, o esteta
Eugène Viollet-le-Duc defende a busca pela perfeição formal em termos estéticos
puros, desconsiderando os aspetos históricos. O historiador John Ruskin bate-se
pela intocabilidade do monumento degradado, onde a intervenção deve ser mínima
e de cariz apenas preventivo, pois também o monumento tem uma hora para a sua
morte digna.
Entre as
duas teorias, o crítico e historiador Cesare Brandi defende uma intervenção que
tenha em conta o significado histórico do objeto e o estado físico em que se
encontra. E Valdirene do Carmo Ambiel entende que esta teoria defende que o
restauro “não pode depender do gosto particular do restaurador” e deve deixar
os acréscimos e intervenções facilmente reconhecíveis.
Ora, ao longo dos séculos, o túmulo dionisíaco não teve a melhor sorte. Foi destruído, adulterado e sobretudo esquecido.
Ora, ao longo dos séculos, o túmulo dionisíaco não teve a melhor sorte. Foi destruído, adulterado e sobretudo esquecido.
Afinal, qual
será a melhor forma de intervir e garantir a conservação deste túmulo,
respeitando a obra original? Para Carla Varela Fernandes é “a pergunta de um
milhão de dólares”, mas aventa uma hipótese, mais próxima do que é sustentado
pelo crítico italiano e a juízo de “um grupo muito sério de conservadores”:
“Seria excelente que se pudesse reconstruir o túmulo com materiais mais
novos e menos perecíveis, que pudessem devolver alguma dignidade à figura de
Dom Dinis. Mas, é claro, mostrando sempre o que é novo e o que é da peça
original”.
O vereador Edgar
Valles, que incentiva o restauro e a conservação nas melhores condições,
identifica o túmulo e o mosteiro que o encerra como o “ex-libris do
concelho de Odivelas”, pois “trata-se de um mosteiro do século XIII, com um rei
de Portugal da I Dinastia. Isso é algo que não pode ser esquecido e de que
muito nos orgulhamos”.
***
Parece
que, além do restauro e conservação destas peças monumentais, será útil aproveitar
o ensejo para o estudo osteológico e similares das figuras históricas cujos
restos mortais ali se encontram. No caso vertente, era saber se a cabeça desproporcional
da estátua jacente se deve a uma razão de simbologia ou se a outra – o que
poderia constituir um interessante contributo para a história das mentalidades
ou para a perceção das caraterísticas somáticas.
2016.12.14 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário