sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Francisco não se resigna ao comedimento estando em causa a verdade

O Papa Francisco abordou vários temas em entrevista concedida ao semanário católico belga “Tertio”, na edição do passado dia 7 deste mês de dezembro. Abordando vários temas como os frutos do Jubileu da Misericórdia, a laicidade, os desafios para os jovens, para os sacerdotes e para a Europa, parece que o setor em que o Pontífice se revela mais contundente é o da Comunicação Social, quer do lado da produção, quer do lado do consumo.
Parte substancial da entrevista é dedicada ao Jubileu da Misericórdia e nela se confessa que a ideia não surgiu de súbito, mas se inspirou de modo especial na ação de Paulo VI e de João Paulo II. A convocação de um Ano Santo extraordinário nasceu duma conversa com Dom Rino Fisichella, Presidente do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização – um dicastério criado por Bento XVI. Diz o líder a Igreja Católica que foi uma ideia que veio do “alto”, acreditando que “o Senhor a inspirou”, que resultou num evento que “evidentemente foi muito bem”. Sublinha que “criou muito movimento” pelo facto de se ter realizado em todo o mundo, e não só em Roma. E compraz-se em que “tantas pessoas se sentiram chamadas a se reconciliarem com Deus, a sentirem o carinho do Pai”.
Outro tema desenvolvido foi o da sinodalidade, em que Francisco recorda que a Igreja nasce da comunidade, da base. Duma Igreja piramidal, onde se faz o que diz Pedro, deve passar-se a uma Igreja mais sinodal, em que Pedro é Pedro, mas acompanha a Igreja. E, a este respeito, o Pontífice realça que “a experiência mais rica disso tudo foram os últimos dois Sínodos”. Na sua ótica, “é interessante a riqueza da variedade de tons, que é própria da Igreja” e é a expressão viva da “unidade na diversidade”. Nos Sínodos, cada um disse o que pensava “sem medo de se sentir julgado”, “todos tinham a atitude de escuta, sem condenar”. Era a discussão de “irmãos”. “Houve uma liberdade de expressão muito grande”, o que “é belo”. Francisco defende que “Pedro garante a unidade da Igreja”, mas é preciso “progredir na sinodalidade”.
Noutro registo, o Papa, evocando a experiência da JMJ de Cracóvia, afoitou os jovens a que não tenham vergonha da fé, que busquem novos caminhos e “não se aposentem aos 20 anos.”
Aos sacerdotes pede que amem sempre Nossa Senhora, que jamais se sintam órfãos, que se deixem guiar por Jesus e busquem a sua carne sofredora nos irmãos. E, em contraponto ao que exigia outrora – o pastoreio com o odor das ovelhas –, exortou:
“Não tenhais vergonha da ternura. Hoje necessita-se de uma revolução da ternura neste mundo que sofre de cardiosclerose”.
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Ao observar que um Estado laico é melhor do que um Estado confessional (que gera dependências e faz controlo excessivo) e ao advertir que não é saudável o laicismo que “fecha as portas à transcendência”, qual pretensa “herança que o Iluminismo nos deixou”, o Papa faz a destrinça entre a verdadeira secularidade ou laicidade positiva, como dizia Bento XVI, e o laicismo convencional fundamentalista e exclusivista. Na verdade, a autonomia das realidades terrestres, preconizada sobretudo a partir do Concílio Vaticano II, compraz-se com a realidade do Estado separado das Igrejas, um Estado laico, não confessional. Mas esse estatuto de Estado não pode aprisionar nas suas malhas os cidadãos e as instituições da sociedade. E isso era o que teorizava e praticava o Estado laico fundamentalista, também despótico e excludente. Sob a capa da secularidade, aconfessionalidade, liberdade e igualdade, virava as costas às religiões, criava instituições concorrentes e perseguia os desalinhados da nomenclatura estabelecida ou a estabelecer, atirando para longe a fraternidade. Pretendia, no seu secularismo rígido, que os cidadãos respondessem exclusivamente perante o Estado a todos os níveis: ético, político, social e até religioso (!). De ideias positivistas, difundia o indiferentismo, o materialismo e o antiteísmo, embora tolerasse a religião pensada e exercida em privado, mas arredada dos espaços públicos.
Para Francisco, é preciso purificar o laicismo do fechamento à transcendência já que a abertura à transcendência faz parte da essência humana, e quando um sistema político ignora esta dimensão, descarta a pessoa humana. Ora, o Estado verdadeiramente laico não é confessional, mas não impede nem dificulta as confessionalidades dos cidadãos e das suas organizações. Pelo contrário, dá-lhes espaço e capacidade de movimentação e coopera com os seus meios, que resultam da carteira do somatório dos cidadãos. Aceita a cooperação oferecida de boa vontade por todas outras instituições e convida-as a todas à cooperação em causas comuns. É na aceitação da transcendência que se ultrapassa a autossuficiência do homem, asfixiante, irresponsável e demolidora da própria liberdade, predadora da dignidade humana.   
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Em resposta a uma questão sobre as guerras e o fundamentalismo religioso, Bergoglio sustenta que “nenhuma religião como tal pode fomentar a guerra”, porque estaria, nesse caso, “proclamando um deus de destruição, um deus de ódio”. Assegurando que, além de não se poder invocar o Santo nome de Deus em vão, também não se pode invocá-lo de modo blasfemo, declara que “não se pode fazer a guerra em nome de Deus”, “em nome de nenhuma religião”. Por isso, no discurso papal, “o terrorismo e a guerra não se relacionam com a religião”. Sucede, porém, que “usam deformações religiosas para justificá-las”. Em todo o caso, o Pontífice argentino reconhece que “todas as religiões têm grupos fundamentalistas”, incluindo a católica, e conclui que esses pequenos grupos “adoeceram a própria religião” e “dividem a comunidade, o que é uma forma de guerra”.
Aludindo à Europa, ressalta que, passados 100 anos da I Guerra Mundial, “estamos sempre num estado de conflito mundial, em pedaços”. Clamamos “nunca mais a guerra”, mas em paralelo, fabricamos armas e as vendemos para quem combate em nome dos interesses dos fabricantes. E o preço deste negócio é muito alto: o sangue humano. A este propósito, de acordo com a transcrição literal da entrevista divulgada pelo Vaticano, o Papa explicitou:
Há uma teoria económica que nunca procurei confirmar, mas que li em vários livros: na história da humanidade quando um Estado percebia que os seus balanços não avançavam, fazia uma guerra e equilibrava as contas. Ou seja, é uma das formas mais fáceis de enriquecer. Claro que o preço é muito elevado: sangue.”.
Mais: o Papa observa a atual falta de verdadeiros líderes na Europa, como Schumann, De Gasperi e Adenauer, que lutaram contra a guerra. Sobre os pais fundadores da UE diz:
Esse 'nunca mais a guerra' penso que é algo que a Europa disse sinceramente. [Robert] Schumann, [Alcide] De Gasperi, [Konrad] Adenauer [fundadores da UE] disseram-no sinceramente. Mas depois... Hoje em dia, faltam líderes. A Europa precisa de líderes, líderes que avancem.”.
Porem, considerou que “esse ‘nunca mais a guerra’ não foi levado a sério”:
Depois da Segunda Guerra Mundial, temos esta terceira que vivemos agora aos bocados. Estamos em guerra. O mundo está a fazer a terceira guerra mundial: Ucrânia, Médio Oriente, África, Iémen...”.
E garantiu: “A Europa necessita de líderes, líderes que olhem para frente”.
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O Papa faz também uma reflexão sobre os meios de comunicação, acentuando que “têm uma responsabilidade muito grande”, pois podem formar “uma boa ou uma má opinião”, “podem construir”, “fazem um bem imenso”. Contudo, dada a “tentação da calúnia” (entre outras), podem fazer danos a “sujar as pessoas” e a difamá-las. A desinformação é, no discurso papal, o maior mal que os meios de comunicação social podem fazer, “porque orientam a opinião pública numa direção”, eclipsando “a outra parte da verdade”. E ninguém tem o direito de fazer isto, é um pecado e é perigoso – diz Francisco, que pede transparência e limpidez na cobertura mediática, sem cair na “doença da coprofilia” (afeição sexual por fezes), isto é, comunicar o escândalo, “coisas ruins”, porque assim podem provocar danos.
A doença da coprofilia jornalística e publicitária resulta da necessidade mórbida da venda de papel ou da captação de audiências, para o que tudo vale, sobretudo o mórbido, violento, o sensual e o comerciável. Por um lado, a coprofilia responde à tendência coletiva da coprofagia (alimentação de fezes); por outro lado, provoca-a e nutre-a.
O Papa argentino, de 79 anos, não se conteve nas palavras, justamente porque lidera um Estado em que a peregrina compra de informação quis desacreditar o Vaticano e a Igreja Católica e, sobretudo, porque sabe do que se passa no mundo do jornalismo que muitas vezes imerge no lodaçal, como se viu recentemente na campanha referendaria no Reino Unido e eleitoral nos EUA.
E nós, aqui em Portugal, bem notamos como se comportam os nossos Meios de Comunicação Social, cada vez mais concentrados na mão de poucos: ou apresentam as notícias de forma repetitiva, mórbida e extremamente longa e detalhada; ou procuram escândalo real ou presumido, julgando na praça pública; ou dizem todos o mesmo; ou se alinham com o poder político; ou se alinham com os interesses económicos e financeiros. E o múnus da informação objetiva e isenta fica adiado.
E a comunicação devia constituir um mecanismo sadio de aproximação, personalização e socialização para tornar a grande aldeia humana mais vizinha, justa, solidária e fraterna.

2016.12.09 – Louro de Carvalho

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