quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Em Petiz, poema de Cesário Verde

Para quem pensa que o leite se fabrica no pacote/garrafa ou que a vaca surge no talho:
De Tarde

Mais morta do que viva, a minha companheira
Nem força teve em si para soltar um grito;
E eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito,
Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!

Em meio de arvoredo, azenhas e ruínas,
Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;
E tetas a abanar, as mães, de largas ancas,
Desciam mais atrás, malhadas e turinas.

Do seio do lugar – casitas com postigos –
Vem-nos o leite. Mas batizam-mo primeiro.
Leva-o de madrugada, em bilhas, o leiteiro,
Cujo pregão vos tira ao vosso sono, amigos!

Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:
Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos!
E os fartos animais, ao recolher dos pastos,
Roçavam pelo teu “costume de percale”.

Já não receias tu essa vaquita preta,
Que eu segurei, prendi, por um chavelho? Juro
Que estavas a tremer, cosida com o muro,
Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!
                         Cesário Verde

***
Conspecto geral
O título remete-nos para a evocação dum passeio pelo campo quando o poeta era mais pequeno, “em petiz”. E a leitura do texto poético permite dizer que o episódio gravita em torno de um “nós”, que se desdobra no sujeito poético e na sua acompanhante.
Trata-se duma composição poética que nos traz à memória a descrição do ocorrido numa tarde passada no campo onde o emissor lírico se autocarateriza como valente em contraponto ao medo contrastante da sua companheira naquele passeio em tempos idos (“nesse tempo”).
O texto compagina uma estrutura narrativa, formalmente de regularidade métrica (verso alexandrino), estrófica (cinco quadras) e rimática (rima emparelhada e interpolada; sempre grave e consoante), a evocar pormenores da vida campestre e a contar um episódio da vida infantil protagonizado por: rapariguita com medo do animal (“estavas a tremer, cosida com o muro,”); e o rapaz armado em forte a protegê-la (“eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito, / Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!”).
Análise mais pormenorizada
Em vez de iniciar pela localização espácio-temporal, como é habitual no texto narrativo, o poeta-narrador começa por apresentar a personagem que com ele contracena, a pequenita de infância que lhe fazia companhia: “a minha companheira”. E a primeira impressão que nos deixa é de abatimento: “mais morta do que viva”. Ligado pelo conector aditivo “e”, vem, logo a seguir, o segmento referente ao narrador-personagem (atente-se no discurso de 1.ª pessoa: eu servi), que vem caraterizado como “um destro e bravo rapazito” e, logo, a comparação “como um homenzarrão”. É de notar, nesta caraterização das personagens, a polarização positiva revelada, num primeiro tempo, pela dupla adjetivação de valor conjetural “destro e bravo” e pelo diminutivo e, num segundo tempo, pelo aumentativo “homenzarrão” (um corpo forte e hábil em contraste com o tamanho de petiz).
O tempo é evocado de forma muito vaga “nesse tempo”, mas pressupõe-se, pela expressão “destro e bravo rapazito”, tratar-se do tempo da infância. E a ação é enunciada de forma lapidar: “servi-lhe de barreira”.
Na segunda estrofe e na terceira, inverte-se a centralização discursiva, dando-se ênfase, não aos protagonistas, mas aos elementos externos: caraterizam-se as bezerrinhas e as vacas; faz-se referência ao leite, recurso que estes animais fornecem; identificam-se elementos ambientais: arvoredo com azenhas e ruínas no meio e casitas com postigos.   
O ambiente, cuja descrição começa na segunda quadra, é bucólico, de aldeia: casas, postigos, vacas, bezerrinhas... E há movimento, sons e cor, ancas e tetas a abanar. São elementos a remeter para o realismo pictórico e dinâmico. Veja-se o contraste entre as “bezerrinhas”, no diminutivo, e o segmento morfossintático de nomes no grau normal, mas semanticamente a apontar para o aumentativo: as mães de tetas abanar e de ancas largas (vacas grandes) contrapõem-se às filhas menos corpulentas. Porém, não faltam os aspetos sociais: venda do leite misturado com água (“Vem-nos o leite. Mas batizam-no primeiro”); a moda do estrangeirismo expressa no empréstimo “costume de percale”.
Nas duas últimas estrofes, voltamos à tessitura da primeira, ou seja, o discurso volta a centrar-se no “nós”, retomando o contraste entre as duas personagens em torno das quais se desenvolve o episódio. E, em particular, na última quadra, o poeta assinala, num discurso de relação eu-tu, a mudança operada na companheira: como o tempo é outro, ganhou-se maturidade, “já não receias tu essa vaquita preta”. E não perde a ocasião de referir detalhes da ação enunciada, antes, de forma sucinta: “eu segurei, prendi, por um chavelho”. E retoma a caraterização da companheira adequada ao momento por ela vivido: “a tremer, cosida com o muro, ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta”.
É notória a bipolaridade e a solidariedade entre as duas personagens, mas também a bipolaridade entre o presente e o passado, sendo que esta leva à estruturação da composição em dois tempos distintos: o momento em que o “eu” recorda o passeio prende-se ao presente; mas o passeio ocorreu no passado, quando o sujeito poético era “um destro e bravo rapazito” (v. 3).
Como o “eu”, a “companheira” também é amplamente caraterizada. Esta figura feminina é retratada como elegante e burguesa (“teu “costume de percale” – v. 16), magra e com óculos (“E fina, de luneta” – v 20). É um retrato identificador duma personagem urbana da época, que serve para marcar a dicotomia ou dialética entre a cidade e o campo. Enquanto o rapazito rural tem domínio sobre os elementos campesinos, agindo “como um homenzarrão” (veja-se o poder do aumentativo), a menina da cidade sente-se insegura e tímida. Também para conseguir a expressão desta lógica, Cesário lança mão de recursos expressivos. É utilizada a hipérbole e comparação “Mais morta do que viva” (v.1), no início, e a metáfora e imagem “cosida com o muro” (v. 19), para mostrar o medo da companheira – que parece ensanduichar o poema.
Em função da mostra de capacidade do elemento masculino e da sua adaptação ao ambiente rural, usa-se também a metáfora e o aumentativo, “como um homenzarrão” (v. 4), a antítese “rapazito” (v.3) e “homenzarrão” (v.4); o jogo antitético do diminutivo e do aumentativo (vd vv. 3 e 4); mostra-se um indivíduo convencido e orgulhoso: “um destro e bravo rapazito,/Como um homenzarrão servi-lhe de barreira” (vv. 3-4); e aplica-se-lhe a reiteração gradação: “segurei, prendi” (v. 18). Porém, as duas personagens irmanam-se no “nós” (enálage de pessoa), “Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale” (v. 13) e encontram, em enumeração, “Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos” (v. 14). E sobretudo, encontram “os fartos animais, ao recolher dos pastos” (note-se o infinitivo substantivado ou nominalizado – v. 15), sem os quais não se daria o incidente. Veja-se o poder da sensação táctil, “Roçam pelo teu costume de percale” (v. 16).
Sensivelmente a meio do poema, há um discurso direcionado, de forma apostrófica (note-se o vocativo” amigos” com a exclamação), aos camponeses a quem o pregão do leiteiro tira o sono.
“… estavas a tremer, cosida com o muro, / Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!”. Nesta imagem, a “companheira”, no presente da recordação, é interpelada pelo poeta no sentido de ainda recear a “vaquita preta” (atente-se no demonstrativo “essa”, de distância em relação ao emissor e de proximidade em relação ao recetor), que foi agarrada pelos chifres pelo petiz, evidenciando a dualidade entre a destreza da personagem masculina e o medo da personagem feminina. Por outro lado, o discurso remete-nos para a distância entre o acontecimento no passado de infância de ambos e o presente.
Verifica-se, a imagem, de que se falou há pouco, em vários versos o uso de inúmeros recursos expressivos que suscitam a dúvida e o ceticismo quanto ao impacto e às consequências do incidente na figura feminina, ainda criança. Esta dúvida percebe-se na interrogação retórica “Já não receias tu essa vaquita preta, / Que eu segurei, prendi, por um chavelho?” (vv. 17-18) – com que se pretende enfatizar e gerar expectativa através da interpelação. Depois, vem a anástrofe (“já não receias tu…” – v. 17), invertendo a ordem normal das palavras para relevar o pensamento. São notórios recursos como: a expressividade do diminutivo, “vaquita” (v. 17), como em cima “rapazito” (v. 3) e bezerrinhas (v. 6); a metáfora e imagem “cosida contra o muro” (v. 19); a adjetivação “medrosa”, “fina” (v. 20); e a exclamação “Juro…luneta!” (vv. 18-20).
A técnica narrativa faz passar, no poema, da frase declarativa à frase exclamativa para, como vimos, interpelar os camponeses e para valorizar a destreza do narrador poeta (na 1.ª estrofe), sublinhar o aspeto bucólico do passeio pelo vale (4.ª estrofe) e para caraterizar a companheira em momento tão dramático como o evocado na última estrofe.
Este episódio passado ocorreu num campo aberto, um “vale”, mostrando o poema referências típicas da construção duma paisagem campesina: por perto, “arvoredo”, “fonte”, “pastos”, “azenhas e ruínas”; ao longe, “várzeas, povoações, pegos”. É ainda referida uma povoação de “casitas com postigos”, onde vivem os camponeses. Ressalta a paz vivida neste espaço rural manifesta nos “silêncios vastos”, espraiada pela extensão campestre ao contrário do ruído citadino em espaço limitado, a que as personagens em causa estão habituadas a viver e a sentir.
Em suma,
O poema desenvolve uma temática campesina, transtemporal, de atual incidência social mordaz; patenteia uma estrutura narrativa e ambulatória; mostra o lado solidário do poeta para com a figura feminina franzina; e capta com precisão um instantâneo da vida campestre que ele presenciou e em que teve uma intervenção decisiva e que dava para uma aguarela, como ele refere a propósito de outro poema. É o predileto olhar campestre de Cesário, contrastante com o citadino!
2016.12.14 – Louro de Carvalho


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