Para
quem pensa que o leite se fabrica no pacote/garrafa ou que a vaca surge no
talho:
De Tarde
Mais morta do que viva, a minha companheira
Nem força teve em si para soltar um grito;
E eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito,
Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!
Em meio de arvoredo, azenhas e ruínas,
Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;
E tetas a abanar, as mães, de largas ancas,
Desciam mais atrás, malhadas e turinas.
Do seio do lugar – casitas com postigos –
Vem-nos o leite. Mas batizam-mo primeiro.
Leva-o de madrugada, em bilhas, o leiteiro,
Cujo pregão vos tira ao vosso sono,
amigos!
Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:
Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos!
E os fartos animais, ao recolher dos pastos,
Roçavam pelo teu “costume de percale”.
Já não receias tu essa vaquita preta,
Que eu segurei, prendi, por um chavelho? Juro
Que estavas a tremer, cosida com o muro,
Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!
Cesário Verde
***
Conspecto geral
O título remete-nos para
a evocação dum passeio pelo campo quando o poeta era mais pequeno, “em petiz”.
E a leitura do texto poético permite dizer que o episódio gravita em torno de
um “nós”, que se desdobra no sujeito poético e na sua acompanhante.
Trata-se duma composição
poética que nos traz à memória a descrição do ocorrido numa tarde passada no
campo onde o emissor lírico se autocarateriza como valente em contraponto ao
medo contrastante da sua companheira naquele passeio em tempos idos (“nesse tempo”).
O
texto compagina uma
estrutura narrativa, formalmente de regularidade métrica (verso alexandrino), estrófica (cinco quadras) e rimática (rima emparelhada e interpolada; sempre
grave e consoante), a
evocar pormenores da vida campestre e a contar um episódio da vida infantil
protagonizado por: rapariguita com medo do animal (“estavas a tremer, cosida com o
muro,”); e o rapaz
armado em forte a protegê-la (“eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito, / Como um homenzarrão
servi-lhe de barreira!”).
Análise mais
pormenorizada
Em vez de iniciar pela
localização espácio-temporal, como é habitual no texto narrativo, o poeta-narrador
começa por apresentar a personagem que com ele contracena, a pequenita de
infância que lhe fazia companhia: “a minha companheira”. E a primeira impressão
que nos deixa é de abatimento: “mais morta do que viva”. Ligado pelo conector
aditivo “e”, vem, logo a seguir, o segmento referente ao narrador-personagem (atente-se no discurso de 1.ª pessoa: eu servi), que vem caraterizado como “um destro e bravo
rapazito” e, logo, a comparação “como um homenzarrão”. É de notar, nesta caraterização
das personagens, a polarização positiva revelada, num primeiro tempo, pela
dupla adjetivação de valor conjetural “destro e bravo” e pelo diminutivo e, num
segundo tempo, pelo aumentativo “homenzarrão” (um corpo forte e hábil em contraste com o tamanho de
petiz).
O tempo é evocado de
forma muito vaga “nesse tempo”, mas pressupõe-se, pela expressão “destro e
bravo rapazito”, tratar-se do tempo da infância. E a ação é enunciada de forma
lapidar: “servi-lhe de barreira”.
Na segunda estrofe e na
terceira, inverte-se a centralização discursiva, dando-se ênfase, não aos
protagonistas, mas aos elementos externos: caraterizam-se as bezerrinhas e as
vacas; faz-se referência ao leite, recurso que estes animais fornecem;
identificam-se elementos ambientais: arvoredo com azenhas e ruínas no meio e
casitas com postigos.
O ambiente, cuja
descrição começa na segunda quadra, é bucólico, de aldeia: casas, postigos,
vacas, bezerrinhas... E há movimento, sons e cor, ancas e tetas a abanar. São
elementos a remeter para o realismo pictórico e dinâmico. Veja-se o contraste
entre as “bezerrinhas”, no diminutivo, e o segmento morfossintático de nomes no
grau normal, mas semanticamente a apontar para o aumentativo: as mães de tetas
abanar e de ancas largas (vacas
grandes) contrapõem-se
às filhas menos corpulentas. Porém, não faltam os aspetos sociais: venda do
leite misturado com água (“Vem-nos
o leite. Mas batizam-no primeiro”); a moda do estrangeirismo expressa no empréstimo “costume
de percale”.
Nas duas últimas
estrofes, voltamos à tessitura da primeira, ou seja, o discurso volta a
centrar-se no “nós”, retomando o contraste entre as duas personagens em torno
das quais se desenvolve o episódio. E, em particular, na última quadra, o poeta
assinala, num discurso de relação eu-tu, a mudança operada na companheira: como
o tempo é outro, ganhou-se maturidade, “já não receias tu essa vaquita preta”.
E não perde a ocasião de referir detalhes da ação enunciada, antes, de forma
sucinta: “eu segurei, prendi, por um chavelho”. E retoma a caraterização da
companheira adequada ao momento por ela vivido: “a tremer, cosida com o muro,
ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta”.
É notória a bipolaridade
e a solidariedade entre as duas personagens, mas também a bipolaridade entre o
presente e o passado, sendo que esta leva à estruturação da composição em dois
tempos distintos: o momento em que o “eu” recorda o passeio prende-se ao
presente; mas o passeio ocorreu no passado, quando o sujeito poético era “um
destro e bravo rapazito” (v.
3).
Como o “eu”, a
“companheira” também é amplamente caraterizada. Esta figura feminina é
retratada como elegante e burguesa (“teu “costume de percale” – v. 16), magra e com óculos (“E fina, de luneta” – v 20). É um retrato identificador duma
personagem urbana da época, que serve para marcar a dicotomia ou dialética
entre a cidade e o campo. Enquanto o rapazito rural tem domínio sobre os
elementos campesinos, agindo “como um homenzarrão” (veja-se o poder do aumentativo), a menina da cidade sente-se
insegura e tímida. Também para conseguir a expressão desta lógica, Cesário
lança mão de recursos expressivos. É utilizada a hipérbole e comparação “Mais
morta do que viva” (v.1), no início, e a metáfora e imagem
“cosida com o muro” (v.
19), para mostrar o medo
da companheira – que parece ensanduichar o poema.
Em função da mostra de
capacidade do elemento masculino e da sua adaptação ao ambiente rural, usa-se
também a metáfora e o aumentativo, “como um homenzarrão” (v. 4), a antítese “rapazito” (v.3) e “homenzarrão” (v.4);
o jogo antitético do diminutivo e do aumentativo (vd vv. 3 e 4); mostra-se um indivíduo convencido
e orgulhoso: “um destro e bravo rapazito,/Como um homenzarrão servi-lhe de
barreira” (vv. 3-4); e aplica-se-lhe a reiteração
gradação: “segurei, prendi” (v. 18). Porém, as
duas personagens irmanam-se no “nós” (enálage de pessoa), “Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale” (v. 13) e encontram, em enumeração, “Várzeas, povoações,
pegos, silêncios vastos” (v. 14). E sobretudo, encontram “os fartos
animais, ao recolher dos pastos” (note-se o infinitivo substantivado ou nominalizado – v. 15), sem os quais não se daria o
incidente. Veja-se o poder da sensação táctil, “Roçam pelo teu costume de
percale” (v. 16).
Sensivelmente a meio do
poema, há um discurso direcionado, de forma apostrófica (note-se o vocativo” amigos” com a exclamação), aos camponeses a quem o pregão do
leiteiro tira o sono.
“… estavas a tremer,
cosida com o muro, / Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!”. Nesta imagem,
a “companheira”, no presente da recordação, é interpelada pelo poeta no sentido
de ainda recear a “vaquita preta” (atente-se no demonstrativo “essa”, de distância em relação ao
emissor e de proximidade em relação ao recetor), que foi agarrada pelos chifres pelo petiz,
evidenciando a dualidade entre a destreza da personagem masculina e o medo da
personagem feminina. Por outro lado, o discurso remete-nos para a distância
entre o acontecimento no passado de infância de ambos e o presente.
Verifica-se, a imagem, de
que se falou há pouco, em vários versos o uso de inúmeros recursos expressivos
que suscitam a dúvida e o ceticismo quanto ao impacto e às consequências do
incidente na figura feminina, ainda criança. Esta dúvida percebe-se na
interrogação retórica “Já não receias tu essa vaquita preta, / Que eu segurei,
prendi, por um chavelho?” (vv. 17-18) – com
que se pretende enfatizar e gerar expectativa através da interpelação. Depois,
vem a anástrofe (“já não
receias tu…” – v. 17),
invertendo a ordem normal das palavras para relevar o pensamento. São notórios
recursos como: a expressividade do diminutivo, “vaquita” (v. 17), como em cima “rapazito” (v. 3) e bezerrinhas (v. 6);
a metáfora e imagem “cosida contra o muro” (v. 19);
a adjetivação “medrosa”, “fina” (v. 20);
e a exclamação “Juro…luneta!” (vv. 18-20).
A técnica narrativa faz
passar, no poema, da frase declarativa à frase exclamativa para, como vimos,
interpelar os camponeses e para valorizar a destreza do narrador poeta (na 1.ª estrofe), sublinhar o aspeto bucólico do
passeio pelo vale (4.ª
estrofe) e para
caraterizar a companheira em momento tão dramático como o evocado na última
estrofe.
Este episódio passado
ocorreu num campo aberto, um “vale”, mostrando o poema referências típicas da
construção duma paisagem campesina: por perto, “arvoredo”, “fonte”, “pastos”,
“azenhas e ruínas”; ao longe, “várzeas, povoações, pegos”. É ainda referida uma
povoação de “casitas com postigos”, onde vivem os camponeses. Ressalta a paz
vivida neste espaço rural manifesta nos “silêncios vastos”, espraiada pela
extensão campestre ao contrário do ruído citadino em espaço limitado, a que as
personagens em causa estão habituadas a viver e a sentir.
Em suma,
O poema desenvolve uma
temática campesina, transtemporal, de atual incidência social mordaz; patenteia
uma estrutura narrativa e ambulatória; mostra o lado solidário do poeta para
com a figura feminina franzina; e capta com precisão um instantâneo da vida
campestre que ele presenciou e em que teve uma intervenção decisiva e que dava
para uma aguarela, como ele refere a propósito de outro poema. É o predileto
olhar campestre de Cesário, contrastante com o citadino!
2016.12.14 – Louro de Carvalho
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