sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Eça de Queirós e a política

Muitas vezes se aduz com razão as frases sentenciosas de Eça de Queirós para afiançar que os políticos cometem inveteradamente os mesmos erros e que facilmente a política se desvirtua abandonado a sua configuração e finalidade de procura do bem comum pela via da verdade para se tornar o serviço interesseiro dos seus operadores ou de seus amigos na via da mentira e do logro. São, na verdade, muitos os lugares linguístico-literários em que a prosa queirosiana carrega na política e nos políticos, porém, cinjo-me, como é de esperar, a alguns exemplos.
No Distrito de Évora, de 1867, o jornalista escritor fala da “política de interesse” dizendo que,
“Em Portugal, não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações.”.  
No entanto, não deixa de especificar o que é, entre nós, a ciência de governar e a política:
“A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse. A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o privilégio. A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se, destrói-se, corrompe-se. Todos os desperdícios, todas as violências, todas as indignidades se entrechocam ali com dor e com raiva.”.
Sobre o acesso dos cidadãos à atividade política, diz:
“À escalada sobem todos os homens inteligentes, nervosos, ambiciosos (...) todos querem penetrar na arena, ambiciosos dos espetáculos cortesãos, ávidos de consideração e de dinheiro, insaciáveis dos gozos da vaidade”.
Porém, hoje abundam os que têm em mente o ingresso na política sobretudo como trampolim para futuros cargos chorudos em grandes empresas – desígnio acessível a mulheres.
Andámos quatro anos a dizer que não somos a Grécia – tese contestada por alguns, provavelmente não em todos os epifenómenos, mas nas questões de fundo. Veja-se o que escreve o prosador de Oitocentos sobre a matéria:
“Nós estamos num estado comparável, correlativo à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesmo abaixamento dos carateres, mesma ladroagem pública, mesma agiotagem, mesma decadência de espírito, mesma administração grotesca de desleixo e de confusão. Nos livros estrangeiros, nas revistas, quando se quer falar de um país católico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa – citam-se ao par a Grécia e Portugal. Somente nós não temos como a Grécia uma história gloriosa, a honra de ter criado uma religião, uma literatura de modelo universal e o museu humano da beleza da arte.” (in ‘Farpas,1872’).
Todavia, hoje o acento não se coloca no catolicismo ou na falta de história e de literatura, mas nas agências de rating e no desmando financeiro e económico, sem um governo que ponha os pontos nos is.
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Noutro número do Distrito de Évora, Eça denuncia o verdadeiro cancro que mina o país – a desconfiança:
O que verdadeiramente nos mata (…) é a desconfiança. O povo (…) não confia nos homens que hoje tão espetaculosamente estão meneando a púrpura de ministros; os ministros não confiam no parlamento, apesar de o trazerem amaciado, acalentado com todas as doces cantigas de empregos, rendosas conezias, pingues sinecuras; os eleitores não confiam nos seus mandatários (…); os homens da oposição não confiam uns nos outros e vão para o ataque, deitando uns aos outros, combatentes amigos, um turvo olhar de ameaça.”.
Depois, tira as suas conclusões, tão válidas então como hoje:
“Esta desconfiança perpétua leva à confusão e à indiferença. O estado de expectativa e de demora cansa os espíritos. Não se pressentem soluções nem resultados definitivos: grandes torneios de palavras, discussões aparatosas e sonoras; o país, vendo os mesmos homens pisarem o solo político, os mesmos ameaços de fisco, a mesma gradativa decadência. A política, sem atos, sem factos, sem resultados, é estéril e adormecedora.”. 
Sobre a inabilidade de sair das crises, perora:
“Quando numa crise se protraem as discussões, as análises refletidas, as lentas cogitações, o povo não tem garantias de melhoramento nem o país esperanças de salvação. (…) Sabemos que o nosso estado financeiro não se resolve em bem da pátria no espaço de 40 horas. Sabemos que um défice arreigado, inoculado, que é um vício nacional, que foi criado em muitos anos, só em muitos anos será destruído. O que nos magoa é ver que só há energia e atividade para aqueles atos que nos vão empobrecer e aniquilar; que só há repouso, moleza, sono beatífico, para aquelas medidas fecundas que podiam vir adoçar a aspereza do caminho.“.
E escalpeliza a forma como se tomam medidas gravosas e medidas úteis:
“Trata-se de votar impostos? Todo o mundo se agita, os governos preparam relatórios longos, eruditos e de aprimorada forma; os seus áulicos afiam a lâmina reluzente da sua argumentação para cortar os obstáculos eriçados: as maiorias dispõem-se em concílios para jurar a uniformidade servil do voto. Trata-se dum projeto de reforma económica, duma despesa a eliminar, dum bom melhoramento a consolidar? Começam as discussões, crescendo em sonoridade e em lentidão, começam as argumentações arrastadas, frouxas, que se estendem por meses, que se prendem a todo o incidente e a toda a sorte de explicação frívola, e duram assim uma eternidade ministerial, imensas e diáfanas.”.
Sobre o estado geral da nação, não se torna meigo:
“O país, que tem visto mil vezes a repetição desta dolorosa comédia, está cansado: o poder anda num certo grupo de homens privilegiados, que investiram aquele sacerdócio e que a ninguém mais cedem as insígnias e o segredo dos oráculos. Repetimos as palavras que há pouco Ricasoli dizia no parlamento italiano: ‘A pátria está fatigada de discussões estéreis, da fraqueza dos governos, da perpétua mudança de pessoas e de programas novos’.”. 
A propósito da governança, é cáustico:
Entre nós têm-se visto governos que parecem absurdamente apostados em errar, errar de propósito, errar sempre, errar em tudo, errar por frio sistema. Há períodos em que um erro mais ou um erro menos realmente pouco conta. No momento histórico a que chegámos, porém, cada erro, por mais pequeno, é um novo golpe de camartelo friamente atirado ao edifício das instituições; mas ao mesmo tempo tal é a inquietação que todos temos do futuro e do desconhecido que cada acerto, cada bom acerto é uma estaca mais, sólida e duradoura, para esteiar as instituições. Toda a dúvida está em saber se ainda há ou se já não há, em Portugal, um governo capaz de sinceramente se compenetrar desta grande, desta irrecusável verdade.” (in 'Últimas Páginas'). 
Talvez venha a propósito recordar que, no seu romance “Os Maias – episódios da vida romântica”, João da Ega, que os críticos consideram a personagem Alter-ego do próprio escritor, só via uma saída para a crise portuguesa: a invasão espanhola. Não será algo parecido com o que hoje tantos sustentam já não pela militança, mas pela espanholização da economia e das finanças ou pela assunção do iberismo como filosofia de vida?
E quem não revê o Portugal de hoje da UE e do Euro no registo crítico seguinte?
“Hoje que tanto se fala em crise, quem não vê que, por toda a Europa, uma crise financeira está minando as nacionalidades? É disso que há de vir a dissolução. Quando os meios faltarem e um dia se perderem as fortunas nacionais, o regime estabelecido cairá para deixar o campo livre ao novo mundo económico,".
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Muitas vezes, os políticos são indiciados por atitudes e comportamentos ilícitos. Hoje é useiro e vezeiro vir a comunicação social fazer julgamentos na praça pública. Já no tempo de Eça isso acontecia, mas sem rádio, televisão, cinema e Internet. Veja-se o que refere em Cartas de Paris o cônsul Queirós, escritor e jornalista sobre “Os Juízos Ligeiros da Imprensa”:
“Incontestavelmente foi a imprensa, com a sua maneira superficial e leviana de tudo julgar e decidir, que mais concorreu para dar ao nosso tempo o funesto e já inerradicável hábito dos juízos ligeiros. Em todos os séculos se improvisaram estouvadamente opiniões: em nenhum, porém, como no nosso, essa improvisação impudente se tornou a operação corrente e natural do entendimento. Com exceção de alguns filósofos mais metódicos, ou de alguns devotos mais escrupulosos, todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente do penoso trabalho de refletir. É com impressões que formamos as nossas conclusões. Para louvar ou condenar em política o facto mais complexo, e onde entrem fatores múltiplos que mais necessitem de análise, nós largamente nos contentamos com um boato escutado a uma esquina. Para apreciar em literatura o livro mais profundo, apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo ondeante do charuto.” 
A este respeito, refere o método e a tentação:
“O método do velho Cuvier de julgar o mastodonte pelo osso é o que adotamos, com magnífica inconsciência, para decidir sobre os homens e sobre as obras. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que esplêndida facilidade exclamamos, ou se trate de um estadista, ou se trate de um artista: ‘É uma besta! É um maroto!’ Para exclamar: ‘É um génio!’ ou ‘É um santo!’, oferecemos naturalmente mais resistência. Mas ainda assim, quando uma boa digestão e um fígado livre nos inclinam à benevolência risonha, também concedemos prontamente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa de louros ou a auréola de luz.”.
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Porém, nem tudo o que se atribui a Eça é da sua autoria. Atribui-se-lhe, por exemplo, a seguinte frase sentenciosa: Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos a tempos pelo mesmo motivo”. Esta frase não parece ser de Eça, como se verá. 
Ao brasileiro Onésimo Teotónio de Almeida, que diz já a conhecer em inglês, aquele humor não parece eciano. E, a confirmá-lo, refere a resposta perentória que recebeu do especialista em textos queirosianos A. Campos Matos à questão que o consulente lhe levantava:
Tal como a conhecida história da carta ao diretor da Companhia das Águas a perguntar ‘Que posso eu cortar a V. Ex.cia se V. Ex.cia me cortar a água?’, essa frase não vem em qualquer livro de Eça. É uma falsa atribuição. E, de seguida, em PS: A carta ao diretor da Companhia das Águas é da ramalhal figura.”
Onésimo assegura que
“A frase passou a circular na Internet sobretudo depois do aparecimento do filme Man of the Year, de 2006, em que Robin Williams, no papel de Tom Dobbs, figura decalcada em vários talk-show hosts norte-americanos, a repete, supostamente citando Benjamin Frankin”.
- (vd Onésimo Teotónio Almeida, Nem tudo na rede é peixe.: http://lusopresse.com/2014/304/LER-Novembro-2013-OTA.aspx.)
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Estes casos abundam. E Onésimo refere muitos. Por mim, refiro alguns.
Muitos pensam que a expressão “este jardim à beira-mar plantado” é de Camões, quando o seu autor é Tomás Ribeiro que a encaixa no poema Dom Jaime.
E eu próprio, em tempos, recebi os parabéns de muitos por artigo de jornal que eu não escrevi.
Também se atribui, sem fundamento, a São Francisco de Assis a oração pela paz que se inicia pelo segmento “Senhor, fazei de mim um instrumento da vossa paz” e prossegue: “Onde há ódio, que eu leve o Amor…”. Veja-se a seguinte referência:
“A Oração a São Francisco de Assis é de origem católica, foi criada no século XIII, mas só foi publicada em 1912 por um padre francês Esther Bouquerel através da revista La Clochette (pequeno sininho). Há muita controvérsia acerca da origem da oração, muitas pessoas afirmam que o santo Assis não é o real autor da mensagem, todavia é assim que a conhecemos e creio que isso não é o mais importante!”.
E L'Osservatore Romano, de 19-20 janeiro 2009, refere pela pena de  Egidio Picucci:
“O Marquês Stanislas de A Rochethulon, presidente da associação anglo-francesa Souvenir Normand que se qualificava como ‘obra de paz e de justiça ideal, inspirada no testamento de Guilherme, o Conquistador, considerado antepassado de todas as famílias reais da Europa, para fazer ressaltar o papel que tiveram a lei e o direito estabelecidos pelos conquistadores normandos’ – tinha feito chegar ao Papa duas orações pela paz e um cântico dedicado a Nossa Senhora das Normandias. A primeira oração era uma invocação ‘à Nossa Senhora dos Normandos e aos seus santos e santas padroeiros’; a segunda, uma bela oração a recitar durante a Missa’, publicada por um certo abbé Bouquerel, redator do semanário católico A Cruzx de Orne, retomada no número de dezembro de 1912 do periódico La Clochette, um revistinha católica de caráter devocional fundada em outubro de 1901, e que se qualificava como boletim da Liga da Santa Missa.”.
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Voltando à frase atribuída a Eça de Queirós, não creio que o humor do jornalista político e escritor confundisse políticos e fraldas. Uns e outros devem mudar-se de tempos a tempos e pelo mesmo motivo, mas por posicionamentos opostos. Não são as fraldas que dão o motivo, mas o corpo que elas servem (que não pode viver sem essa função) é que exala e expele o produto que leva a que sejam mudadas. Já os políticos, ao contrário das fraldas, é que produzem, por culpa própria, exalam e expelem o dito produto – o que dá a entender que o que eles queriam é que fosse descartado o tal corpo que eles deviam servir e de que, afinal, se servem, deixando-o cada vez mais sob a alçada das agências de rating, que não se inibem de tratar o país como lixo.

2016.12.16 – Louro de Carvalho

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