Depois de se converter, Foucauld dedicou a sua vida aos tuaregues, nos desertos de
Marrocos. O exemplo deste presbítero e
eremita continua a inspirar muitos cristãos. Bem merece a
justa homenagem e o acolhimento da sua memória por ocasião do centenário do seu
assassinato por um bando
de ladrões
a 1 de dezembro de 1916.
Charles de Foucauld (em português: Carlos de Foucauld), ou Carlos de Jesus, ou Irmão
Carlos de Jesus, como é popularmente conhecido, é o nome de um ex-militar
convertido que nos legou a verdadeira espiritualidade do escondimento, do
deserto, do serviço aos mais humildes e da intimidade profunda com Deus a partir
do Evangelho de Jesus e da Sua presença eucarística.
Nasceu a 15
de setembro de 1858, em Estrasburgo, na França, com o título nobiliárquico de
visconde. Aos 9 anos ficou órfão, pelo que foi criado com a irmã Marie sob os
cuidados do avô, o coronel de engenharia, Charles de Morlet. A formação cristã
recebida na infância permitiu-lhe fazer uma sentida Primeira Comunhão em 1870.
Seguindo
carreira militar, encontrou-se, em 1878, na Escola de Cavalaria de Saumur, a
mais aristocrata das instituições francesas. Em 1880, partiu como tenente do
regimento de Hussardos, para a Argélia, colónia francesa norte-africana. Na juventude
de jovem aristocrata, o futuro santo teve uma vida dissoluta de amantes, luxos
e prazeres, começando a dilapidar a sua fortuna.
Porém, o
contacto com o deserto do norte de África trouxe-lhe novas perspetivas de vida.
Depois de ajudar a jugular algumas revoltas, em vez de voltar para França,
preferiu ficar no deserto da Argélia e de Marrocos, onde se tonou explorador e escreveu
dois livros de valor científico e estratégico-militar: “Reconhecimento de Marrocos” e “Itinerários
de Marrocos”. A sua ação de investigação no Norte de África valeu-lhe a
atribuição de uma medalha da Sociedade Francesa de Geografia. Para o êxito do seu trabalho de explorador e de cientista e estratega fez
longas incursões a cavalo percorrendo milhares de quilómetros pelos desertos,
pondo-se em contacto com a hospitalidade tradicional dos muçulmanos e como
aquele Sahara que o fascinou graças à sua imensidão, solidão e silêncio e onde
os muçulmanos rezam três vezes ao dia ao seu Deus misericordioso e clemente.
À medida que
descobre o Deus presente na fé dos muçulmanos, interroga-se sobre a sua própria
fé e começa a procurar a luz de Deus num cristianismo decadente até ao momento
em que, já em Paris, em outubro de 1886 (aos 28 anos), surpreendido pelo discreto e carinhoso acolhimento
da família, profundamente cristã, procura e encontra o Padre Huvelin, vigário
da Igreja de Santo Agostinho. Em conversa com ele confidencia que não tem fé e
pede-lhe que o instrua. O padre atalhou e disse: “Ajoelhe-se e confesse-se. Então, crerá!” Contrariado, o jovem
retorquiu de pronto que não viera ali para isso. Mas o padre, velho e cego,
ordenou-lho intempestivamente e o interlocutor acabou por aceder. A partir
daquele momento, aconteceu a conversão como mudança de vida e o jovem
aristocrata, mulherengo e entregue aos luxos e aos prazeres, abandonou-se nas
mãos de Deus. Entrou num mosteiro trapista em França e, pouco
depois, foi enviado para a Terra Santa, onde pretendeu imitar a vida oculta de
Jesus em Nazaré. Viveu 7 anos na Trapa, primeiro em Nossa Senhora das Neves,
depois em Akbés, na Síria. E, após uma passagem como jardineiro e dedicado à oração
num mosteiro de clarissas, voltou à Europa para concluir os estudos e receber,
em 1901 (aos 43 anos) a ordenação sacerdotal na Diocese de Viviers. Nesse ano,
já se encontra na fronteira de Argélia com Marrocos no meio dos muçulmanos, no
oásis de Benni-AbbSs. Não querendo fazer proselitismo cristão, pretende ser uma
testemunha vital de Jesus Cristo. A ideia-força da sua espiritualidade era: dar testemunho de
Cristo, do seu amor, bondade e misericórdia, sem pregações ou proselitismo,
apenas dando testemunho d’Ele no meio aos homens. Em 1904, vai
viver no meio dos muçulmanos mais pobres, os tuaregues nómadas. E a imagem dominante no mundo de Charles foi a de Jesus
como carpinteiro de Nazaré. Preferiu
ver Jesus Salvador do mundo como obscuro carpinteiro da remota aldeia da desprezada
Nazaré – imagem que se evidencia em todas as dimensões da sua busca
espiritual.
Em 1916,
apesar da estima e do reconhecimento da população tuaregue e muçulmana, o Padre
Charles de Foucauld vê-se no fogo cruzado da I Guerra Mundial entre franceses e
alemães. No dia 1 de dezembro deste ano foi assassinado por um bando de ladrões
de passagem. Tencionava criar uma nova ordem religiosa, o que sucedeu apenas
após a sua morte: “os Irmãozinhos e Irmãzinhas de Jesus” – também chamados de
“Irmãozinhos e Irmãzinhas de Foucauld”.
O Papa Bento
XVI determinou a sua beatificação em 13 de novembro de 2005, a que presidiu, na Basílica de São
Pedro, no Vaticano, o cardeal português Dom José Saraiva Martins, então
prefeito da Congregação para as Causas dos Santos. Por essa ocasião, dele disse o Pontífice:
“Demos graças pelo testemunho oferecido por Carlos de Foucauld. Com a sua vida contemplativa e escondida em Nazaré, ele
reencontrou a verdade da humanidade de Jesus, convidando-nos a contemplar o
mistério da Encarnação; nesse lugar, ele compreendeu muito acerca do Senhor, o
qual desejava seguir com humildade e pobreza. Descobriu que Jesus, que veio
entre nós na nossa humanidade, nos convida à fraternidade universal, que viveu
mais tarde no deserto do Sahara, e ao amor do qual Cristo nos deu o exemplo.
Como sacerdote, colocou a Eucaristia e o Evangelho no centro da sua existência,
as duas tábuas da Palavra e do Pão, fonte da vida cristã e da missão.”
***
Charles de
Foucauld escreveu a seu respeito:
“Logo que descobri que existe Deus entendi que não podia mais fazer outra
coisa a não ser viver por ele: a minha vocação religiosa começa no exato momento
em que despertou a minha fé”.
Na verdade, “aquele que vive a fé tem a alma cheia de novos
pensamentos, de novos julgamentos, de novos afetos”. Assim, desde o momento
da descoberta, Charles esvaziou-se
de tudo o que não é o Evangelho, “porque há uma grande diferença entre Deus e o
que não é Ele”.
No silêncio
e no abandono, mergulhou no essencial: “o
nosso aniquilamento é o meio mais poderoso que temos para nos unir a Jesus e
fazer o bem”.
Ainda estava
no mosteiro trapista e, ao decidir deixá-lo, escreveu:
“No mosteiro passei seis anos e meio, depois, desejando querer assemelhar-me
a Jesus, fui autorizado a viver como alguém desconhecido, vivendo do meu
trabalho quotidiano”.
Exatamente
porque se torna pequeno, escondido, partícipe da humildade do Senhor, o coração
de Foucauld
alargou-se numa dimensão universal.
É chamado o “irmão universal” porque abrangeu
o mundo todo e todos os povos a partir da intensidade da presença entre os tuaregues.
A sua universalidade tem, pois, duas vertentes: uma é representada pela
potencialidade e a intensidade da presença e a outra pela extensão e abertura
até aos confins da terra.
A presença e
o aniquilamento não são dimensões que alimentem a pretensa tristeza da vida
cristã, mas representam o caminho mais simples do seguimento de Jesus que se
fez pobre e que para e por todos ofereceu a vida. O esvaziamento é o processo
de diminuição para que, como João Batista, o missionário deixe que Deus
intervenha e aja na história dos povos e das pessoas.
Na vida de Foucauld, é
Deus o protagonista que tem sempre de aparecer e agir através do discípulo. Ele
emprestou a Deus a sua própria vida, uma vida não retida, mas doada, pois “quem
guarda a própria vida para si perde-a, mas quem a entrega ganha-a”. E a decisão
que o levou a viver com os tuaregues, os pobres do deserto, é a condição de um
caminho místico, de uma entrega de que nasce o amor radical. Nesse caminho está
o processo de evangelização: antes
de evangelizar, é necessário amar. Antes de proclamar as palavras e anunciar a
mensagem, é preciso vivê-las na própria vida, sem arrogância e orgulho. Movidos por este exemplo, os tuaregues passam a chamá-lo de “marabuto branco”, ou seja, homem da
oração e homem de Deus. A sua missão era inversa do proselitismo. Enquanto este
quer conquistar o outro para ele entrar no mundo do benévolos conquistador,
Charles, através da vida, revela Deus presente e completamente comprometido com
os pobres.
A biografia publicada pelo Vaticano, a propósito da sua beatificação, destaca a sua fervorosa e generosa fé, o ardente amor por
Jesus Eucaristia, o respeito pelos homens, a predileção pelos mais pobres, em
quem sabia descobrir o reflexo do rosto do Filho do Homem, nunca deixando de
atrair, mesmo após a morte, um número cada vez maior de almas para o mistério
de Nazaré.
O seu sonho
foi sempre compartilhar a sua vocação com os outros: após ter escrito diversas
regras de vida religiosa, pensou que esta “Vida de Nazaré” pode ser vivida por
todos e em toda parte. Hoje a “família espiritual de Carlos de Foucauld” inclui
diversas associações de fiéis, comunidades religiosas e institutos seculares de
leigos ou sacerdotes dispersos pelo mundo.
***
A propósito
do centenário de Charles de Foucauld e para “dar a
conhecer a vida, a figura e a espiritualidade” do beato francês através de
pinturas de L. Sadino, a Comissão de Arte Sacra da Diocese de Setúbal (CDASS) e a Comunidade de
Setúbal da Fraternidade dos Irmãos de Jesus, inauguraram – após a Eucaristia, presidida
pelo bispo diocesano Dom José Ornelas, às 16 horas, na igreja de Nossa Senhora
da Anunciada, a 1 de dezembro, na Biblioteca Pública Municipal sadina, a
exposição “Nazareth. Pinturas de L.
Sadino no centenário da morte de Charles de Foucauld’, tendo encerrado com
o filme “Des hommes et des Dieux, 2010”,
comentado pelo jornalista Mário Augusto. A exposição estará patente até 4 de
janeiro de 2017.
Segundo a CDASS,
“A exposição reúne um conjunto de 30 trabalhos
de diversas técnicas, nomeadamente aguarela, acrílico, óleo, grafite e pastel,
onde o autor revisita, através de distintas abordagens estilísticas de índole
figurativa, o percurso de um homem que tentou viver ao jeito da Sagrada
Família, em Nazaré”.
Também o jornal do Vaticano, ‘L’Osservatore
Romano’, recordou, na sua edição de 30 de novembro, o 100.º aniversário do
assassinato do Beato Charles de Foucauld, morto aos 58 anos por um grupo armado
no Saara argelino, referindo que “o religioso passará aos olhos da história
como um dos mais importantes da sua geração, atravessando dois séculos”. O
jornal recorda que a sua primeira
biografia foi escrita em 1923, por René Bazin, que “consagrou a sua posteridade
espiritual” de “personalidade fora do comum”, com uma obra “prolífica”.
Charles de Foucauld ficou conhecido como o “irmão
universal” pela sua vivência como monge eremita, no deserto do Saara, em
respeito pelas outras religiões. A sua vida deu origem a 8 associações de fiéis
e a 10 congregações religiosas, entre as quais as fraternidades dos Irmãozinhos
e Irmãzinhas de Jesus, criadas depois da sua morte.
2016.12.02 – Louro de Carvalho
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