terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Os comentadores omniscientes e bem pensantes

Já nos tínhamos habituado ao comentador Marcelo Rebelo de Sousa, que todos os domingos opinava sobre tudo e mais alguma coisa e cujo mérito consistia sobretudo em fornecer uma panorâmica do que tinha acontecido na semana em referência e uma perspetiva da semana que se avizinhava. Obviamente, o professor pronunciava-se com mérito muitas vezes, embora não raro o seu comentário se revestisse de desabafo em relação a semirrivalidades com alguns dos correligionários que subiram na cena pública. Além disso, mostrava um ou outro clichê como: o povinho não percebe; é preciso explicar bem aos portugueses; ponto final, parágrafo, etc.
A sua omnisciência começou a eclipsar-se quando passou a integrar no seu comentário respostas telegráficas a perguntas de expectadores e claudicou quando não se pôde furtar ao juízo sobre descalabro do BES/GES. E, algumas vezes, via-se bem que não conhecia os meandros da matéria sobre que se pronunciava. A título de exemplo, recordo que nem sempre se mostrava atualizado sobre o sistema educativo e funcionamento das escolas não superiores, bem como sobre o papel dos centros de saúde e sua articulação com o sistema hospitalar.
Em compensação por algumas falhas do passado, temo-lo agora no seu comentário diário sobre tudo o que é importante e sobre o que é menos importante, ora sendo profícuo pelo sentido de Estado e pela oportunidade, ora sendo entediante e descabido.
***
Não falando de outros comentadores que já no tempo de Marcelo usavam o púlpito televisivo e alguns dos quais prevalecem no comentário político – obviamente menos omniscientes – é de destacar Marques Mendes, que tem a pretensão da omnisciência pública e se dá ao arrojo de noticiar factos antes de eles acontecerem (é uma espécie de porta-voz dos desígnios do Estado), ficando satisfeito quando as notícias da Comunicação Social lhe confirmam os vaticínios. Porém, mais do que Marcelo, Mendes é mais categórico nos juízos de valor que emite, nem sempre com a devida justeza, embora sempre segundo a sua ténue linha de pensamento.
***
Também Paulo Rangel é pródigo em artigos de opinião em que ressalta o dado político. E a sua poderosa assertividade aproxima-se muito duma notória modalidade de omnisciência política. Lembro-me de que o ora eurodeputado, quando, na condição de deputado à Assembleia da República, falou em nome do seu partido numa sessão comemorativa da revolução abrilina, denunciou o que ele denominava de claustrofobia democrática.
Agora na sua catedrática maestria política sentenciou que “a emissão omnipresente de boletins invasivos sobre a saúde do Presidente Soares é deplorável”.
Com o seu artigo de opinião no Público, o eurodeputado do PSD critica o Hospital da Cruz Vermelha e os meios de comunicação social pelo excesso de informação prestada diariamente sobre o estado de saúde do ex-Presidente da República Mário Soares. E justifica:
“Há momentos em que a intimidade é um valor supremo. O que custa respeitá-la? Uma ou duas notas esporádicas cumpririam a função”.
Parecendo ter razão de princípio, o articulista crítico esquece que a unidade hospitalar em referência começou por fazer apenas dois comunicados diários, por acordo com a família, e que atualmente emite uma nota todas as manhãs, sendo o seu porta-voz altamente comedido, furtando-se a responder às insistentes perguntas de jornalistas. Sendo assim, o hospital salvaguarda, em certa medida, a privacidade do internado e a vontade da família.
Já é diferente o que se passa com as rádios e os canais televisivos que emitem notícias de hora a hora ou as edições de jornais on line: todos reptem até à exaustão as ditas notas sobre o estado clínico do ex-presidente.
Por outro lado, queiramos ou não, Mário Soares, pelo seu passado, pelos altos cargos que desempenhou e pela sua atuação mesmo em tempos mais recentes – concorde-se com ele ou discorde-se dele – não deixou de ser um homem público, interessando à comunidade nacional e internacional o seu estado de saúde. Que diriam do Hospital se este se fechasse em copas ou se a família se mostrasse hostil à opinião pública?
***
Também Miguel Sousa Tavares, que escreve muito bem, se alça à omnisciência e ao juízo de valor ex catedra.
Assim, o comentador analisou, no habitual espaço de comentário no Jornal da Noite de segunda-feira (dia 26) na SIC, a popularidade do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. No geral, concordo com a sua apreciação sobre o desempenho do PR. Na verdade, o esforço do Presidente em prol da sua popularidade pode ser contraproducente na medida em que algum dia terá de tomar alguma decisão impopular, o que lhe pode afetar a credibilidade, ou seja, poderemos ter necessidade de o ouvir quando já estivermos saturados com o seu discurso. Lá diziam os latinos: “Assueta vilescunt” – na rotina diária até as coisa mais extraordinárias se tornam vulgares.
Já o juízo de valor, em concreto, de que “o comunicado da Presidência sobre a morte de George Michael foi completamente despropositado” é de mérito duvidoso. Penso que o Presidente não deve ser notado por este ou aquele comunicado em relação a determinadas figuras, mas por o fazer indistintamente de quem quer que sejam tais figuras ou do seu impacto na vida do país ou do mundo. De facto, parece que o Chefe de Estado tinha que dizer alguma coisa, dando mostra de andar aos papéis, como se pode ver pelo texto:
“Manifesto o meu pesar pela morte de George Michael, um artista e compositor versátil e talentoso, com uma longa carreira de inequívoca qualidade.
Tal como David Bowie e Prince, para mencionar apenas alguns que este ano nos deixaram, partiu demasiado cedo e de forma inesperada. É difícil não pensar no que George Michael nos podia ainda ter dado, mas pelo menos teremos sempre o que a vida dele nos deixou.”.
O primeiro parágrafo pode dizer-se praticamente de qualquer autor ou executor; o segundo configura o que se pode dizer de qualquer pessoa, mesmo que se fine com mais de 100 anos.
É pena se Marcelo produziu tal lamento apenas para agradar à onda jovem.
Apontam alguns cibernautas que do acidente com o avião russo não terá falado. E eu no site da Presidência também não vi tal referência na secção das mensagens, embora tenha visto a mensagem de condolências pelo assassinato do embaixador russo na Turquia. Mas do acidente aéreo nada vi. A ser verdade, esta falha é esquisita.
É verdade que a presidência marcelista é um produto do populismo. Talvez não tivesse sido eleito, se não fosse a magna exposição na TVI nos anos anteriores às eleições. Todas as suas atuações públicas são a continuidade do seu estilo jovial e galante. Como a massa popular não tem de estar interessada na profundidade das análises sobre o presente e o futuro, tem o presidente consentâneo para esta sociedade. Porém, querer agradar a gregos e troianos alguma vez dará torto.
Mas Tavares é contundente na apreciação que faz da Mensagem de Natal do Primeiro-Ministro.
Por um lado, diz que não tem substância, por outro, julga que não faz sentido um Primeiro-Ministro de um Estado laico emitir uma mensagem de Natal tornado cardeal patriarca civil.
Tenho de contestar Sousa Tavares já pela falta de substância. Uma Mensagem de Natal é um ato de simpatia para com a comunidade nacional, para com os portugueses da diáspora e para com os estrangeiros que optaram por Portugal, vivendo cá ou passando por aqui. Não é propriamente um programa de Governo. E tem algo de circunstancial, embora sem negar a época.
No entanto, não se pode dizer que não haja substância em segmentos discursivos como quando se acusa o défice de conhecimento e se mostra o que se tem feito e se propõe fazer para o ultrapassar, assegurando a necessidade de investimento; se insiste na educação e qualificação dos portugueses, com especial incidência nas crianças; se pretende incrementar a economia com melhores empresas e melhores empregos, elegendo “a pobreza e a precariedade laboral” com “as maiores inimigas de uma melhor economia; e se diz que “somos a favor de uma sociedade civil forte”, que “não queremos que ninguém fique para trás”, referindo-se à educação e à saúde, e que “não alinhamos na ocultação, opacidade e encenação”.
Porém, Sousa Tavares confunde o laicismo com o alheamento da sociedade. O Estado é secular, laico, aconfessional, mas a sociedade é o que é. E, por mais que custe aos líderes religiosos que o espírito do Natal se afaste do núcleo que o originou, o Natal mexe com toda a nossa sociedade por motivos vários. E é assim que tradicionalmente o Primeiro-Ministro se dirige a todos os portugueses por ocasião do Natal. E este fez bem em relevar as crianças como seus protagonistas e as famílias que as geram, criam e educam, e em relevar o serviço prestado por tantos para que todos vivessem Natal, bem como o abraço aos portugueses da diáspora.
Finalmente, não posso deixar de esclarecer que, por mais respeito que o cardeal patriarca mereça como alta e eminente voz de Igreja, a sua palavra dirige-se à Igreja que está presente na diocese de Lisboa, não vinculando as demais dioceses. De resto, para as outras dioceses, os respetivos bispos elaboram a suas mensagens, as suas cartas pastorais ou selecionam os gestos e orientações que o seu prudente juízo lhes dita. Obviamente que isto não colide com a precedência protocolar (só isso) em relação aos outros bispos.
Mas o Primeiro-Ministro é a terceira figura do Estado e tem responsabilidades por todo o país.
***
Enfim, não tenho inveja dos omniscientes, mas queria que a sua pretensa “omnisciência” fosse sempre sabedoria no que esta mostra de saber, sabor, justeza, equilíbrio e benevolência.

2016.12.27 – Louro de Carvalho 

Sem comentários:

Enviar um comentário